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NATUREZA E CULTURA

No documento História ambiental da erva-mate (páginas 41-44)

1 INTRODUÇÃO

2.2 NATUREZA E CULTURA

Esta parte do texto, na qual os humanos não figuram como os principais atores da história, visa compreender a dinâmica da natureza, que é muito anterior a própria ação humana. Ela corresponde ao esforço que o historiador norte-americano Donald Worster denominou de primeiro nível da história ambiental e que “envolve a descoberta da estrutura e distribuição dos ambientes naturais do passado”. Para este autor “Antes que se possa escrever sobre a história ambiental, deve-se primeiro entender a própria natureza – especificamente como a natureza estava organizada e funcionava nos tempos passados.”40 Em uma lógica clássica de separação entre natureza e cultura, a primeira corresponde ao “mundo não humano, o mundo que não criamos em nenhum sentido primário”, enquanto que a cultura é fruto da ação e da criação humana, uma “segunda natureza”. Worster, que é reconhecido como um dos fundadores da história ambiental, aponta a existência de uma grande dificuldade para diferenciar natureza e cultura, isto é, “à medida que a vontade humana crescentemente deixa sua marca sobre as florestas, cadeias genéticas e mesmo oceanos, não há uma maneira prática de se distinguir entre o natural e o cultural”. Entretanto, para aquele autor “vale a pena manter a distinção, porque esta nos lembra que nem todas as forças que trabalham no mundo emanam dos humanos”.41 A simultânea dificuldade e necessidade de diferenciação entre natureza e cultura também é ressaltada por Simon Schama, para quem

...a paisagem é obra da mente. Compõe-se tanto de camadas de lembranças quanto de estratos de

37 PRIMAVESI, Ana. Manejo ecológico do solo: a agricultura em regiões tropicais. São Paulo: Nobel, 2002. p. 100.

38 CARPANEZZI, Antonio A. et al. Queda anormal de folhas de erva-mate (Ilex

paraguariensis St. Hil.) em 1983. Anais do X Seminário sobre atualidades e perspectivas florestais: silvicultura da erva-mate. Curitiba: Embrapa/IBDF, 1985. p. 142.

39 REITZ; KLEIN; REIS, op. cit., p. 288-289.

40 WORSTER, Donald. Transformações da terra: para uma perspectiva agroecológica na história. Ambiente & Sociedade. v. V, n. 2, ago./dez. 2002. v. VI, n. 1, jan./jul. 2003. p. 26. 41 Ibidem, p. 25-26.

rochas. Claro está que, objetivamente, a atuação dos vários ecossistemas que sustentam a vida no planeta independe da interferência humana, pois eles já estavam agindo antes da caótica ascendência do Homo sapiens. Mas também é verdade que nos custa imaginar um único sistema natural que a cultura humana não tenha modificado substancialmente, para melhor ou para pior.42

Os humanos não estão ausentes deste primeiro capítulo, pois os conhecimentos sobre a natureza são fruto do trabalho de botânicos, entomólogos, biólogos, ecólogos, agrônomos e outros cientistas que, desde o século XIX, fazem esforços intelectuais para classificar, catalogar, compreender e explicar a natureza em sua complexidade e dinâmica. Neste sentido, Worster argumentou que:

Podemos supor também que a natureza se refere a algo radicalmente distinto de nós, que ela está em algum lugar “lá fora”, parada, sólida, concreta, sem ambigüidades. Num certo sentido, isso é verdade. A natureza é uma ordem e um processo que nós não criamos, e ela continuará a existir na nossa ausência. [...]. Ainda assim a natureza é também uma criação de nossas mentes, e por mais que nos esforcemos para ver o que ela é objetivamente em si mesma, por si mesma e para si mesma, em grande medida caímos presos nas grades de nossa própria consciência e nas nossas redes de significados.43

Schama enfatizou a dimensão cultural desta ideia. Em seu livro

Paisagem e Memória, analisou a formação de algumas paisagens

europeias e defendeu que:

Paisagem é cultura antes de ser natureza; um constructo da imaginação projetado sobre mata, água, rocha. Tal é o argumento deste livro. No entanto, cabe também reconhecer que, quando uma determinada idéia de paisagem, um mito,

