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CRESCENDO ENTRE ECRÃS 2. USOS DE MEIOS ELETRÓNICOS POR CRIANÇAS (3-8 ANOS)

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A história dos videojogos enquanto meio de entretenimento tem mais de 40 anos. Contudo, ao longo da última década, por múltiplas razões, da tecnologia à transformação dos usos dos conteúdos audiovisuais, os videojogos tornaram-se ubí- quos nas comunidades. Se o cinema dominou toda a paisagem criativa popular no século XX, os videojogos posicionaram-se, neste início de novo século, como o meio de comunicação, ou forma artística, que se segue.

Assim, se a tecnologia se tornou imensamente mais acessível e os padrões de consumo de narrativas audiovisuais se alte- raram, no caso específico da atividade de jogo foi fundamental a transformação das vidas em sociedade, nomeadamente nas sociedades urbanas, no sentido da individualização. Os jogos tradicionais requerem, muitas vezes, espaços exteriores e um outro para se jogar, são atividades sociais por natureza. Com a tendência para a superproteção das crianças, nestas socie- dades urbanas, foram-se perdendo os espaços exteriores, foi aumentando o tempo de permanência em casa.

Também se intensificou a redução do núcleo familiar, ainda mais reduzido com o aumento da monoparentalidade e a diminuição de natalidade, nomeadamente de irmãos, como aponta o capítulo As Crianças nas Famílias em Portugal, de Ana Nunes de Almeida e Vasco Ramos, neste mesmo livro. Essa presença reduzida de irmãos é também encontrada nos resultados do inquérito nacional no âmbito do estudo Cres- cendo entre Ecrãs: usos dos media por ‘nativos digitais’ (3-8 anos), já publicados em relatório (Ponte, Simões, Batista Cas- tro e Jorge, 2017).

Os videojogos surgem como resposta a estas mudanças so- ciais, não surgem do acaso. Se se tornam dominantes na pai- sagem mediática é porque a sua procura é enorme, ultrapas- sando em alguns casos a rentabilidade do próprio cinema. É uma procura que os indicadores apontam como estando em crescendo contínuo para a próxima década. Mesmo para uma faixa etária tão precoce como a analisada neste estudo, dos três aos oito anos, os resultados daquele inquérito nacional dão conta de uma demografia de jogadores a rondar os 50%, com os mais pequenos menos presentes. Neste sentido, o ato de jogar todos os dias ou quase mais que triplica com a idade: de 12% das crianças de três a cinco anos sobe para 39% entre os seis e os oito anos (Ponte et al., 2017).

Como o mesmo relatório revela, apesar da presença forte da televisão nos lares, o acesso ao jogo operado por meio de ecrãs acontece maioritariamente através de tabletes, segui- dos pelos smartphones. Este tipo de acesso, por si só, define o modo de jogo - móvel e com sessões curtas - e o tipo de jogos - menos complexos, mais casuais e diversificados. São dis-

so exemplo os jogos apontados pelas crianças de seis a oito anos, diretamente inquiridas: “jogos de corridas”, “de futebol” e “de princesas” — objetos genéricos, que prendem mais pela novidade do que propriamente pelos atributos qualitativos de cada um.

Em termos de restrições, e tendo em conta a precocidade da faixa etária, a escolaridade dos pais e o estatuto socioeco- nómico parecem influenciar a permissividade do jogar diá- rio, tal como acontece com o tempo passado a ver televisão. Pode referir-se mesmo alguma semelhança destes padrões sociais nos videojogos com os da televisão. Para pais com maior preocupação com aprendizagens cognitivas, ou mais tempo para as mesmas, os videojogos tendem a ser perce- bidos como algo mais nefasto do que benéfico, incapazes de aportar algo positivo; nesse sentido, são meramente tolera- dos enquanto instrumentos de pausa recreativa. Por outro lado, a necessidade de impor controlo de tempo diário parece advir de alguma capacidade de os videojogos gerarem envol- vimento, e até adição.

Como tal, é inevitável falar no choque provocado por estes meios nos lares, integrando fascínio e medo: as crianças sen- tem atração pelos meios disponíveis, os pais sentem receio dos efeitos do seu uso. Isto é tanto mais relevante quando a cadência de estudos que vêm sendo produzidos na última década sobre o uso de tabletes por crianças, a violência dos media ou a adição pelos videojogos, dá conta, de forma alar- mante, de potenciais efeitos e impactos perniciosos, tanto no plano cognitivo como no plano moral. Como ler esta cadência?

A ciência e os ecrãs

A cultura dos videojogos, como a de qualquer outro meio de comunicação aquando do seu surgimento na arena social, tem vindo a enfrentar a fúria de entidades e comunidades, ‘encantadas’ pelo tradicionalismo conservador e munidas es- sencialmente com o medo do desconhecido. O seu lado mais fervoroso, ou extremista, move montanhas para demonstrar malefícios e prejuízos do uso dos videojogos, que vão desde artigos e colunas de jornais a programas de televisão, pas- sando pelo financiamento de dezenas de estudos científicos com o objetivo de demonstrar as suas visões e posições. Quando assim é, e tendo em conta a presença massiva re- cente dos videojogos na sociedade, as dúvidas que vão sen- do lançadas, na ausência de contraditório, acabam por ser aceites como verdades. Contudo, em Ciências Sociais — Psi- cologia, Sociologia, Comunicação, etc. — os estudos não são infalíveis nem o pretendem ser. Estas áreas de conhecimento

não pertencem ao domínio das ciências exatas pela simples razão de que lidam com seres humanos e não com entidades abstratas, como números, elementos químicos ou a cinemá- tica. A quantificação de um número de efeitos numa amos- tra de pessoas não significa, de imediato, que esses mesmos efeitos possam ser assegurados como sendo iguais para a restante população.

