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A principal diferença do mercado lícito para o ilícito, como o da maconha, advém do fato que o segundo não tem uma legislação que regulamenta questões como a contratação de mão de obra, a faixa salarial, o recolhimento de impostos, a garantia de padrões de qualidade dos produtos finais, entre outras. Ademais, diferente de atividades ilícitas como o roubo, que apenas transfere riquezas, já que a perda da vítima é o ganho do assaltante, a atividade associada a cadeia produtiva da maconha, e das drogas de maneira geral, produz riquezas porque, em todas as etapas de sua cadeia produtiva, ocorre a geração de emprego informal, a aquisição de insumos e de matérias-primas e a circulação dessa mercadoria em diferentes redes de comércio ilícito – etapas que evidentemente geram renda e agregam valor ao produto final (SOUZA, 2015). Nesse sentido, a maconha é um grande negócio ilícito.

O desenvolvimento da agricultura de maconha, tal como o de outros produtos agrí- colas, passa por diversas etapas de produção: a preparação do solo, o plantio, a limpeza da plantação, a colheita, entre outras. Devido ao seu caráter ilegal, as informações acerca de cada fase do cultivo e as técnicas utilizadas no processo de produção são bastante esparsas. Ainda assim, algumas notícias do Diário de Pernambuco fornecem uma ideia sobre o calendário agrí- cola e alguns detalhes do plantio. Ao que se sabe, as sementes eram plantadas duas vezes por ano e a erva era colhida em março e ao final de setembro250. Ou seja, a agricultura de maconha era uma cultura de ciclo curto, dado que o agricultor colhia duas safras anuais – uma vantagem produtiva se comparada às culturas que davam apenas uma safra anual.

O Diário de Pernambuco também publicou algumas notícias que descreviam como ocorria o plantio das sementes de maconha. Conforme o relatório da Operação Despedida, já

250 Maconha sai de Pernambuco e Alagoas para o sul do Brasil e Países estrangeiros. Diário de Pernambuco. 6 de setembro de 1957, p, 18 e 24.

trabalhado no Capítulo 3, essas sementes eram primeiramente plantadas em sementeiras adap- tadas em latas de querosene, para a geração de mudas. Depois disso, essas mudas eram replan- tadas em covas, que admitiam por volta de 5 pés cada251. Embora não fique claro as motivações para um plantio em sistema de covas, é possível que essa estratégia garantisse que ao menos um dos pés chegasse a vida adulta e produzisse as flores desejadas. Além disso, muitas vezes a maconha era plantada em consorcio com outras plantas – principalmente milho, banana e feijão – como meio de proteger o plantio ilícito. Essa estratégia foi bastante utilizada ao longo do período analisado, dada que pelo menos 8 notícias descreveram a existência dessa manobra em plantações descobertas pela polícia252.

As notícias também sugerem que a agricultura de maconha pouco a pouco passou por melhoramentos técnicos. Por exemplo, em uma notícia de março de 1978, que tratava dos desdobramentos da Operação Jaguar, a reprodução de uma fala do Delegado Wladmir Cutarelli trazia que uma dessas plantações, descoberta na Ilha do Canal, em Belém de São Francisco, surpreendera os agentes da polícia “pelos processos avançados e sofisticados empregados pelos proprietários, que implantaram arrojados métodos de irrigação e terras completamente aduba- das”253. Em notícias posteriores, a utilização de defensivos agrícolas e a presença de uma rede

de irrigação se tornam mais frequentes. Em 1979, por exemplo, o superintende da Polícia, Wal- ter Soares, concedeu uma entrevista sobre a destruição de um plantio de maconha, na divisa entre Pernambuco e Alagoas, avaliado em Cr$ 3 milhões. Segundo o Superintendente, essa plantação recebia adubagem e irrigação, bem como empregava 10 trabalhadores assalariados254. Por fim, vale retomar uma reportagem já trabalhada acima que, embora extrapole a periodização da tese, de fevereiro de 1984, contribui para mostrar as presenças da irrigação, da utilização de insumos agrícolas e da mão de obra assalariada. Segunda a notícia, no Município de Casa Nova, a polícia descobriu uma plantação de maconha com 162 mil metros quadrados. A plantação, às margens do lago de Sobradinho, era toda irrigada e adubada e empregava 20 trabalhadores as- salariados, dos quais 12 foram presos pela polícia255. De certo modo, esses exemplos sugerem que parte da modernização agrícola baseada na racionalização do uso da terra e na aplicação de técnicas produtivas, inicialmente direcionada para a fruticultura e outras culturas agrícolas do Vale do São Francisco, também foi utilizada na agricultura de maconha, o que certamente aju- dou para a sua consolidação no sertão pernambucano.

