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Os camponeses e os marujos foram os decanos da arte de narrar. A narrativa é a história que está gravada na vida do contador, que “retira o que ele conta da experiência: de sua própria experiência ou da relatada por outros”, e que tem um caráter coletivo e compartilhado que ocorre no diálogo constante entre narrador e ouvinte (BENJAMIN, 1994, p. 217).

Benjamin argumentava, em 1936, que a experiência é a fonte a que recorreram todos os narradores: aquele viajante, que vem de longe e tem muito para compartilhar com seu grupo, bem como aquele que nunca saiu de sua comunidade, o sábio ancião, mas que conhece as histórias de seu povo, acumulou saberes, tradições e conhecimentos acerca do lugar em que viveu.

O autor, por sua vez, também discutiu a raridade do saber narrar, esclarecendo que é cada vez mais difícil encontrar um indivíduo que possa fazê-lo adequadamente. Segundo ele, as pessoas parecem estar privadas de uma faculdade que lhes pertencia de modo inalienável: a de intercambiar experiências. Aponta como culpada pela extinção da arte de narrar a impossibilidade da experiência comunicável devido ao grande desenvolvimento da técnica. Benjamin (1994, p. 218 -219) descreve:

[...] com a consolidação da burguesia – da qual a imprensa, no alto capitalismo, é um dos instrumentos mais importantes – destacou-se uma forma de comunicação [...] Essa nova forma de comunicação é a informação [...] A cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes.

As informações não trazem consigo a subjetividade empregada pelos narradores da tradição oral, elas retiram do indivíduo a possibilidade de incorporar fatos surpreendentes por já oferecerem um alto grau de explicação, sem apresentar oportunidade para que ele assimile aquele conteúdo. As notícias buscam apenas contar um acontecimento, sem a possibilidade de trocar experiências e conselhos.

A tese do autor sobre o desaparecimento das narrativas tradicionais ainda é discutida atualmente, menciona-se a “perda da comunicabilidade da experiência”,

mas, também, discutem-se outras formas de contar e comunicar as experiências, pois a narrativa se diversifica cada vez mais.

Partimos do conceito de narrador proposto por Benjamin para discutir “o narrar” nos dias de hoje. O narrador atual não narra o que experimentou na própria pele, mas é aquele que transmite uma “sabedoria” que decorre da observação de uma vivência alheia a ele; é alguém que narra a ação como espetáculo a que se assiste na plateia, na poltrona do cinema (SANTIAGO, 2002).

Assim, são produzidas novas configurações narrativas motivadas pela relação com as tecnologias digitais e os ambientes em rede. Em quase todos os lugares do planeta, não é mais possível abordar uma dimensão narrativa que não esteja relacionada à linguagem da televisão, da Internet e das diferentes redes e aplicativos que apareceram na última década e trouxeram, entre outras, mudanças em nossos modos de ver e pensar o mundo.

Silverstone (2002, p. 81) descreve as narrativas como uma parte essencial da realidade cultural e social, um vínculo com a experiência e uma expressão dela. Para o autor, não é possível compreender a própria cultura sem compreender as narrativas que estão sendo contadas, assim como, para compreender outras culturas, é preciso passar por suas formas de narrar. Destaca, ainda, o quanto as tecnologias atualmente trazem o desenvolvimento de muitas formas de narrar. Na ótica de Silverstone, as narrativas sobrevivem:

[...] no faroeste e na novela; no relato dos grandes eventos midiáticos do dia e na narração de contos e comédias de situação para adolescentes. [...] De fato, ela prospera, recorrendo, como lhe é possível agora em nossa era eletrônica, às fontes oral e impressa; extraindo seus recursos, cada vez mais, de culturas globais; fazendo sérias exigências de tempo e atenção, fornecendo a atratividade da cultura popular.

A cultura não é algo estático, está em constante mudança. As narrativas são criações diretamente relacionadas ao contexto cultural. O contexto de grande parte das pessoas está atualmente vinculado de modo estreito às tecnologias digitais. Um preâmbulo tanto para destacar que as narrativas e os narradores mudaram muito – e continuam mudando –, como também para afirmar a complexidade do campo das narrativas na contemporaneidade.

No cenário atual, de conectividade e desenvolvimento das tecnologias digitais, retoma-se a noção de que as narrativas expressam o que se vive na cultura e são também, de algum modo, a expressão da experiência vivida nessa cultura. É

relevante questionar que narrativas estão sendo produzidas/contadas na atualidade? E, mais especificamente, que narrativas são compartilhadas nas redes sociais?

