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Petrópolis, outubro de 2018 A Cidade da Linguagem: enunciação

Resolvi escrever mais algumas palavras, voltei para a cidade da linguagem fazendo desta vez um trajeto pelos caminhos da enunciação na pesquisa, então percebi que nesse último texto trouxe a provocação inicial dizendo que iria tratar da questão da linguagem e da enunciação, ocorre que no último texto eu fiz um mergulho apenas no campo da linguagem agora vou trazer algumas considerações sobre a enunciação no texto que intitulo “A Cidade da Linguagem: enunciação”.

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O processo de decodificação (compreensão) não deve, em nenhum caso, ser confundido com o processo de identificação.

“Trata-se de dois processos profundamente distintos. O signo é descodificado; só o sinal é identificado. O sinal é uma entidade de conteúdo imutável; ele não pode substituir, nem refletir, nem refratar nada”. Ele ressalta ainda que o sinal “constitui apenas um instrumento técnico para designar este ou aquele objeto (preciso e imutável) ou este ou aquele acontecimento (igualmente preciso e imutável)”103.

Aqui temos o problema da compreensão. Isso porque “a metodologia da explicação e da interpretação se reduz com muita frequência a essa descoberta do repetível, ao acontecimento do já conhecido”104. O problema da compreensão é que ela é diferente da explicação. A primeira é responsiva, ela responde no existir evento, nos atos da vida.

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O sinal, como é questão técnica, não tem ideologia. Bakhtin afirma que “o sinal não pertence ao domínio da ideologia; ele faz parte do mundo dos objetivos técnicos, dos instrumentos de produção no sentido amplo do termo”105. O signo demanda um contexto.

Bakhtin faz uma crítica à corrente teórica que trata o sinal como signo. Ele diz: “Somente um concurso infeliz de circunstância e as inextirpáveis práticas de reflexão mecanicista puderam induzir certos pesquisadores a fazer desses

103 BAKHTIN, 2014, p.96.

104 BAKHTIN, 2011, p.379.

“sinais”, praticamente, a chave da compreensão da linguagem e do psiquismo humano (do discurso interior)”106.

Um contexto enunciativo não pode ser visto e compreendido por um sistema de sinais abstrato. No encontro de palavras temos uma arena de sentidos e contradições sempre em guerra, disputando espaços e sentidos outros. Então aqui assumimos que nossa palavra é um signo contextualizado em resposta, sempre em resposta. Neste sentido, defendemos que não exista a ideia da palavra como sinal, toda palavra é um signo ideológico. Ela responde no seu tempo a uma demanda deste tempo. “A assimilação ideal de uma língua dá-se quando o sinal é completamente absorvido pelo signo e o reconhecimento pela compreensão”107. Aí temos um problema também no ensino da língua.

Tratar a palavra como um sistema de sinais abstratos é empobrecer sobremaneira o discurso. A palavra como sinal não é dialógica, como signo “a palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial. É assim que compreendemos as palavras e somente reagimos àquelas que despertam em nós ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida”108.

Então, como identificar uma palavra morta, abstrata?

Bakhtin nos dá uma pista: “a enunciação monológica já é uma abstração, embora seja uma abstração de tipo natural”109. Ainda hoje, apesar da diversidade de produções, ainda subsistem perspectivas, que são agrupamentos de sinais que no seu conjunto criam textos mortos, fora da vida concreta dos sujeitos. E nesses agrupamentos de palavras que chamamos impropriamente de texto não cabe resposta. Porque na vida só se responde à palavra viva, ao signo ideológico. O próprio texto abstrato não possibilita a interferência de outrem. Não abre brecha para o diálogo. Bakhtin afirma ainda que “toda enunciação, monológica, inclusive inscrição num momento, constitui um elemento inalienável da comunicação verbal”110. Neste sentido ele não está tratando da crítica, mas dizendo que mesmo essa é parte da comunicação verbal, que tudo inclui.

106 BAKHTIN, 2014, p.97.

107 BAKHTIN, 2014, p.98.

108 BAKHTIN, 2014, p.99.

Ainda na nossa tentativa argumentativa sobre a enunciação, até mesmo a “enunciação” abstrata é uma resposta. “Toda enunciação, mesmo na forma imobilizada da escrita, é uma resposta a alguma coisa e é construída como tal”111.

O problema da linguagem e da compreensão. “A compreensão inevitavelmente passiva do filólogo-linguista projeta-se sobre a própria inscrição, sobre o objeto do estudo linguístico, como se essa inscrição tivesse sido concebida, desde a origem, para ser aprendida dessa maneira, como se ela tivesse sido escrita para os filólogos”112. Essa concepção a nosso ver é abstrata e ela exclui de antemão qualquer resposta. No nosso entendimento isso não tem relação com a nossa percepção do que seja compreensão.