251 Apreendidos dois quilos de maconha. Diário de Pernambuco. 17 de fevereiro de 1979. Página 17.

252 Notícias publicadas nas seguintes datas: (11/04/1962, p, 6); (3/08/1971, p, 24); (1/01/1972, p, 59); (11/12/1973, p, 12); (13/07/1974, p, 12); (8/07/1975, p, 14); (28/08/1975, p,14); (13/06/1980, p, 17);

253 Interior produz 40% da maconha do País. Diário de Pernambuco. 4 de março de 1978, p, 15. 254 Descoberta plantação de maconha em Alagoas. Diário de Pernambuco. 22 de maio de 1979, p, 17. 255 Federal apreende maconha. Diário de Pernambuco. 25 de fevereiro de 1984, p, 8.

Ainda que as notícias do Diário de Pernambuco tragam vestígios sobre a estrutura produtiva da maconha no tocante à mão de obra, a uma rede de irrigação e à aplicação de insu- mos agrícolas, as demais etapas do processo produtivo – colheita e secagem, por exemplo – não apresentam informações consistentes. Por outro lado, em relação ao processo de armazena- mento, as notícias informavam e até mesmo mostravam, por meio de fotografias, que a maconha era, normalmente, acondicionada “em sacos”256. Assim, depois de embalada, se não fosse des- coberta e apreendida pela polícia, essa maconha estava pronta para entrar no circuito comercial.

O preço de mercado e o risco da atividade ilícita

Inferir os ganhos com a produção de maconha não é tarefa trivial, seja em virtude da ilegalidade dessa produção, seja em virtude da natureza da fonte analisada. Mesmo assim, embora o Diário de Pernambuco não trouxesse informações perenes sobre os preços desse pro- duto, algumas notícias abordavam essa questão, o que, de certo modo, fornece uma amostra qualitativa e esparsa sobre os rendimentos da agricultura de maconha. Ao longo do período analisado, os preços foram apresentados de duas formas distintas pelo jornal.

A primeira forma consistia em declarar o montante total, em dinheiro corrente, que seria adquirido com a venda dessa mercadoria. Nesse caso, não havia uma separação entre o montante pertencente ao agricultor e o montante adquirido por cada um dos participantes da rede de tráfico (atravessadores, vendedores, entre outros). A forma como as notícias eram es- critas sugere que o jornal simplesmente repassava um cálculo realizado pela polícia, que, por sua vez, seguia a seguinte regra para determinar o montante: (1) calculava a quantidade de maconha apreendida; (2) estimava quantos cigarros poderiam ser feitos; e (3) multiplicava a suposta quantidade de cigarros pelo seu preço corrente nos centros urbanos. Uma entrevista do delegado Wladmir Cutarelli, de 1978, ajuda a elucidar esse procedimento. Na ocasião, Cutarelli afirmou que naquele ano foram destruídos 127.060 pés de maconha. Segundo seus cálculos, cada pé produziria 1 kg de maconha, que renderia mais de 120 toneladas. Se transformada em cigarros – fininhos – produziria 423.698 unidades, que, vendidas ao preço de Cr$ 25,00 cada, movimentaria a importância de Cr$ 10.592.450257. Essa foi a principal forma de divulgação dos preços de maconha ao longo do período analisado: 25 matérias no total258.

256 Apenas para citar alguns exemplos de maconha pronta e acondicionada em sacos, ver notícias publicadas nas seguintes datas: (17/09/1979, p 24); (3/10/1964, p, 7); (8/05/1971, p 24).

257 Apreensão de maconha foi maior em 78. Diário de Pernambuco. 30 de dezembro de 1978, p 15

258Conforme notícias publicadas no Diário de Pernambuco nas seguintes datas: (5/06/1947, p, 3); (18/05/1951, p, 2); (16/10/1952, p, 4); (2/10/1958, p, 10) (28/02/1959, p, 6); (18/09/1960, p, 13); (1/10/1961, p, 1); (3/06/1964, p, 7); (4/07/1964, p, 5); (27/04/1968, p, 8); (30/01/1968, p, 7); (26/03/1970, p, 24); (30/03/1970, p, 28); (17/09/1970, p, 24); (22/05/1975, p, 14);

A segunda forma consistia na divulgação do preço que um produtor rural recebia por quilo de maconha. A primeira notícia desse tipo data de março de 1947 e tratava de um caso em que o agricultor Sebastião Horácio, morador de Santana do Ipanema, foi preso por vender “erva” na cidade de Recife a razão de Cr$ 155,00 quilo259. Apenas para fazer uma comparação,

no ano de 1947, a renda adquirida com a venda de um quilo de maconha equivalia a um ano de assinatura do jornal Diário de Pernambuco ou cerca de 50 quilos de feijão260, de acordo com os preços correntes divulgados pelo próprio jornal.

Em uma matéria de 1971, outro exemplo, o jornal discorreu sobre a destruição de um cultivo na propriedade de Cicero, no Município de Arcoverde. O proprietário revelou que vendia 1 kg de maconha por 80 cruzeiros, mas que já havia vendido por até 200 cruzeiros261. Sete anos mais tarde, já no contexto das operações de destruição de plantio, planejadas pela Polícia Federal, o Delegado Wladmir Cutarelli afirmou que, em 1978, no Município de Belém de São Francisco, o quilo de maconha variou de 2 mil a 4 mil cruzeiros262. Já em reportagem

de 1979, consta que o superintendente da Polícia Federal de Alagoas, Walter Soares, declarou que a polícia alagoana destruiu uma plantação de maconha avaliada em Cr$ 3 milhões. Um dos envolvidos declarou que naquele Estado um quilo de maconha valia 10 mil, mas se fosse levada para o Sul do país, a mesma quantidade chegaria a 30 mil ou mais, caso houvesse a escassez do produto263.

