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TERRA, PODER E RELAÇÕES SOCIAIS DE PRODUÇÃO

A terra, enquanto recurso natural, é limitada. No sistema capitalista, ela se transfor- mou em mercadoria fictícia e, portanto, tornou-se fundamental ao funcionamento desse modo de produção e de organização da vida (POLANYI, 1980). Nesse sentido, a maneira como a propriedade da terra está distribuída influencia a vida daqueles que vivem no campo ou que usufruem do seu excedente. O modo de ocupação e de organização da propriedade é um ponto fundamental na reprodução do subdesenvolvimento, porque nessa reprodução se identifica a presença de mecanismos de dominação social para a extração do excedente, muitas vezes de forma autoritária (FURTADO, 1981).

Nesse âmbito, a estrutura fundiária – maneira pela qual a propriedade da terra está dividida – é um dos recursos analíticos que ajudam a entender e a estudar, em termos de escala de área, a composição dessa propriedade. Porém, classificações como pequena, média ou grande propriedade podem não condizer com o que a terra de fato representa. As condições

geomorfoclimáticas, a densidade demográfica, o desenvolvimento econômico e social, o acesso a uma rede de transportes e o sistema agrícola, bem como outros fatores, igualmente importam (ANDRADE, 1963). Ciente dessas questões e dos riscos de propor um enquadramento rígido para uma realidade em geral mais complexa, mas sem outros documentos que permitam um mapeamento de todas essas sutilezas, o presente trabalho resgatou os índices do Censo Agrícola de 1960, para avaliar a distribuição das propriedades em Pernambuco. Logo, a Tabela 4.1 apre- senta o número de estabelecimentos agrícolas da década de 1950210 nesse Estado, período em que os cultivos de maconha começaram a se tornar alvo de ações repressoras mais efetivas.

Tabela 4.1 Estabelecimentos registrados em Pernambuco na década de 1950

Grupo de área em há Quantidade % Área %

Menos de 10 122.466 71,09 431.350 8,59 10 a 20 19.051 11,06 269.481 5,37 20 a 50 15.796 9,17 499.597 9,95 50 a 100 6.449 3,74 454.648 9,05 100 até 1.000 8.008 4,65 2.211.155 44,02 1.000 até 10.000 486 0,28 890.552 17,73 10.000 e mais 13 0,01 265.899 5,29

Fonte: Censo Agropecuário 1960.

Ao focar somente nas extremidades dos dados apresentados, é perceptível que os estabelecimentos com menos de 10 ha totalizavam 122.466 unidades e representavam cerca de 71% da quantidade total. Entretanto, ainda que em maior número, ocupavam conjuntamente menos de 9% do espaço rural pernambucano. Em contraposição, os estabelecimentos com mais de 1.000 ha totalizavam 499 unidades e representavam cerca de 0,3% da quantidade total. Con- tudo, ocupavam em torno de 22% do território rural. Ou seja, ao menos de acordo como o Censo Agropecuário, praticamente um quinto das terras rurais do Estado se dividiam em pouco menos de 500 propriedades. Mesmo com a suposição de que cada uma destas tenha um dono diferente, o que não necessariamente seja verdade, essa discrepância fornece um bom indicativo do quanto a propriedade da terra, em meados do século XX, estava concentrada nas mãos de poucos pro- prietários no Estado de Pernambuco – a mesma realidade encontrada em outros Estados brasi- leiros211.

210 Caio Prado Júnior (1979) foi o primeiro autor a trabalhar com os índices publicados no Censo Agropecuário de 1950 para melhor apreender as características da estrutura fundiária naquele período histórico.

211 De acordo com estudos desenvolvidos por Caio Pardo Jr (1979) que analisou os índices de concentração fundiária para todo o território brasileiro na segunda metade do século XX.

De certa forma, essa concentração fundiária moldou as relações sociais de produ- ção212 existentes no campo pernambucano – relações que em essência se estabelecem entre os homens e os meios de produção, em uma certa sociedade e em um dado tempo histórico, e orientam o processo produtivo (LOUREIRO, 1997). Nesse contexto, a organização do trabalho também é um elemento importante dentro dessas relações. Ciente disso, a Tabela 4.2 apresenta dados sobre a distribuição da organização social e o emprego da mão de obra no campo nor- destino entre as décadas de 1950 e 1960, de acordo com as principais categorias de ocupação.

