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2 DAS ORIGENS DOS ESTUDOS CIÊNCIA, TECNOLOGIA E SOCIEDADE AO

2.3.3 Natureza da Sociedade

Santos (2008), ao fazer uma análise crítica da cultura e da política praticadas nas relações sociais, critica de modo contundente a ciência assentada no paradigma positivista que se fundamenta nas seguintes ideias:

distinção entre sujeito e objeto e entre natureza, sociedade e cultura; redução da complexidade do mundo a leis simples susceptíveis de formulação matemática; uma concepção de realidade dominada pelo mecanismo determinista e da verdade como representação transparente da realidade;

uma separação absoluta entre conhecimento científico – considerado o único válido e rigoroso – e outras formas de conhecimento como senso comum ou estudos humanísticos; privilegiamento da causalidade funcional, hostil à investigação das causas últimas, consideradas metafísicas, e centradas na manipulação e transformação da realidade estudada pela ciência (SANTOS, 2008, p. 15).

Esse autor pontua que esses ideais positivistas guiam não somente a ciência, mas também as sociedades fortemente influenciadas pela modernidade ocidental que tinham como tutores a Europa e os Estados Unidos, epicentros capitalistas. Nesse sentido, Santos (2008) recusa os modos de racionalidade, os valores e as narrativas desses tutores, buscando os excluídos dos modelos capitalistas, os quais chama metaforicamente de Sul.

Santos (2007) defende que elementos sociais subordinam a ciência aos interesses dos centros de poder econômico, social e político, orientando suas prioridades nas práticas científicas, o que nem sempre foi benéfico para a sociedade num sentido mais amplo, citando como exemplos as degradações ambientais e as bombas atômicas.

Beck (2010) defende que a busca por verdades absolutas e pelo interesse e progresso econômico direcionou os rumos da ciência na sociedade. Assim, esta se tornou uma “sociedade de risco” que, segundo esse autor, não reconhece e nem sabe lidar com os riscos por ela produzidos. No processo de modernização da sociedade industrial, o papel da ciência e da tecnologia são alterados e voltados a uma utilidade produtiva determinada pelo sistema, onde as ameaças e os riscos não são responsabilidades dela.

Esse autor prossegue indicando que o alto grau de especialização profissional, sua organização burocratizada e uma pretensiosa abstinência da práxis cegam a ciência, não permitindo que ela reaja aos riscos por ela mesmo produzidos.

Dessa maneira, um ciclo se retroalimenta e se expande no qual mais ciência produz mais riscos, e mais ciência se torna necessária para “resolver” esses riscos. O rompimento com esse processo ocorrerá quando for reconhecida a importância das ciências sociais e como as ciências naturais são orientadas pela política que devem fortalecer as instituições democráticas as quais devem representar a sociedade em sua totalidade, não privilegiando apenas a economia, o ciclo produtivo, o complexo industrial, a ciência e a tecnologia.

Moraes (2007) e Japiassu (2005) tecem críticas a um entendimento ingênuo que a população, em geral, tem em relação à ciência, considerando-a infalível, absoluta, condutora inexorável ao progresso e bem-estar.

De acordo com Japiassu (1999), essa supervalorização da ciência é caracterizada pelo cientificismo, que atribui à ciência o mito da salvação da humanidade, considerando que todos os problemas humanos são resolvidos por ela.

Da mesma maneira, atribui também o mito da neutralidade científica que isenta a ciência da devida reflexão sobre as suas consequências na sociedade.

Esse autor ainda indica que a ciência moderna nasce se contrapondo às crenças e à magia, entretanto sua atuação na sociedade acaba por produzir dogmas que são cultivados entre as pessoas, possibilitando o surgimento de crenças. Essas crenças surgem pelo fato de a ciência e tecnologia serem vistas ora como onipotentes e detentoras da “verdade absoluta” ora com descrédito por não conseguirem resolver todos os problemas demandados pela sociedade. Assim, Japiassu (2005) defende que a desmistificação da ciência (e da tecnologia) é algo necessário para que a sociedade a reconheça como uma produção social, que reflete os interesses de determinadas partes da sociedade.

Moraes (2007) pontua que a admiração ingênua para com a ciência nasceu em meados do século XVIII e teve seu ápice no século XIX, em que suas produções eram consideradas sempre benéficas para as pessoas. Tal admiração conferia também a ela uma característica de pensamento racional e objetivo que lhe atribuía um status cada vez mais alto, laureando-a de neutralidade frente às questões sociais.

Entretanto, a promessa de abundância e bem-estar a todos não se concretizou, gerando críticas ao seu desempenho a partir de meados do século XX, principalmente devido às catástrofes e guerras e às inúmeras inovações científicas e tecnológicas que não resultaram no progresso social prometido.

Dessa maneira, a CT é, paradoxalmente, enaltecida e rechaçada pela sociedade. Essas visões dicotômicas não colaboram com o debate necessário sobre a CT, pois não expõem os interesses econômicos nem os valores sociais que direcionam suas intenções. Assim, Moraes (2007) alerta que é necessário observar os dois lados da ciência, ou seja, para as implicações positivas e negativas que tanto a ciência quanto a tecnologia produzem. Isso só será possível se a sociedade souber administrar o desenvolvimento científico-tecnológico, evitando ao máximo seus males, dentro de padrões morais e éticos ajustados às necessidades humanas e não ao sistema de produção atual.

Morin (2005) pontua que apesar de as ciências terem logrado grande quantidade de conhecimentos, também produziram muita ignorância devido à falta de contextualização. Para ele, uma reforma do pensamento é de extrema necessidade, buscando a ruptura com o modelo atual centrado na lógica da centralização, separação e hierarquização do conhecimento, pois esse modelo não dá condições para a apreensão da complexidade existente nos problemas da atualidade. Assim, a crítica de Morin (2005) vai além da ciência, estendendo-se a outras áreas de conhecimento e na organização social geral.