Consoante autores como Araújo (2013), Amaro (2012) e Fernandes (2008), o advento de tecnologias eletrônicas e digitais engendrou novos modos de narrar, seja a realidade, seja a ficção, bem como estabeleceu novos desafios e modificações nos modos já existentes.

Tecnologias que trazem em seu bojo o aumento e a rapidez na criação e divulgação das informações, novos suportes de produção e outras redes de comunicação, transformando, diretamente, a forma como as sociedades constroem seus cotidianos e suas culturas. O digital tem possibilitado uma comunicação mais livre e vasta, haja vista que “a liberação da palavra” (LEMOS, 2010) modificou radicalmente a estrutura comunicacional, possibilitando às pessoas serem, em potencial, produtoras de conteúdos e poderem propagá-los nas diversas redes.

A bidirecionalidade vivida atualmente no processo comunicativo contempla a possibilidade de o sujeito também produzir e transmitir seu próprio conteúdo e de dialogar com outros sujeitos.

Hunt (2010, p. 197) assevera que “as mídias eletrônicas não estão alterando apenas o modo como contamos histórias: estão alterando a própria natureza da história e do que entendemos (ou não) por narrativa”. Para o autor, a consequência é a ampliação desse conceito e a inclusão de elementos que anteriormente não faziam parte das narrativas.

No digital, transformamo-nos em narradores que contribuem com o imenso patchwork planetário (CUNHA, 2009). Produzimos inúmeras narrativas que são compartilhadas por toda a parte por meio de diversas redes sociais. As narrativas digitais exploram formatos que ultrapassam o modelo unilateral de produção/recepção.

Além disso, a partir dos dispositivos digitais e móveis, estabeleceram-se a produção e a divulgação de conteúdos próprios, principalmente em aplicativos e redes sociais, como o Facebook, Instagram e o YouTube. Este, em 13 anos de existência, transformou-se em uma das maiores plataformas de compartilhamento de vídeos do mundo, são carregadas cerca de 100 horas de vídeos por minuto25,

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YOUTUBE. YouTube para a imprensa. s.d. Disponível em: <https://www.youtube.com/intl/pt- BR/yt/about/press>. Acesso em: 10 jan. 2019.

um dado que mostra que cada vez mais pessoas querem narrar o cotidiano e suas próprias experiências.

Diante das possibilidades engendradas por essas tecnologias, as narrativas ganham outros âmbitos e não mais se restringem ao binômio produção e recepção do conteúdo. Os sujeitos do século XXI, além de ouvir, ver e se apropriar das narrativas, podem se manifestar, produzir e obter respostas, muitas vezes, em tempo real e “passam a fazer parte da narrativa e do diálogo gerado por ela” (KIELING, 2012, p. 747).

As produções narrativas atualmente existentes são as mais diversas, como também são variados os suportes em que elas são disponibilizadas. São produzidas em suporte de papel – jornais, revistas, livros, cartões, folhetos, outdoors –, outras, em suportes bem diversificados – palco, disco, rádio, livro, cinema, TV – e há aquelas criadas em suportes tecnológicos e na Internet.

Autobiografias em vídeos, depoimentos em sites de redes sociais, micronarrativas no Twitter e no Messenger, histórias orais, imagéticas e escritas enviadas pelo WhatsApp, em todas, destaca-se a produção das mais distintas formas de narrativas por dispositivos digitais e em ambientes de rede.

Como afirma Murray (2003, p. 61), “os novos ambientes eletrônicos têm desenvolvido seus próprios formatos narrativos”. No entendimento da autora, as formas narrativas evoluem de acordo com a ascensão dos meios de comunicação e, principalmente, com as formas como utilizamos as tecnologias. Em uma narrativa digital, segundo a autora, é possível experienciar as seguintes categorias: imersão, agência e transformação.

As narrativas trazem para os sujeitos a possibilidade de vivenciarem a imersão, a sensação de estarem envolvidos naquela realidade, de participarem daquela história em outra dimensão; a agência, a percepção de poder quando obtemos um resultado esperado durante a realização de uma determinada ação, um comando correspondido; e a transformação, poder traçar um "caminho próprio", a liberdade de alterar elementos na narrativa, de mudar as formas, conteúdos, entre outros elementos nos meios digitais (MURRAY, 2003).