42 SCHAMA, Simon. Paisagem e memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 17. 43 WORSTER, Donald. Para fazer história ambiental. Estudos Históricos. Rio de Janeiro,

uma visão, se forma num lugar concreto, ela mistura categorias, torna as metáforas mais reais que seus referentes, torna-se de fato parte do cenário.44

José Augusto Pádua reforçou os argumentos de Worster quando escreveu: “A história ambiental, como ciência social, deve sempre incluir as sociedades humanas. Mas também reconhecer a historicidade dos sistemas naturais. O desafio, […] é construir uma leitura aberta e interativa da relação entre ambos.”45 Warren Dean, que publicou uma precursora história da Mata Atlântica brasileira, disse que sua obra:

não é uma história natural; ou seja, não é uma explicação das criaturas da floresta e das relações que estas mantém entre si. É, antes, um estudo da relação entre a floresta e o homem. [...] a intenção foi a de retratar a Mata Atlântica como algo mais que uma atraente reserva de recursos ou um desafio à ambição humana.46

Escrever uma história da erva-mate exigiu estabelecer diálogos com diferentes ciências. Donald Worster, Enrique Leff, José Augusto Drummond, José Augusto Pádua e Manoel González de Molina, intelectuais reconhecidos por seu vínculo com a história ambiental, são unanimes em dizer que a interdisciplinariedade é condição essencial para escrevê-la.47 Sem um olhar que transponha as fronteiras das disciplinas, a compreensão da complexidade dos temas em estudo não é integral. A história ambiental pode, se considerar os conhecimentos da Biologia, da Ecologia, da Geologia, da Química, da Física e de outras ciências, compreender como funcionavam os ecossistemas no passado. A base para esta compreensão está na possibilidade de ampliar a escala

44 SCHAMA, op. cit., p. 70.

45 PÁDUA, José Augusto. As bases teóricas da História Ambiental. Estudos Avançados (São Paulo), v. 24, n. 68, 2010. p. 97.

46 DEAN, op. cit., p. 28.

47 WORSTER, 1991; LEFF, Enrique. Epistemologia ambiental. Tradução de Sandra Valenzuela. São Paulo: Cortez, 2001. p. 60. DRUMMOND, José Augusto. Ciência

socioambiental: notas sobre uma abordagem necessariamente eclética. In: ROLIM, Rivail

Carvalho; PELLEGRINI, Sandra Araújo; DIAS, Reginaldo (Orgs.). História, espaço e meio ambiente. Maringá: Anpuh-PR, 2000. p. 11-42. PÁDUA, 2010, p. 95. MOLINA, Manuel González de. La crisis de la modernidad historiográfica y el surgimento de la historia ecologica. In: História e meio ambiente: o impacto da expansão europeia - Actas do Seminário Internacional. Madeira, Portugal: Centro de Estudos de História do Atlântico; Secretaria Regional do Turismo e Cultura, 1999. p. 17-51.

do tempo histórico. Considerando que as mudanças evolutivas e adaptativas naturais acontecem muito lentamente, se pode inferir, por exemplo, que o processo de reprodução natural de uma planta estudada na segunda metade do século XX seja o mesmo que ocorria no século XIV. É evidente que neste período de seis séculos ocorreram mudanças ambientais que podem ter interferido na reprodução da planta, mas não ao ponto de alterar profundamente sua lógica reprodutiva. Dean lembrou que “talvez seja impossível representar a Mata Atlântica, exceto mediante sua analogia com a Floresta Amazônica ou reconstituição especulativa com base em extrapolações das faixas remanescentes ainda encontradas.”48 É precisamente uma representação aproximada da Ilex

paraguariensis em meio a floresta, dentro dos limites do possível, que

se faz nesta primeira parte do texto.

É difícil saber há quanto tempo as populações humanas conhecem e usam a erva-mate. Os humanos chegaram no Sul da América, segundo Arno Kern, entre 13.000 e 8.500 anos antes do presente.49 Sobre a interação destas primeiras populações com a floresta se têm poucas informações. Os relatos europeus sobre a utilização do mate por povos da etnia Guarani na América iniciam no século XVI, com destaque para a obra do padre Antonio Ruiz de Montoya, publicada em 1639.50 A atuação dos padres missionários da Companhia de Jesus em terras americanas, nos séculos seguintes, incluiu a extração de expressiva quantidade de erva-mate pelas populações Guarani organizadas em reduções.

No documento História ambiental da erva-mate (páginas 41-44)

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