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Niterói, maio de 2018 Meus encontros metodológicos

(Em maio de 2018 ou maio de 2020, não tenho certeza14).

São em tempos de crise que a epistemologia prospera. Mas nesta tese queremos assumir não uma epistemologia nas perspectivas das ciências clássicas, queremos, aqui, assumir uma heterociência, assumir a pesquisa como acontecimento e a cidade como esse local vivo desses encontros.

A pesquisa foi realizada com a metodologia da escuta, do encontro amoroso, como um cronotopo único e singular. Escuta aqui, como esse local, onde primeiro vem o outro, então enunciamos sempre em resposta. Entendemos que objetificar os sujeitos do ato é tornar o singular num coletivo abstrato, assim criando lugares de identidade. A perspectiva da identidade foi uma questão importante que procuramos enfrentar nessa pesquisa. Na escuta, não temos identidade, esse é o lugar da alteridade. Penso que a identidade é uma armadilha onde o sujeito tem a sua própria imagem como único centro de valor. Na alteridade ocorre justamente o contrário, são pelo menos duas vozes tensionadas em constante transformação. Estamos sempre no confronto, em alteridade.

Conversar com Bakhtin sobre hospitalidade foi um dos desafios dessa tese. Embora o autor não tenha falado explicitamente sobre esse tema, a escuta e o encontro são lugares muito oportunos para aproximá-los dessa relação. Essa aproximação é possível porque da mesma forma que Boff15 coloca a hospitalidade como a relação que acontece nos encontros sociais, a escuta de Bakhtin também o faz. Não existo sem escutar, escuta é diálogo. Preciso escutar, entrar em reciprocidade com o outro para pensar a hospitalidade. É nesse diálogo e é com a acolhida do outro que a hospitalidade surge, como essa abertura incondicional, sem trocas.

14 Pensei-estudei-escrevi o percurso metodológico em 2018, e voltei em maio 2020 atualizando

o que foi feito. Assumi o tempo verbal passado, mas decidi deixar a data da construção primeira do texto. Isso revela também as minhas limitações em 2018 e durante a pesquisa o processo que se deu na minha escritura.

É nessa concepção ético-estético-política do encontro e da escuta que nos constituímos sujeitos do ato, na verdade nos constituímos seres humanos, expressivos e falantes. É na relação com o outro que nos constituímos de ideias e outras palavras. Os sentidos e as definições da palavra hospitalidade se revelaram quando cotejamos os enunciados dos sujeitos do ato, os meus e da corrente teórica brevemente fundamentada, no texto intitulado Meus encontros teóricos. O que importou nesta tese foi deixar que os participantes revelassem suas enunciações e sentidos. Suas enunciações apareceram não como uma verdade única a ser seguida, mas como a sua verdade, desses sujeitos do ato que falam, desses sujeitos expressivos e falantes.

Não tive como admitir que esse processo ocorresse de forma linear, como por exemplo, na perspectiva da pergunta e resposta. Concordo com Bakhtin que ressalta a tensão do diálogo entre as palavras. Sobre as palavras, ainda com Bakhtin, acredito que não existe nem a primeira nem a última palavra. Sendo assim, como iniciar um roteiro de uma conversa sem conhecer esse outro? Primeiro desafio: minha tarefa foi essa, criar um cronotopo que oportunizasse estas conversas e ali estar em presença, no meu ato responsável, com esses sujeitos do ato. Tive muitos encontros amorosos e de alteridade. Para Bakhtin16 o acontecimento do encontro é complexo, e acontece quando dois ou mais sujeitos do ato se cruzam no mesmo lugar e tempo valorados. Também para dizer sobre o tempo e espaço valorados na literatura Bakhtin usa o conceito de cronotopo. Aqui eu trago o conceito de cronotopo para compor as minhas crônicas enquanto atos de compreensão respondente. Os encontros desta tese aconteceram no Centro da cidade do Rio de Janeiro. Meu primeiro encontro que tomei registro ocorreu na manhã do sábado de carnaval no ano de 2017, e os demais no último semestre de 2019, quando passei todas as quartas feiras realizando a pesquisa de campo para compor os encontros presentes nesta tese.

Nesses encontros cotejei novos sentidos, conversei com outros sujeitos do ato, também criei um plano dialógico onde não tivéssemos nem a primeira nem a última palavra, enunciei em resposta. Fui criando junto com os sujeitos do ato e os acontecimentos no cotidiano da cidade um espaço de diálogo em constante construção. Assim assumi a cidade como acontecimento. Nesse

sentido a cidade chamou para si a crônica como a narrativa do cotidiano. A cidade é então a matéria da crônica, a nosso ver o melhor gênero para dizer a cidade e seu cotidiano. Escrevi um conjunto de cinco crônicas, onde nesses textos as vozes dos sujeitos do ato inauguram uma outra cidade possível, um outro Centro do Rio de Janeiro do nosso tempo.

