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Niterói, março de 2018 Meus encontros teóricos

São grandes as tragédias do nosso tempo. Estava debruçado lendo o livro

“Virtudes para um outro mundo possível: hospitalidade – direitos e deveres de todos”, de Leonardo Boff e pensei na possibilidade de trazer os conceitos da

hospitalidade estudados na graduação para conversar com os autores da Educação.

Sobre o tema da hospitalidade fiz uma incursão nas teorias de Leonardo Boff, Conrad Lashley, Alison Morrison, Luiz Octavio Camargo, Jacques Derrida, Emmanuel Levinas, Fernando Fuão, entre tantos outros que me auxiliaram nos aspectos conceituais relativos à hospitalidade; e ainda com Mikhail Bakhtin, que é o nosso principal aporte teórico. Também com o Círculo de estudos bakhtinianos procurei ampliar o que defendo como hospitalidade aqui nesta tese.

Pensei nas limitações às quais já estava centrada a palavra hospitalidade. No turismo e nas ciências humanas ela sempre é pensada e estudada em categorias, lugares e espaços, mas creio que exista uma íntima relação da palavra hospitalidade com a palavra encontro. Meu conceito em formação acerca da hospitalidade centra-se na disposição para receber o outro e acolhê-lo em diferentes espaços-tempos nos atos da vida de forma voluntária. Então compreendi que me situar apenas nas aprendizagens construídas no campo do turismo seria pouco, queria pensar os conceitos da hospitalidade junto com os sujeitos do ato, envolvidos no processo da pesquisa. Então fiz a primeira afirmação: a hospitalidade, assumindo um papel fundado nas relações sociais, deve ser compreendida na singularidade dos sujeitos. Seria a tríade – dar, receber, retribuir – apontada pelos principais teóricos, as palavras centrais do conceito de hospitalidade? Até que ponto essa relação baseada nas trocas dá conta de um conceito tão complexo?

Essas correntes teóricas que estudei são meu primeiro movimento para construir um lugar teórico. Acredito que como a hospitalidade acontece no espaço-tempo do encontro, não pode ser categorizada. Porque categorizar um acontecimento seria matar o que se tem de mais rico no encontro humano, que é a multiplicidade dos pontos de vista. Assim defendo a ideia de que a

hospitalidade é a disposição voluntária-infuncional para receber o outro em diferentes espaços e tempos. Penso que somente na relação amorosa, no doar- se, esse doar aqui entendido como amor, como uma relação incondicional, podemos ter a hospitalidade na sua forma mais genuína. E para mim o que é inaceitável é a economia das trocas – isso vai contra o amor. É no encontro amoroso que vamos pensar as palavras para compor um conceito de hospitalidade.

Mas agora compreendo que o acontecimento é um encontro, e que como afirma Bakhtin isso ocorre no ato, singular do acontecimento:

“como resultado, dois mundos se confrontam, dois mundos absolutamente incomunicáveis e mutuamente impenetráveis: o mundo da cultura e o mundo da vida (este é o único mundo em que cada um de nós cria, conhece, contempla vive e morre) – o mundo no qual se objetiva o ato da atividade de cada um e o mundo em que tal ato realmente, irrepetivelmente, ocorre, tem lugar”24.

São desses encontros que a tese trata, dos encontros humanos, desses acontecimentos, desses atos singulares que, como um Jano bifronte, olha para a arte e para a vida.

Compreendo as relações educacionais em espaços formais e não formais. Nesse sentido construí um campo de estudo para compreender nos encontros (no Centro da cidade do Rio de Janeiro, com os sujeitos do ato da pesquisa) como se formam (se cria, se forja, se faz - porque é um acontecimento) as formas da hospitalidade em diferentes espaço-tempo.

As conversas com Bakhtin têm sido alteritárias, provocam em mim sempre esse deslocamento de sentido. Ele alerta que:

“O pensamento sobre o mundo e o pensamento no mundo. O pensamento que procura abarcar o mundo, e o pensamento que sente a si mesmo no mundo (como parte dele). O acontecimento no mundo e a participação nele. O mundo como acontecimento (e não como ser em prontidão)”25.

Assim, o que muda do sentido apresentado é que o pensamento no mundo é o pensamento que se forma no ato do acontecimento. Ele ainda enfatiza que “se transformamos o diálogo em um texto contínuo, isto é, se apagarmos as divisões das vozes o que é exatamente possível, o sentido

profundo desaparecerá”26. Bakhtin faz uma crítica à dialética de Hegel, segundo ele monológica. Bakhtin defende a ideia da divisão das vozes como uma possibilidade de alternância entre as enunciações dos sujeitos para que as enunciações possam ser infinitas e sem um ponto morto nos textos. A palavra é livre, ela circula entre os sujeitos, não existe nem a primeira nem a última palavra27. Nesse sentido tudo é acontecimento.

Se apagarmos nosso diálogo e dissermos que, mesmo que por um segundo, somos nós um só, destruímos todo nosso encontro. A escrita do encontro é então um acontecimento estético que, para ser realizado, necessita de dois sujeitos falantes, pressupondo assim duas consciências28. O encontro é sempre uma arena de tensão e de conflitos permanentes. Os encontros teóricos desta tese de doutorado já são essa arena de conflitos. Mas penso que essa tensão epistemológica se faz necessária. Não posso abrir mão ou colocar na estante quem tanto me ajudou a pensar na vida outras formas de ver a beleza do mundo.