Tabela 4.2 Distribuição da organização social do campo nordestino entre 1950 e 1960.

Categorias 1950 1960 Aumento (%)

Proprietários 609. 853 884.482 45

Administradores 54.346 75.293 38,5

Arrendatários 84.333 272.497 223,1

Ocupantes 96.107 175.708 82,7

Familiares não remunerados 1.615.959 2.820.702 74,5 Empregados assalariados permanentes 374.993 378.548 1 Empregados assalariados temporários 1.172.643 1.571.909 1

Parceiros 326.642 229.850 - 29,9

Outros (agregados, posseiros...) - 252,756 -

TOTAL 4.334.936 6.661.745 33,6

Fonte: Censo Agrícola (1960).

De modo geral, os dados apontam para uma certa diversidade em torno da organi- zação social do trabalho, tanto em relação à mão de obra quanto em relação ao uso da terra. Também mostram que, da década de 1950 à de 1960, houve um aumento de 45% no número de proprietários de terra – o Censo não revela o tamanho dessas propriedades – e um aumento de 223% no número de arrendatários – indivíduos que pagavam para explorar economicamente a terra. De acordo com a própria categorização do Censo, existiam 3 tipos de mão de obra assalariada: o administrador, o assalariado permanente e o assalariado temporário. O primeiro se destacou com um aumento de 38% enquanto o segundo e o terceiro permaneceram no mesmo patamar.

A despeito disso, é notório que os assalariados temporários eram em maior número do que os trabalhadores permanentes e, além disso, eram em bem maior número do que os

212 A estrutura fundiária e as relações sociais de produção do campo brasileiro já foram largamente estudadas e debatidas por teóricos de diferentes áreas do conhecimento o que suscitou distintas interpretações sobre o assunto. Sobre esse tema ver, por exemplo: (SODRÉ 1990); (GUIMARÃES, 1963); (PRADO JR., 1979); (SODRÉ, 1979); (FURTADO, 2007).

administradores, o que de certa forma revela que grande parte dos empregados eram contratados em momentos específicos da produção – como no plantio ou na colheita, momentos que exi- giam maior dedicação aos cultivares. Por outro lado, também é notório a acentuada diminuição do número de parceiros envolvidos no processo produtivo. Dadas essas considerações mais gerais, algumas dessas categorias merecem um tratamento mais pormenorizado.

Proprietários

Segundo Manuel Correia de Andrade, cerca de 85% dos pequenos proprietários pernambucanos se concentravam na região do agreste. Suas propriedades se dividiam em duas categorias. A primeira, denominada sítio, não ultrapassava 20 hectares enquanto a segunda, denominada “chão de casa”, correspondia a lotes com menos de 1 hectare. De modo geral, esses pequenos proprietários, dos brejos pernambucanos, formavam um estrato social que possuía um nível de vida bem inferior ao dos médios e grandes proprietários, mas que possuía melhor condição socioeconômica dos homens que trabalhavam em regime de parceria.

Esses pequenos proprietários, ou sitiantes, em geral não conheciam procedimentos técnicos para ajudar na preservação do solo e, como não dispunham de muito dinheiro, essen- cialmente plantavam produtos de subsistência – mandioca, feijão, milho e algumas árvores fru- tíferas. Além disso, em menor escala, plantavam alguns produtos para comercialização – café, castanha de caju e algodão. Esses pequenos produtores levavam, semanalmente, seu excedente para vender em feiras regionais. A organização dessa produção era assentada na mão de obra familiar, em que cada membro desempenhava um trabalho útil e concreto, segundo o momento e a necessidade. Nesse sentido, cada família mantinha uma certa divisão técnica do trabalho, articulada pelo processo de cooperação de seus membros, de forma a constituir uma espécie de trabalho coletivo (TAVARES DO SANTOS, 1978).

Além disso, esse pequeno produtor complementava seu orçamento familiar com a venda de sua força de trabalho para grandes e médios proprietários da vizinhança ou, em época de colheita, para produtores de cana de açúcar. Nesse último caso, ele migrava para a zona da mata em setembro e só retornava para a sua terra em março – início das primeiras chuvas e, portanto, recomeço do ciclo de plantio nos moldes da agricultura familiar (ANDRADE, 1980). Embora ocorresse essa articulação entre trabalho familiar e trabalho assalariado temporário, o modo de vida desses pequenos produtores se pautava majoritariamente pelo primeiro.

mais da produção são para autoconsumo, mesmo se aqueles que nela trabalham derivam uma renda complementar de atividade exterior. Por vezes as unidades de subsistência vivem em simbiose com a agricultura comercial. É esse um caso do binômio minifúndio-latifúndio caracte- rístico de estrutura agrária de grande parte da América Latina (FURTADO, 1981, p. 97).

