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Do outro lado do espelho As culturas de pares e dos meios digitais cruzam-se no uni-

No documento As Crianças nas Famílias em Portugal (páginas 52-55)

verso familiar e novas tensões emergem nos relacionamentos entre pais e filhos. Questões ligadas à aquisição dos equipa- mentos, ao acesso a determinados conteúdos, aos espaços e tempos de utilização, à autonomia dos mais novos, às formas de acompanhamento, supervisão ou regulação parental e so- cial e à perceção dos riscos na sua utilização estão no centro do debate público. São situações na origem de conflitos ou di- vergências no seio das famílias e, nos seis bairros abordados, uma das situações que recorrentemente causa maior preocu- pação aos pais diz respeito à obtenção ilegal de equipamentos por parte das crianças, através de furtos ou roubos, estando os meios eletrónicos entre os bens mais cobiçados.

“Claro que pai tem culpa! Se uma mãe levanta as coisas que o filho traz para casa, se ela levanta, se fica, está a dizer ao filho para continuar a roubar…A mãe tem culpa. Ela sabe que ele não tem dinheiro e deixa ele entrar com ténis novos, roupa nova, é computadores, é PlayStation, é telemóvel e outras porcarias… onde é que ele foi buscar o dinheiro? Di- nheiro não cai na rua, não deve deixar ficar. O meu filho já sabe como é, uma vez apanhou porrada por- que pensava que eu não dava conta como as outras mães que andam por aí…” [mãe de seis filhos, entre os cinco e os 17 anos, 43 anos, sabe ler e escrever, empregada de limpezas, beneficiária de RSI]

Os processos de apropriação e uso dos meios eletrónicos, a co- meçar pelo ato da sua aquisição ou obtenção pelas crianças, influem na transformação das interações no seio da família e desta para com o exterior. Esta mãe destaca certos nichos de mercado que marcam a vida das crianças através da colonização dos seus mundos sociais pela indústria cultural e meios digitais, importantes instâncias de socialização na infância, com crescen- te valorização em idades cada vez mais baixas. A posse de meios eletrónicos adquire relevância ao permitir alcançar um estatuto social em locais onde os mesmos escasseiam. O reconhecimento obtido pelo uso deste tipo de equipamento entre pares leva a que se ganhe uma notoriedade e importância social que diferencia as crianças que os possuem daquelas que, vivendo ao lado, na mes- ma rua ou bairro, não têm capacidade para os ter.

A organização social é um fator determinante em bairros onde se regista uma concentração de desvantagens sociais. Em ter- ritórios marcados pela falta de acesso a recursos sociais dife- renciados, os residentes estão mais dependentes do ambiente físico e social para o estabelecimento de redes de suporte do que famílias que vivem noutros locais, onde esse suporte pode fundamentalmente não passar pelo espaço físico local. A orga- nização social dos bairros, que devia mediar os efeitos da des- vantagem ecológica no desenvolvimento das crianças, pode acabar por se constituir, de modo inverso, como elemento cata- lisador do conhecimento sobre práticas desviantes que se (re) produzem sem inibições tendo como alvo preferencial meios eletrónicos que dificilmente seriam adquiridos de outra forma.

“Depois eu fui embora, depois ele [William, 9 anos] ‘tava lá, depois eu fui embora, depois ele disse que fui eu, era mentira e caçaram com ele o jogo aqui [apontou para dentro das calças]… um CD de jogo para a PlayStation e ele tinha uma PlayStation em casa… eu não fui, ele é que meteu o jogo nas cal- ças… ele mandou eu esperar e eu fui para a porta e depois ele roubou!” [Rui, 8 anos]

“De vez em quando ele [neto: William, 9 anos] porta bem. Agora foi lá ‘tomar’ o jogo [risos], ele disse que foi ‘apanhar’ o jogo com o [Rui, 8 anos] (risos)… (…) Agora tenho de passar a fechar lá em casa à chave. Eu quan- do estou lá fecho a porta à chave para ver se ele não sai. Um dia foi lá casa um senhor, abri a porta e ele foi logo pela varanda, saiu...” – [avó, 51 anos, analfabeta,

empregada de limpezas, beneficiária de RSI]