A palavra surge na vida concreta dos sujeitos. São nos atos da vida que os projetos discursivos ganham sentido. Isso também não quer dizer que o existir-evento no qual a palavra foi enunciada carrega em si todos os sentidos da palavra. O próprio Bakhtin defende a ideia de que toda palavra terá sua festa da renovação. Esta festa para ele é a questão do grande tempo, onde os sentidos poderão retornar para a arena de sentido que é a vida concreta dos sujeitos. Na história dos estudos da linguagem, esta foi quase sempre tratada abstratamente. Nosso objetivo aqui é construir sentidos outros e alargar a possibilidade de entender os signos enquanto palavra nas experiências concretas da vida dos sujeitos. Afinal, para Bakhtin, o objeto das ciências humanas é o sujeito expressivo e falante, então, nada mais coerente que este sujeito participe desta nossa construção de sentido do que seja o encontro humano, do que seja a hospitalidade nesses encontros.

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“A enunciação é de natureza social”113. Entender que a enunciação é um conjunto de signos que valoram um conjunto de sinais é compreender que a enunciação só passa a existir quando ocorre uma interação entre dois lugares enunciativos. Bakhtin afirma que a enunciação é de natureza social. Neste sentido, é impossível pensar e escrever sobre a enunciação fora da vida concreta dos sujeitos. Mas quem são os sujeitos desta pesquisa? Mergulhando

111 BAKHTIN, 2014, p.101.

112 BAKHTIN, 2014, p.102.

neste pequeno lugar teórico sobre enunciação, afirmamos que os sujeitos desta pesquisa são as pessoas concretas que enunciam suas cidades, dos seus lugares únicos e singulares.

E como podemos afirmar que o dito pelos sujeitos é enunciação? Iremos fazer isso com Bakhtin. Ele afirma que “a palavra dirige-se a um interlocutor: ela é função da pessoa desse interlocutor: variará se se trata de uma pessoa do mesmo grupo social ou não, se esta for inferior ou superior na hierarquia social, se estiver ligada ao locutor por laços sociais mais ou menos estreitos (pai, mãe, marido, etc.)”114.

Neste sentido, toda comunicação entre dois ou mais sujeitos de qualquer esfera social é uma enunciação concreta, naquele espaço-tempo, do acontecimento único e singular, onde existem dois movimentos enunciativos em resposta ao mundo da vida, a uma vida concreta de dois sujeitos expressivos e falantes. E é para esses enunciados concretos, para essas cidades ditas – que é aqui uma enunciação viva, na e sobre a cidade – e com esses sujeitos que iremos defender essa tese. A cidade é um mundo múltiplo e divergente, com sujeitos expressivos e falantes produzindo nos encontros humanos linguagens que renovam os sentidos do mundo.

No fim, não teremos cidades abstratas – enunciados mortos – nossas cidades aparecerão com suas formas, suas ruas, vielas e seus enunciados concretos. Conversamos com seus sujeitos expressivos e falantes, múltiplos e divergentes. É, então, para nós, cada sujeito uma cidade repleta de discursos, que foram construídos historicamente e socialmente ao longo dos tempos. E esse sujeito que enuncia é um sujeito político, suas palavras carregam em si ideologemas115 e sempre comportam duas faces. Isso porque, como nos afirma Bakhtin, a palavra “é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém”116.

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114 BAKHTIN, 2014, p.116.

115 “Os ideologemas funcionam como os topoi aristotélicos, constituindo os princípios

responsáveis pela coesão e coerência do discurso social e cultural, o que nos garante ao mesmo tempo a compreensão da própria ideologia do discurso. Nas teorias de Mikhail Bakhtin sobre a narrativa, o ideologema designa aqueles termos ou expressões que induzem a uma determinada ideologia”: Disponível em: https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/ideologema/

A assinatura como ato responsável. Assinar a fala como resposta responsiva a um enunciado concreto da vida. Discutimos e ficamos com essa questão. A assinatura de um ato concreto da vida e a assinatura de um texto que se propõe coletivo. O ato de assinar, mesmo que seja um texto coletivo, é sempre do autor. Neste sentido, é ele que responde pelo escrito.

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O estudo da linguagem me fez pensar na linguagem enquanto uma perspectiva humanizada e isso me possibilitou alcançar um diálogo alteritário. E a enunciação me possibilitou o encontro concreto com os sujeitos na vida, e as crônicas me permitiram escrever esses encontros e pensá-los, sem objetificar os sujeitos do ato.

Petrópolis, dezembro de 2018