Tabela 4.6: Preço, em cruzeiros, de produtos de lavoura temporária

Produto Belém de S.

Francisco Cabrobó Floresta Petrolina

Santa M. da Boa Vista Mandioca 3,28 2,31 4,95 2,41 2,69 Milho 12,15 11,15 10,52 8,61 13,12 Cebola 11,57 10,39 11,91 10,49 10,24 Tomate 5,98 4,78 2,77 3,79 4,06 Feijão 62,17 59,98 48,18 42,33 62,93

Fonte: Adaptado de Censo Agropecuário de Pernambuco (IBGE, 1980).

(28/08/1975, p, 14); (25/09/1975, 14); (28/09/1976, p, 12); (7/03/1978, p, 1); (4/11/1978, p, 15); (10/01/1979, p, 21); (5/10/1979, p, 17); (13/06/1980, p, 17); (13/05/1980, p, 1); (21/07/1981, p, 1).

259 Espalhada no Recife a “Herva do Diabo”. Diário de Pernambuco. 26 de março, p 5. 1947 260 Diretoria de renda da capital. Diário de Pernambuco. 21 de maio de 1947, p 8.

261 Plantações de maconha são destruídas em duas cidades. Diário de Pernambuco. 14 de outubro de 1971, p 28. 262 Débito e importação forçam agricultores a cultivar maconha. Diário de Pernambuco. 13 de março de 1978, p 8. 263 Descoberta plantação de maconha em Alagoas. Diário de Pernambuco. 22 de maio de 1979, 17.

Os preços do quilo de maconha apresentados pelo Diário de Pernambuco nos últi- mos anos da década de 1970 parecem bastante atrativos. Apenas para se ter uma base compa- rativa, a Tabela 4.6 reúne os preços de gêneros alimentícios produzidos e comercializados em alguns dos municípios do alto sertão pernambucano. Vale destacar que, com exceção de Petro- lina, os demais municípios possuíam agricultura ilegal de maconha. Os dados da Tabela 4.6 foram publicados no Censo Agropecuário de Pernambuco de 1980. De acordo com esses dados, como a maconha era um produto aparentemente mais rentável, mesmo com os riscos de uma atividade ilícita, atraia parte dos trabalhadores do campo.

Embora o Diário de Pernambuco apresentasse ganhos bastante pujantes em relação ao suposto lucro adquirido pelos agricultores de maconha, para além desse lucro, o jornal tam- bém elencava outras motivações que os levavam a se arriscar. Para isso, o jornal realizava uma série de matérias em que problematizava a realidade socioeconômica do sertanejo. Essa questão ficou latente principalmente a partir de 1975, período em que a maconha se espalhou pelo sertão pernambucano e período que coincidiu com duas grandes secas.

Segundo o jornal, alguns aspectos econômicos nacionais eram determinantes para o envolvimento de agricultores com o plantio de maconha – ponto de vista reforçado sobretudo por meio de falas de terceiros. Wladmir Cutarelli e representantes da Segurança Pública, por exemplo, apontavam que a opção do governo de importar cebola argentina prejudicava a pro- dução de cebola do sertão pernambucano. Isso porque, essa importação causava uma queda no preço desse produto no mercado nacional, competitividade que desestimulava a produção ser- taneja264, plantada principalmente às margens do rio durante o ano inteiro265. O desestimulo aos produtores de cebola também era reforçado pelo jornal em entrevistas com os próprios produ- tores. José Apolínário de Siqueira, por exemplo, declarou que trabalhava no ramo há mais de 40 anos. No entanto, devido ao valor elevado dos insumos necessários ao plantio, e devido aos baixos preços de mercado (30 centavos por quilo), ele abandonou essa produção para se dedicar apenas ao comércio e a plantação de pastagens para seus rebanhos. Acrescentou ainda que, em tais condições, somente famílias com vários membros continuariam se dedicando a tal cultivo. Já os pequenos agricultores, possivelmente, desapareceriam da região. Em sua perspectiva, se não ocorresse algum tipo de mudança na política nacional, a produção de cebola também desa- pareceria do Vale do São Francisco dentro de alguns poucos anos266.

264 Débito e importação forçam agricultores a cultivar maconha. Diário de Pernambuco. Débito e importação forçam agricul- tores a cultivar maconha. Diário de Pernambuco. 13 de março de 1978, p 8; Freire acha negativa atuação de ministro. Diário de Pernambuco. 12 de abril de 1978, p, A-3;

265 Cebola pode sumir do S. Francisco. Diário de Pernambuco. 26 de março de 1978, p 17. 266 Cebola pode sumir do S. Francisco. Diário de Pernambuco. 26 de março de 1978, p 17.