Além disso, afirma que “para conceber e compreender esse problema, há que acabar com a tola alternativa da ciência ‘boa’, que só traz benefícios, ou da ciência

‘má’, que só traz prejuízos” (MORIN, 2005, p. 16). Dessa forma, Morin (2011) e Moraes (2007) afirmam que é necessário um pensamento que seja capaz de compreender e perceber a complexidade inerente à ciência e à tecnologia.

A reforma do pensamento defendida por Morin (2005) consiste em reconhecer a verdadeira racionalidade imbricada com a afetividade, ultrapassando a racionalidade abstrata, e que dialogue com o real. Isso permite conhecer os limites da lógica, do

mecanicismo e do determinismo existentes no pensamento atual, abrindo espaço para a crítica da especialização e da abstração exageradas, rumo a uma organização mais articulada e contextualizada entre os conhecimentos (MORIN, 2009).

A preocupação desse autor com a participação social é perceptível quando ele afirma que “aciência é um processo sério demais para ser deixado só nas mãos dos cientistas. Eu completaria dizendo que a ciência se tornou muito perigosa para ser deixada nas mãos dos estadistas e dos Estados”, assim como ao indicar que […]

“precisamos ir ao encontro dos cidadãos. É inadmissível que esses problemas permaneçam entre quatro paredes; é inadmissível que esses problemas sejam esotéricos” (MORIN, 2005, p. 133). Assim, ele defende uma “política da humanidade”

em detrimento de uma “política de desenvolvimento”, o que permite o desenvolvimento da solidariedade entre os povos, evitando, assim, as interferências do modo de produção na manipulação desses povos. Para que isso ocorra, as decisões científicas devem passar pela reforma do pensamento na sociedade, abandonando o paradigma simplificador na busca do paradigma da complexidade (MORIN, 2011).

Habermas apud Zatti (2012) apresenta relevantes conceitos criticando a elevada racionalidade instrumental atribuída ao desenvolvimento técnico-científico como a única instância de verdade na sociedade. Habermas não propõe uma ruptura radical com a razão técnica, mas situá-la na compreensão da realidade, visto que não acontece uma crítica social à validade excessiva atribuída ao pensamento científico e tecnológico, a redução da práxis, a técnica e a universalização da ação racional a todas as esferas sociais (MACCARTHY, 1995).

Para Zatti (2012), esse filósofo alemão defende que a racionalidade comunicativa é o caminho para a libertação do mundo colonizado pelo sistema de produção, tecendo críticas intensas ao positivismo, à tecnocracia e à filosofia da consciência.

Ao criticar o positivismo, Habermas (1982, p. 23) apresenta a seguinte definição: “Recusar a reflexão, isso é o positivismo”. Essa recusa se dá pela confiança depositada no método científico, o qual intitula-se como a única maneira de se chegar à verdade. Assim, o positivismo nega a racionalidade construída dentro da interpretação e compreensão que ocorrem nas comunidades de pesquisadores num processo de debate crítico a fim de se obter o consenso para validar suas teorias (HABERMAS, 2011). Os efeitos do positivismo na técnica e na ciência são nocivos,

fortalecendo o sistema capitalista dentro da sociedade, apresentando o fazer científico e tecnológico como neutros e a-históricos. Nessa visão, as forças produtivas operam indicando que seu intento é a legitimação das classes dominantes que influenciam o sistema de trabalho social e excluem a população da discussão pública e política (HABERMAS, 2009). Nesse sentido, a crítica habermasiana se concentra também na filosofia da consciência, a qual defende a primazia do sujeito sobre o objeto, em que este é controlado por aquele, cujas categorias levam à construção de um saber objetivo no mundo onde a racionalidade se apequena ao modo como o sujeito, isolado, se orienta frente aos conteúdos de suas representações. Assim, ele defende uma intersubjetividade, em que a razão é intersubjetiva e interativa, buscando outros participantes na procura de um entendimento. Nesse aspecto, a linguagem se constitui nessa interação como recurso que insere a racionalidade comunicativa.

Os autores aqui apesentados não esgotam as discussões sobre a NdS dentro dos propósitos desta investigação. Contudo, as posições evidenciadas são suficientes para dar o suporte teórico necessário, compreendendo que, tanto a ciência quanto a tecnologia, são produções sociais orientadas por um modelo de produção que influencia a dinâmica social. Assim, o debate sobre a NdS dentro das pesquisas científicas e tecnológicas permite retirar a centralidade conferia aos tecnocratas ampliando a participação dos demais cidadãos.

Essas reflexões sobre a natureza da ciência, da tecnologia e sociedade elucidam e ampliam os horizontes sobre concepções simplistas e ingênuas cultivadas entre as pessoas. Tais concepções são pretensiosamente cultivadas buscando olhar a natureza de cada uma sem considerar as suas particularidades, mas também sem identificar as inter-relações existentes e como uma impacta sobre a outra. Ao entender que não existe neutralidade tecnocientífica, e que seus produtos nem sempre são bons para a humanidade, começa-se a romper com as influências do sistema capitalista vigente.

Essa percepção de que tanto a ciência quanto a tecnologia contribuem com a característica social moderna de dominação, colonialismo e hegemonia dos povos pode possibilitar reflexões e debates importantes nas diversas áreas do conhecimento, influenciando ações que possam romper com essa caracterização.

Dessa maneira, o próximo tópico a ser discutido será as influências da Educação CTS no Ensino de Ciências, em que será refletido como o processo de ensino pode colaborar com esse rompimento.