Por outro lado, a categoria de proprietário que dispunha de condições econômicas para contratar trabalhadores temporários representava outro estrato social, o dos grandes e mé- dios proprietários. Normalmente, estes possuíam terras em abundância, mas nem sempre ti- nham condições ou interesse de explorá-las sozinho. Na prática, valiam-se de mecanismos, al- guns deles inclusive criados no período colonial ou imperial, que permitiam o uso de suas terras por terceiros e que, ao mesmo tempo, garantiam a manutenção de seus direitos jurídicos sobre elas. Nessa condição, o campo pernambucano adentrou a segunda metade do século XX com uma diversidade de relações de trabalho em torno do uso da terra. Em particular, agricultores sem-terra, residentes no agreste e o sertão, para garantir a sua subsistência, submetiam-se prin- cipalmente a dois tipos de concessão de terra: arrendamento e parceria.

Parceiros e arrendatários

A parceria é uma relação de produção econômica que ocorre na agricultura ou na pecuária, e eventualmente em outras atividades do setor rural, de tal forma que um proprietário de terra concedia uma certa porção de sua propriedade para um agricultor sem-terra, o chamado parceiro. Nessa porção, também denominada sítio, o parceiro e sua família se instalavam e ti- nham a permissão para criar alguns animais e para cultivar um roçado de subsistência. Em contrapartida, o parceiro se responsabilizava por produzir algum tipo de produto agrícola de interesse do proprietário. Dessa produção, o sitiante se comprometia a entregar uma parcela bem definida: a meia, a terça ou a quarta; que normalmente eram estabelecidas mediante con- trato verbal. No geral, como forma de impedir que o parceiro dedicasse a maior parte do tempo a sua lavoura, a área destinada a agricultura de subsistência era sempre inferior à área destinada à plantação em parceria (SIGAUD, 1977). Além disso, como forma de impedir que o parceiro se vinculasse à terra, as culturas produzidas nesse tipo de contrato eram sempre de curta duração (ANDRADE, 1963).

Nos idos de 1960, o tipo de parceria mais frequente no campo nordestino era o de meação (meia). Neste caso, os meeiros recebiam uma fração de terra, sementes e, em alguns casos, adubo e inseticida, necessários à produção estabelecida pelo proprietário. O acordo era

de que o meeiro devolveria 50% do valor gasto pelo proprietário na compra dos insumos e de que a produção também seria dividida em 50%. Muitas vezes, o contrato obrigava o meeiro a vender a sua parte ao proprietário por um valor equivalente a dois terços do preço corrente no mercado local (ANDRADE, 1963).

O sistema de parceria como relação social de produção se manteve, ao longo do tempo, pois era uma das formas de um proprietário de terras produzir a um custo relativamente baixo, por três motivos principais. Em primeiro, porque o proprietário transferia ao parceiro os riscos de eventuais prejuízos da cultura agrícola. Em segundo, porque o parceiro ficava respon- sável pela manutenção da plantação. Em terceiro, e último, porque, a depender da cultura agrí- cola, o proprietário possuía direito a palha, ou seja, a colocar seu rebanho bovino para comer os restos que sobravam (SÁ JR, 1973).

Além da parceria, a estrutura produtiva do campo nordestino também estava assen- tada no arrendamento de terra. Essa prática, bastante comum em todo o Brasil, geralmente se configurava como um sistema em que um agricultor, o arrendatário, pagava, em dinheiro ou o equivalente em produtos, pelo uso da terra de um proprietário (OLIVEIRA, 1991). Entretanto, Francisco Sá Jr., em viagem de campo realizada com a equipe técnica da SUDENE em 1966, constatou que a forma de arrendamento mais comum no Nordeste, e especialmente no Sul do agreste, era aquela cuja obrigação com o proprietário não consistia no pagamento em dinheiro e nem em produtos, mas sim em tempo de trabalho. Em arrendamentos com cerca de 5 hectares, o arrendatário, nessa modalidade de trabalho, era responsável por plantar e cuidar de uma cul- tura agrícola – normalmente palma ou capim, plantas forrageiras – em consórcio com uma agri- cultura de subsistência de ciclo curto. Passados dois ou três anos, a cultura forrageira atingia seu tamanho ideal para a alimentação do gado e, por isso, o contrato de arrendamento terminava. Caso o proprietário se interessasse por um plantio em outra área de sua propriedade, o contrato era estendido e a operação era reiniciada. Caso contrário, o arrendatário e sua família iam para a estrada à procura de um contrato em outra fazenda (SÁ JR, 1973). A Tabela 4.2, vista acima, releva que entre as décadas de 1950 e 1960 ocorreu um aumento de 223,1 % nos contratos de arrendamento no campo nordestino. Dada a constatação de Francisco Sá Jr, do mesmo período do censo, é provável que grande parte desses contratos se estabeleceram em arrendamento por tempo de trabalho.