As grandes superfícies comerciais e hipermercados localiza- dos nas imediações dos bairros, onde é maior a possibilidade de se passar despercebido no meio da multidão, são os locais privilegiados para estas práticas, recorrentes entre alguns

rapazes, logo a partir dos 4-5 anos. Este processo revela as possibilidades de mobilidade e autonomia, longe da supervi- são parental, que uma parte das crianças manifesta e que se estende além dos limites geográficos da zona de residência. As palavras da avó do William ilustram as dificuldades de supervisão e controlo e como facilmente se passa a medi- das educativas extremas, como o deixar a criança fechada em casa. Significativa é também a utilização de termos como ‘apanhar’ e ‘tomar’, em vez de furtar ou roubar, que se asso- cia a códigos de conduta onde a condenação moral dos atos delinquentes tende a fazer-se apenas a partir de um certo pa- tamar. O furto parece ser “naturalizado”, pela recorrência com que acontece, e é frequentemente desvalorizado ao ser visto como “uma coisa de crianças”.

A concentração territorial de desvantagens sociais nestes seis bairros reflete-se nas grandes fragilidades de controlo social que potenciam a existência regular de desordens que a todos afeta. No exemplo a seguir apresentado, relativo ao furto de um telemóvel de elevado valor por crianças entre os 8 e os 15 anos, verifica-se como duas outras mais novas, de 4 e 6 anos, acabam por ser envolvidas e usadas pelas mais velhas pela utilidade que representam.

“(…) pelas 22h o denunciante resolvia um proble- ma mecânico na sua viatura em rua no Bairro Cin- zento quando foi abordado pelos três suspeitos com idades entre os 8 e os 15 anos. Os indivíduos ao aproximarem-se do queixoso e enquanto os 2º e 3º suspeitos falavam com o mesmo distraindo-o, o 1º menor [Miguel, 8 anos] abriu a porta da frente, lateral direita, da viatura apoderando-se do tele- móvel, no valor de 375 euros, que se encontrava em cima do banco, pondo-se em fuga em direção ao [nome da rua], acompanhado do 2º menor [Carlos, 10 anos] e 3º suspeitos [Paulo, 15 anos] (…) Seguiu- -se perseguição policial e o terceiro rapaz foi mor- dido por um cão ao saltar e entrar em instalações de armazém. O canídeo encontrava-se preso por corrente e vacinado (…) A mãe do segundo rapaz recusou-se a fornecer a identificação do seu filho (…) O telemóvel foi recuperado na posse de duas crianças de 4 e 6 anos em rua no Bairro Azul que disseram ter sido o [Diogo, 16 anos] a dar-lhes e que os mandou entregar à polícia (…) A mãe do jo- vem [de 16 anos] colaborou e levou o filho à polícia tendo este sido constituído arguido (…) o jovem disse que o cartão do telemóvel estava na posse do primeiro rapaz [Miguel].” [excerto de ocorrência policial da Esquadra local da PSP]

CRESCENDO ENTRE ECRÃS 2. USOS DE MEIOS ELETRÓNICOS POR CRIANÇAS (3-8 ANOS)

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É relevante assinalar as diferenças nas mediações levadas a cabo pelas mães. Posições contrastantes num mesmo bairro revelam a heterogeneidade dos modos de vida desconstruin- do-se a visão redutora que coloca toda a população de um ter- ritório, visto como “problemático” pela opinião pública, num mesmo patamar, ignorando a complexidade da vida social. Noutros casos, a influência dos media e de programas de te- levisão é destacada pelas crianças para justificar as ações praticadas.

“Tínhamos visto igual nos “Morangos com Açú- car!”...” [Manuel, 6 anos, a propósito do seu envol- vimento em abuso sexual sobre colega de 6 anos, situação concretizada em grupo por cinco crianças de 6 e 7 anos]

Não é frequente ouvir-se falar de abusos sexuais em que as crianças envolvidas, agressores e vítima, têm ambos idades tão baixas e este é um caso excecional. É evidente que a in- fluência do que as crianças veem e acedem nos meios ele- trónicos acaba por manifestar-se na construção das culturas da infância e na justificação do Manuel encontra-se uma das possíveis formas mais negativas, pelo mimetismo e modela- ção a partir de uma situação retratada em telenovela. Mas, nestes territórios, a tendência que prevalece é a de que a re- alidade social que as crianças observam, e da qual participam quotidianamente, fornece mais modelos que justificam a sua adesão ao desvio e à não conformidade social do que as refe- rências divulgadas pelos media.