Por outro lado, e mais importante do que isso, é o modo como os estudos são feitos, nomeadamente em termos dos media, ambientes que lidam com a incapacidade de isolar as variá- veis. Ou seja, na análise dos efeitos de um programa de televi- são ou de um videojogo num determinado grupo de pessoas, os cientistas não podem evitar que tudo o que rodeia essas pessoas, no seu dia comum, possa ser evitado durante um certo período. Não se pode fechar a autoestrada que uma pes- soa usa para interagir com o mundo, para a limitar à relação com o objeto de análise.

Neste sentido, quando surge um novo estudo que nos diz que foram encontradas evidências de que o uso de ecrãs de tabletes usados por crianças abaixo dos dois, quatro ou seis anos, pode produzir deformações cognitivas a médio e lon- go prazo, devemos ser cautelosos na aferição daquilo que realmente é possível provar. Muitas vezes, e tendo em con- ta a idoneidade da maioria dos cientistas, os estudos nem sequer são peremptórios nestas afirmações, apenas suge- rem potenciais implicações, acabando por ficar a cargo de quem publicita o estudo dar a ênfase como melhor enten- der. Neste sentido, não devemos descurar a problemática da filtragem da ciência realizada pelos media. Muitas vezes a divulgação de resultados científicos é feita por pessoas sem treino na leitura dos estudos, que destacam aquilo que lhes parece ser mais capaz de criar maior fricção e, assim, chamar a atenção para o seu próprio texto em vez de para o estudo.

Outras vezes, os estudos são financiados por instituições que procuram munições na ciência para a sua evangelização, es- perando dessa forma ver plasmadas evidências que as pos- sam ajudar nessas agendas. Tal nem sempre acontece: alguns estudos encomendados acabam por nem sequer ser publica- dos porque os financiadores não gostaram dos resultados e, por isso, impedem a sua publicitação.

No passado, quando a televisão fazia uso de ecrãs de raios catódicos, os efeitos mais apontados para afastar as pes- soas dos mesmos eram os malefícios no órgão da visão: a proximidade e a duração de presença face ao ecrã pode- riam conduzir a efeitos irreversíveis, nomeadamente à ce- gueira. Hoje, e porque os ecrãs são mais seguros do que

grande parte de outros elementos a que estamos expos- tos, fala-se nos impactos no sono. No caso dos tabletes,

e porque os seus conteúdos conduzem a operações multi- tarefa, multiestimulantes e drenadoras de atenção, vai-se mais longe e fala-se em perda de contato com a realidade, em potenciais distúrbios de personalidade e até mesmo em atrasos cognitivos.

Durante anos, a Academia Americana de Pediatria, dos Es- tados Unidos, manteve como regra duas horas de consumo máximo diário de ecrã por crianças, uma regra amplamen- te citada e utilizada a nível internacional. Recentemente, contudo, no seu relatório de outubro de 2016, deixou cair esta imposição ao reconhecer que os ecrãs não são meros mediadores de consumo, que servem também aspetos pro- dutivos e criativos. Só peca por tardia esta decisão pois, se pensarmos nos tabletes em concreto, o seu uso pode ser muito diferenciado, com o tempo a circular por atividades que, previamente ao seu surgimento, se dispersavam por múltiplos espaços. Assim, no campo do consumo num ecrã de tablete podemos jogar videojogos, ver séries de anima- ção, ler livros, ler banda desenhada, ver e ouvir telediscos, etc. Já no campo produtivo, podemos incluir a procura de informação, a comunicação com amigos e/ou parentes dis- tantes, a escrita de textos e curtas mensagens, o desenho e a pintura, a edição de fotografia e vídeo, etc. Ou seja, seguin- do a regra das duas horas, estaríamos a impedir as crianças de aceder a um mundo vasto de conteúdos e possibilidades criativas, imprescindíveis para o seu crescimento em pleno século XXI.

Por um lado, a Associação Americana de Pediatria reconhece, deste modo, um erro, assumindo que se baseou em estudos orientados para demonstrar problemas que serviam propó- sitos menos claros e que não levavam em conta todo o uso e potencial dos ecrãs. Por outro lado, a continuada ausência de evidências claras dos impactos do uso dos ecrãs quando utili- zados para além dos tempos normativos contribuiu para que esses estudos acabassem por ficar desacreditados.

Neste sentido, mais do que o estabelecimento de tempos próprios, e reduzidos, para o consumo de ecrãs, interessa balancear as atividades realizadas com os ecrãs, evitar a repetição continuada de atividades, não tanto pelos pro- blemas que estas possam acarretar, mas pelo consumo de tempo que exigem, impossibilitando à criança aceder a outras opções. Do mesmo modo, não podemos esquecer que, por mais amplo que seja o mundo a que o ecrã permite aceder, há que proporcionar à criança tempo suficiente para dormir e para brincar ao ar livre, ativando o seu corpo e a sua motricidade.

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No documento As Crianças nas Famílias em Portugal (páginas 65-68)