Há muito mais narradores atualmente e estes experimentam a oportunidade de desenvolver múltiplas narrativas. Além dos jovens e adultos, as crianças têm acesso a diversas formas de narrar e também são narradoras competentes nesse novo cenário; narram seus contextos sociais e suas culturas, contam também

histórias de super-heróis e heroínas, dos seus personagens preferidos, histórias da sua imaginação e outras que revelam os seus cotidianos e a si próprias.

Há crianças que produzem narrativas pessoais, que, “independente[mente] de serem verdadeiras, falsas ou fantasiosas, as muitas narrativas de si são expressões reais, ao menos, dos verdadeiros desejos desses sujeitos” (COUTO, 2015a, p. 175). Narram a si mesmas, bem como suas infâncias, dando visibilidade às culturas infantis.

No âmbito do presente estudo, destacam-se narrativas digitais, interativas, transmidiáticas, cambiantes, ubíquas e produzidas por uma diversidade de sujeitos, que revelam mudanças tanto na forma de narrar quanto nos diferentes recursos disponíveis para essas produções na cultura digital.

As tecnologias digitais engendram propriedades singulares, como a interação, que está relacionada à capacidade de as pessoas atuarem nesses ambientes. Uma ação que requalifica o espectador como interator, uma vez que exige a sua participação em um cenário digital para que as narrativas se desenrolem. A interatividade surge como uma experiência que resulta da imersão.

Em outra propriedade, a transmidialidade, a narrativa se desenrola em múltiplas plataformas e/ou entre dois ou mais textos que intercambiam elementos, tais como personagens, cenários ou universos ficcionais e, a cada novo texto, contribui de forma distinta e valiosa para o todo (JENKINS, 2009; RYAN, 2013).

A apropriação dos contextos, linguagens, recursos e suportes do digital para produzir relatos de acordo com a sua mobilidade (na escola, na praça, no shopping, no cinema), cria, assim, “narrativas caminhantes”, que reportam a conexão mantida pelas tecnologias móveis, apresentam os fatos no tempo em que acontecem e contam com a liberdade de escolher a situação de mobilidade que tem importância e também de decidir o que deve ser narrado, como descrito por Cunha (2009, 2010).

Além de caminhantes na produção – diversos territórios, escolhas do narrador e mobilidade de produção –, essas narrativas produzidas e compartilhadas em rede são também ubíquas, podem ser acessadas a qualquer hora e em qualquer lugar, são “voláteis, líquidas, pois, enviadas pelas redes, cruzam os ares, ubíquas, ocupando muitos lugares ao mesmo tempo” (SANTAELLA, 2007, p. 392).

Figura 11 - Narrativas digitais

Fonte: elaboração própria.

Os sujeitos imersos nessa cultura são, cada vez mais, produtores de narrativas de si, de suas experiências, de seu cotidiano, de sua vida social, política e cultural. Como afirma Couto (2013), não se trata apenas de consumir informações, mas de participar da criação e, assim, as redes sociais tornam-se repletas de narrativas textuais, fotográficas e videográficas.

Ao tempo de nossa história, mudaram os meios, as formas de narrar, de compartilhar e até mesmo de acessar e fruir esses textos, mas as “narrativas contemporâneas seguem constituindo matéria para a imaginação, a subjetivação, a constituição de valores, projeções, elaborações” (ARAÚJO, 2013, p. 64).

Na profusão de narrativas fotográficas publicizadas no Instagram pelos sujeitos desta pesquisa, existe uma diversidade de temas, pontos de vista, modos de viver e de apresentar suas infâncias; são crianças de diferentes condições socioeconômicas e localização geográfica, o que amplia as possibilidades de viver e de ser criança.

A partir da aproximação dessas narrativas e das entrevistas realizadas, foi possível identificar três categorias que serão analisadas no decorrer do texto, quais sejam: (i) narrativas de si; (ii) narrativas de felicidade; (iii) narrativas de consumo.

Gráfico 1 - Publicações por categoria

Fonte: elaboração própria.

39% 32% 29% Narrativas de Si Narrativas de Felicidade Narrativas do Consumo

4 #criançasfazemselfies ou NARRATIVAS DE SI

“Você gosta de fazer selfies?” - pergunto a Ailana. “Gosto! É muito bom! Até porque antes quando não tinha,

eu nem tirava muita foto, mas agora eu tiro!”

Presentes no cotidiano, as “narrativas de si” se tornaram um comportamento comum àqueles que vivem na sociedade atual. Esse modo de fotografar ganhou uma dimensão jamais imaginada antes da era das redes digitais. A produção e publicação dessas narrativas fazem parte das práticas culturais das crianças e correspondem às principais narrativas selecionadas pelos sujeitos desta investigação.