A cidade é para mim uma questão teórica e metodológica. Penso que o sujeito do ato desta pesquisa seja o passante presente na cidade em sua acontecimentalidade. Mas não o passante que eu compreendia no turismo, como o turista que passeia pela cidade, esse que pode não ver quase nada, se for guiado pelas perspectivas oficiais. O passante aqui é aquele da modernidade de Baudelaire, o flâneur que segue vestígios, criando a cada passo, a cada rua, a cada esquina, uma paisagem da sua cidade. Nesse sentido o que tivemos foram encontros de pelo menos dois centros emotivos volitivos, na cidade. Essa acontecimentalidade é, para nós, a base da heterociência, da pesquisa como acontecimento.

Então escutei a cidade e suas relações cotidianas, e a partir daí construí um plano polifônico para escutar essas vozes, sempre em resposta. Escutei os discursos na cidade – seus sujeitos, sua arquitetura, as diferentes possibilidades enunciativas que nela estão presentes. Mergulhei no cotidiano da cidade registrando em imagens e pequenos textos – crônicas – essa vida concreta e singular, e depois trouxe outras vozes para tensionar os meus escritos nas crônicas. Penso que a ironia das crônicas de Machado de Assis juntamente com a leitura de Bakhtin nos textos sobre a Cultura Popular, me ajudaram a construir esse plano polifônico.

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Petrópolis, janeiro de 2019 Barthes em Fragmentos de um discurso amoroso traz a lembrança dos amigos e livros “às vezes na margem do texto, sob a forma de nomes para os livros e de iniciais para os amigos” com finalidade de referenciar “o que seduziu, convenceu, o que proporcionou por um instante o gozo de compreender (de ser compreendido?)”17. Ele ressalta ainda que:

“deixemos, pois, esses lembretes de leitura, de escuta, no estado muitas vezes incerto, inacabado, que convém a um discurso cuja instância não é senão a memória dos lugares (livros, encontros) em que tal coisa foi lida, dita, escutada. Pois, se o autor empresta aqui ao sujeito amoroso sua “cultura”, em troca o sujeito amoroso lhe oferece a inocência de seu imaginário, indiferente aos bons estudos do saber”18.

Aqui nesta tese as citações, os textos dos amigos, as ilustrações, as memórias escritas pela mão do outro apareceram no corpo do texto. Além da citação na nota de rodapé usei outra fonte (letra), mas mantive o tamanho da fonte na tentativa de garantir uma certa equipotência no discurso do outro. Uma tentativa.

Nesse sentido já assumi uma perspectiva heterocientífica que, na tentativa de enunciar em gêneros múltiplos, alarga as possibilidades do dizer acadêmico. A imagem da cidade para esta pesquisa é uma questão teórica e uma questão metodológica. Não no sentido metodológico mais direto do fazer da pesquisa, do ato do pesquisador, mas no sentido de uma chave de entrada do problema, porque a cidade é esse lugar privilegiado. Um lugar complexo com vivências e possibilidades de ler as ações e relações humanas nas ruas. Aqui as ruas do Centro da cidade do Rio de Janeiro apareceram como um potente lugar metodológico e teórico. Metodológico porque me auxiliaram num projeto de pesquisa que pensou agora não só a cidade, mas um microcosmo dela: a rua; e também teórico, porque a rua foi essa unidade mínima onde os encontros aconteceram. A rua foi tomada em pesquisa como um microcosmo da cidade a ser compreendido. E teórico porque foi tomado como texto, leitura e escuta, esse espaço entendido como uma rede de significados e sentidos.

Mas não qualquer rua, aqui assumimos como Marcelo Moutinho a “rua de dentro” um lugar onde os corpos negligenciados pela linguagem oficial são os protagonistas em presença dessas conversas. Em Rua de Dentro, de 2020, Moutinho apresenta através de treze contos uma cidade que se desvia dos espaços glamourizados e mostra as belezas das ruas de dentro da Cidade do Rio de Janeiro. Porque as ruas de uma cidade não são tão grandes como um país, nem tão estreitas como uma sala de aula – mas uma cidade é uma delimitação complexa e viva de relações sociais muitas –, iremos fazer isto

seguindo as pistas da literatura. Lembrei de Carlos Drummond de Andrade, quando ele diz: “cada cidade tem sua linguagem nas dobras da cidade transparente”19.

Petrópolis, maio de 2020 Nas crônicas trouxe os registros enunciativos que fiz nessa minha jornada para compreender as questões dos encontros humanos, da hospitalidade no Centro da cidade do Rio de Janeiro, nas relações com os sujeitos do ato. Como já disse, o estudo compreende a hospitalidade como a qualidade dessas relações, desses encontros, dessa escuta. Pensei que realizar uma conversa com alguém que trouxesse para essa pesquisa, como nas entrevistas clássicas, iria acabar com o acontecimento, com o evento único e singular. Nesse sentido penso que o trabalho de leitura e compreensão dos encontros foi feito posteriormente, na atividade estética da escritura. Isso porque defendemos a ideia de que na vida tudo é acontecimento. Então seria um contrassenso explicar, seja a priori ou posteriormente, os acontecimentos. As crônicas são então a forma que encontramos de manter os enunciados da vida na vida, potentes e divergentes.