Essa questão do diálogo é muito importante, e eu até então não compreendia a necessidade de pensar a questão do diálogo teoricamente. No “Palavras e contrapalavras Glossariando Conceitos”29 temos uma palavra

potente sobre o que os estudiosos de Bakhtin pensam sobre a palavra diálogo, segue a nota:

“Bakhtin sustenta que a unidade real da língua é o enunciado posto em diálogo: “a interação de pelo menos duas enunciações”. Como mundo partilhado, lida- se com o inconcluso, com a realidade em constante formação. Nesse mundo partilhado, afirma Bakhtin, vive-se “em um mundo de palavras de outro, de tal modo que as complexas relações de reciprocidade com a palavra do outro em todos os campos da cultura e da atividade completam toda a vida do homem”. A questão do diálogo se coloca como uma questão importante na tese, visto que entendemos e defendemos que na vida e via palavra do outro é que constituímos a nossa, e isso se dá nas relações dialógicas, na vida, e de forma inconclusa. No fim, o que temos é que “o diálogo real entre dois falantes é

26 BAKHTIN, 2011, p.401.

27 BAKHTIN, 2011, p.401.

28 BAKHTIN, 2011, p.401.

constituído por ao menos dois enunciados concretos plenos e acabados e se constitui na forma mais simples e clássica da comunicação discursiva”30.

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Nossa atitude em trabalhar com o conceito de alteridade em detrimento da identidade deve-se ao fato de que acreditamos que as relações dos sujeitos são constituídas de forma aberta, no encontro, na tensão das palavras.

As relações de alteridade e identidade constituem um campo de muitos conflitos. Talvez esses dois conceitos estejam presentes em quase toda a obra bakhtiniana. Para Bakhtin, os indivíduos só se constituem na relação de alteridade. Miotello31 afirma que a constituição do eu sempre é uma concessão do outro. Essa é uma relação constante ou, na verdade, mais que constante: é uma relação necessária entre palavras enquanto fenômenos ideológicos.

Nesse sentido podemos pensar a alteridade como um deslocamento dos sujeitos de seu centro de valor? Será que saímos do nosso centro de valor ou mantemo-nos nele? Ou os dois centros de valor encontram-se e daí surge a alteridade? Penso que essa também é uma relação provisória e muda na medida em que os dois sujeitos se alteram. Na verdade, eles se alargam. Agora cada um deles encontra-se um pouco no outro. A alteridade é a condição do encontro. Entre duas realidades idênticas não há encontro, há continuidade e constância. É a alteridade que torna possível o encontro. Ao mesmo tempo, no encontro, alargam-se os limites de meu ser-evento, alargando-se então, a alteridade. Acredito que a discussão da identidade seja muito “cara” e necessária nesse diálogo com Bakhtin. Ele ressalta que o eu define a identidade. Miotello32aponta que esse eu “já apresenta uma tensão epistemológica inicial”. Para Bakhtin, esse eu constitui-se em um eu político. O “eu penso, logo existo” já explicita que “quem diz que eu existo sou eu mesmo”.

Miotello33 indica que na contemporaneidade esse eu já se constitui de outra forma: essa relação do eu – identidade – se faz no outro – alteridade – “eu sou pensado, logo eu existo, e penso!”. Preciso dissipar a visão do eu pela via da palavra do outro. Outra tarefa.

30 GEGe, 2013, p. 31.

31 MIOTELLO, 2014.

Nesse sentido podemos compreender que é via palavra do outro que nos constituímos como sujeitos. Queremos propor aqui nesta pesquisa uma desconstrução da identidade dialogando com a alteridade, lugar provisório que necessita do outro para acontecer. Miotello ressalta ainda que “o que pode me libertar dessa perspectiva” de permanecer no lugar da identidade é “o olhar do outro, olhando para mim, o ato responsável do outro, me respondendo e entrando em interação comigo, me constituindo nessa relação”34. A identidade é uma tentativa de conter a abertura. A identidade é uma recusa do que seja outro. Ela é sempre um contraponto da alteridade.

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Ainda em Bakhtin, trabalhei com o conceito de cronotopo. Bakhtin35 ressalta que o cronotopo “determina a unidade artística de uma obra literária”. Ele está diretamente relacionado ao espaço-tempo e à relação de valor humano que emerge no cruzamento dos índices temporais e espaciais. O cronotopo é aquele ponto central na literatura aonde o encontro é afigurado, e não aonde ele acontece, porque o acontecimento é na vida. Nesse ponto único é que se encontram culturas, religiões, idades, nacionalidades, classes sociais, etc. É, portanto, no encontro que podemos pensar as relações de hospitalidade e seus conceitos. Então aqui definimos o cronotopo como categoria da escritura que organiza a experiência do mundo do ato em uma arquitetônica espaço-temporal onde o valor do humano aparece nessas marcas.

Aqui, também, me encontrei com as questões de autoria, fui buscar também essa primeira compreensão. Bakhtin diz que “o autor é o agente da unidade tensamente ativa do todo acabado, do todo da personagem e do todo da obra, e este é transgrediente a cada elemento particular desta”36.

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No decorrer da tese fui construindo e aprofundando os diálogos dessas palavras que coloquei aqui brevemente, entendi que precisava me demorar sobre elas. Então, foi assim, criei esse plano de textos que chamo de “Minhas

Cidades” que para além dos mergulhos nas palavras que encontrei aqui também

apresentaram o que eu compreendo aqui, nesta tese, como cidade.

34 MIOTELLO, 2014, p.9,

35 BAKHTIN, 2014, p.349.