Aqui a realidade frequentemente ultrapassa a ficção. Espe- cialmente representativa desta constatação é a facilidade de acesso a objetos e bens perigosos, como o da Imagem 1 cuja aparência é a de um telemóvel, que são apropriados pelas crianças como brinquedos e utilizados entre pares como em qualquer outra situação lúdica quando, no fundo, se trata de uma arma.

Navalha com sistema automático de abertura, conhecida por navalha de ponta e mola, com isqueiro, em objeto com a apa- rência de um telemóvel usado por rapaz de 6 anos, no 1º ano de escolaridade, para brincar com os colegas no recreio da es- cola. A lâmina da navalha é acionada automaticamente para o exterior pelo carregamento numa das teclas e recolhe para o interior, ficando de novo oculta, por simples pressão para baixo. A chama do isqueiro é produzida pela fricção num botão colocado de lado e sai pela aparente antena do “telemóvel”. Este objeto foi apreendido e entregue à polícia apesar do pai do rapaz ter solicitado a sua devolução à professora da turma e à escola.

Figura 1

Fica patente o valor do telemóvel na interação social e como o mesmo, por ser um equipamento tão presente nas relações so- ciais, serve igualmente como disfarce para outros fins. Natural- mente, estes não são objetos pensados por ou para as crianças, mas que acabam por cair nas suas mãos e por elas são usados, seja por negligência parental e familiar seja por vontade cons- ciente de quem os entregou por considerar que as crianças, des- de muito cedo, precisam de se defender da violência nos próprios bairros, como afirmado pelo pai deste rapaz a quem foi apreen- dida esta navalha. Tratou-se da segunda apreensão de uma na- valha a este rapaz, depois de uma primeira situação ocorrida aos 4 anos de idade, quando ainda se encontrava a frequentar sala da educação pré-escolar, e também dada pelo pai à criança. Intrinsecamente ligada a estilos de vida que têm vindo a ser descritos neste contexto, assiste-se à emergência de um co- mércio paralelo e a formas de economia subterrânea, assente em produtos diversos, parte dos quais obtidos ilegalmente. Os meios eletrónicos são um dos alvos centrais das ações em que as várias crianças participam com uma aparente facilidade em que tudo se troca e tudo se vende. Não são práticas só dos mais novos encontrando-se largamente divulgadas entre os jovens e os familiares junto dos quais efetuam esta aprendizagem.

Outro aspeto digno de relevo diz respeito à perceção das crianças sobre os meios eletrónicos de vigilância, sobretudo no espaço público. Geralmente, este não é um motivo de in- teresse e, muito menos, de preocupação no quotidiano das crianças.

“– Lá no bairro meteram câmaras lá nos postes, câ- maras pequeninas. É preta, dá para ver (…) Às vezes mandam lá o irmão do [nome] tirar isso [Adilson, 9 anos, Bairro Branco]

– Vocês conseguem tirar as câmaras?

– Não conseguimos porque isso fica preso, só dá para partir com pedra pelo buraquinho [Adilson] – Mas já partiram alguma câmara?

– Sim, a mandar pedras e a subir lá. – [João, 9 anos] – Mas é só à noite que dá, essas câmaras… é fate- la!!! [Pedro, 8 anos]

– Tem também lá na obra para a gente não en- trar. Nessa obra… nós fomos lá… roubámos coisas para fazer cabana de pedra. Fomos, as câmaras estavam-nos a ver e depois o homem veio a correr e eu subi na rede e descemos lá para baixo, para o fundo… e veio o polícia lá de baixo e depois viemos a correr, subimos o mato e eles [polícia] disseram “sabe onde é a obra?” [João]

No entanto, para muitas daquelas que aqui vivem este é um importante tema de conversa, resultante da observação e partilha de informação entre pares.

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