A proposta de trabalhar com a crônica como gênero discursivo teve como objetivo alargar o gênero dissertativo tese. Neste sentido haverá uma passagem do cotidiano para o texto dissertativo, e as crônicas são justamente esse gênero que tentará manter, na tese, a vida cotidiana em sua acontecimentalidade.

Ainda sobre metodologia de estudo, propomos uma leitura no Grupo Atos – UFF com os temas das pesquisas que estamos trabalhando junto com a orientação da professora Marisol Barenco. Propomos uma leitura onde o grupo como um todo pudesse se fortalecer com a leitura coletiva e solidificar suas próprias bases teóricas-metodológicas.

Meu primeiro movimento foi o de voltar para o projeto e o ler com o distanciamento do tempo. Queria compreender, para além da perspectiva teórica, a quem eu estava respondendo e qual era o meu lugar enunciativo no

texto acadêmico. Esse deslocamento foi importante para que eu pudesse compreender também meu processo de escritura, meus pensamentos.

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Depois da qualificação não tinha ficado muito claro como seria a pesquisa de campo. Numa tarde na casa de Ana Lopes, conversando com o professor Jader Janer, este deu a ideia de usar como ponto de pesquisa os lugares onde existem algumas estátuas no Centro da cidade do Rio de Janeiro. Eu já tinha trazido isso no texto, mas de forma muito superficial. Então criei esses pontos de pesquisa e por seis meses fiquei nos arredores das estátuas, conversando com elas sobre os encontros que tive no Centro da cidade do Rio de Janeiro.

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Então, por que penso meus pensamentos? Por que escrevo? Estou exercitando, ainda não respondo, então vou usar as palavras (próprias alheias) de Carlos Skliar, quando ele diz:

“Escrevo porque não compreendo. Para repetir de novo e de novo essa encruzilhada de palavras com a qual não consigo decifrar o tempo. Escrevo para recordar sons que de outro modo se perderiam no lado vertical da memória. Para invocar e provocar gestos de amor dos quais não seria capaz se não escrevesse. Escrevo porque ao despertar gostaria de agradecer pelos meus olhos abertos. Para olhar de pé o que está muito longe. Para escutar o que é que ficou na ponta de língua. Escrevo para renunciar ao abandono e para tocar como as mãos sigilosas as costas mornas de alguém que ainda não morreu. Escrevo. E ainda não sou capaz de dizer nada”20.

Penso que o maior desafio de escrever está no próprio fato de a palavra ser um lugar de tensão, sentidos e entendimentos controversos. Volóchinov21 ressalta que “a palavra na vida, com toda evidência, não se centra em si mesma. Surge da situação extra verbal da vida e conserva com ela vínculo mais estreito”. O autor segue na sua teoria apontando que “a vida completa diretamente a palavra, a que não pode ser separada da vida sem que perca seu sentido”22. Desse modo, penso que não tenho como fugir dessas palavras que me constituem. Elas precisam de mim. Enquanto autor sou a única forma de dar sentidos a elas. Esse é meu ato responsável, não tenho álibi na minha

20 SKLIAR, 2012, p.14 apud SKLIAR, 2014, p.99.

existência23.

Então, por que escrevo? Eu escrevo porque eu preciso. Porque só eu do meu lugar único e singular posso dizer essas palavras, com esses sentidos, desse jeito. Mas aprendi, estudando junto com Marisol e o Grupo Atos que essa escrita é feita no coletivo e com muitas vozes, muitas leituras. Foi aí que percebi que antes da minha escrita de tese, de pesquisa, precisaria enfrentar temas teóricos e metodológicos separadamente, acho que foi isso que fiz nos textos a seguir, pensei numa cidade, numa cidade enquanto um problema de pesquisa e estudei e escrevi junto com o Grupo Atos, cadernos de estudos teóricos e metodológicos. Depois trouxe as vozes dos sujeitos do ato da pesquisa na parte que intitulo O Rio de Janeiro do meu tempo.

Aqui retornei as palavras supracitadas em negrito e itálico e tantas outras que fizeram parte desta tese. Até agora nosso encontro foi com as palavras: encontro; escuta; alteridade; hospitalidade, cidade e cronotopo. São tantas as palavras importantes para essa produção textual que sabemos que outras surgirão ao longo da escrita da tese, nesse sentido elas serão gravadas e tensionadas no cronotopo em que elas aparecerem para mim. Essa escrita de algumas palavras em negrito e itálico foi uma estratégia para seguir a pista das palavras escolhidas para compor o argumento da tese, e também para não esquecer que eram as palavras que eu precisava cuidar durante o processo de escritura.

Niterói, março de 2018