Nessas relações sociais de produção, o pequeno agricultor sem-terra se sujeitava às condições impostas por proprietários, que normalmente ficavam com grande parte dos lucros e dos benefícios. Apesar disso, nessas relações, o proprietário não tinha um controle total sobre o conjunto do processo produtivo porque o agricultor era quem ditava a própria jornada de

trabalho, que variava conforme a época do ano e o ciclo dos produtos plantados, com períodos de intenso trabalho, como na época do plantio ou da colheita, e períodos mais livres – intermi- tência que possibilitava o desenvolvimento de outras atividades como o artesanato (OLIVEIRA, 1991). Além disso, esses pequenos agricultores tinham algum controle do pro- cesso de produção, uma vez que possuíam alguns animais e ferramentas de seu pertence. De maneira geral, como no caso dos pequenos proprietários, a organização das relações sociais de trabalho, no contexto da parceria e do arrendamento, também se estruturava fundamentalmente em um modelo de agricultura familiar.

Trabalhadores assalariados

Na década de 1960, de acordo com o Censo, os cerca de 2 milhões de trabalhadores assalariados no campo nordestino exerciam, sobretudo, atividades associadas às culturas de ex- portação como o açúcar, o algodão, o cacau e o arroz. Essas culturas, de maneira geral, estavam atreladas ao preço do dólar e eram vulneráveis às oscilações do mercado externo. Entre 1958 e 1961, o preço do açúcar estava desvalorizado. Em 1959, o preço médio do algodão caiu cerca de 25% do que vigorava no ano anterior. O cacau e a mamona também tiverem cotações meno- res nesse mesmo ano. Em 1964, ocorreu uma queda de 11% nas exportações de produtos pri- mários produzidos no Nordeste, como consequência de uma crise no mercado internacional que perdurou por alguns anos. Nesse cenário de instabilidade, o proprietário da terra e da produção preferia a contratação de trabalhadores temporários para flexibilizar um possível aumento ou redução da área produzida, conforme as demandas de mercado (SÁ JR, 1973).

Ademais, essa modalidade de relação sociais de produção era mais econômica para o empregador, pois apenas contratava a mão de obra nos meses necessários, sem o ônus de mantê-la em períodos que não houvesse necessidade imediata. Nesse sentido, e diferentes das relações vistas anteriormente, o proprietário não precisava fornecer uma porção de terra para um pequeno agricultor e sua família (SÁ JR, 1973). Num contexto de êxodo rural do campo nordestino, o perfil do trabalhador temporário consistia em homens livres, recém-chegados na cidade, mas que recebiam por serviços prestados na zona rural. Em 1963, Manuel Correia de Andrade destacou que um dia de trabalho no campo variava entre “Cr$ 80,00 a Cr$ 100,00” (ANDRADE, 1963, p. 110).

Nesse caso, as relações sociais de produção – diferente dos pequenos proprietários, dos parceiros e dos arrendatários – estavam inteiramente assentadas no modo de produção ca- pitalista, uma vez que o trabalhador estava separado dos meios de produção, vendia sua força

de trabalho em troca de um salário e possuía uma jornada preestabelecida e controlada pelo empregador.

Por fim, em face da estrutura fundiária e das categorias sociais de produção do campo vistas até o momento, a próxima seção analisa como todos esses aspectos se refletem na agricultura ilegal de maconha no agreste e no sertão pernambucano, principalmente pelas lentes do jornal Diário de Pernambuco.

4.2 TERRA E TRABALHO: OS ESTRATOS SOCIAIS ENVOLVIDOS NA PRODU-