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A noção de compreensão como atividade responsiva ativa: apropriação e objetivação

CAPÍTULO II – PONTOS DE ANCORAGEM PARA TEORIA: A LINGUAGEM, OS

2.2. A noção de compreensão como atividade responsiva ativa: apropriação e objetivação

A noção de compreensão como atividade mental é solicitada por Bakhtin/Voloshinov

(2002, p. 61), como expressão exterior da enunciação a partir de duas orientações: ―[...] em direção ao sujeito ou a partir dele; e em direção a uma ideologia nas diversas estruturas sociais‖. A palavra, nessas estruturas é socialmente dirigida e determinada pelos participantes do ato de fala, na situação enunciativa, e pelos participantes que determinam a forma e o estilo da enunciação. Essas condições determinam a estrutura da atividade mental, tanto para o social como para a sua objetivação exterior. O contexto exterior determina qual será o seu ouvinte (amigos/inimigos), através do qual o locutor poderá orientar a sua atividade mental do eu, em direção ao outro. Nesta direção, o autor vai propor a atividade mental dos sujeitos

na interação em diferentes graus de consciência, realizando-se a partir de dois polos: ―a atividade mental do eu‖ e a ―atividade mental do nós‖ (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 2002, p.119).

A ―atividade mental do eu,‖ por realizar-se de forma isolada perde a clareza, a modelagem ideológica, a orientação social e, consequentemente, a sua representação verbal,―[...] dando provas de que foi incapaz de enraizar-se no social, implicando na perda da verbalização da experiência nos discursos‖. Por isso, o seu grau de consciência aproxima-se das reações primitivas, bem próximas das reações fisiológicas. Ao ocorrer de forma isolada da estrutura social, a atividade mental, nesses indivíduos, tenderá para formas ideológicas cujos resultados ―[...] serão, conforme o caso, ou o protesto individualista do mendigo, ou a resignação mística do penitente‖. Em outros, sentimentos de resignação, vergonha ou dependência, entre outros. Em geral, ―a atividade mental do eu‖ não possibilita sua apropriação da complexidade social, limitando as escolhas e o alcance da realidade objetiva. É uma atividade gregária e primitiva. (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 2002, p 119-120).

A ―atividade mental do nós‖ realiza-se como uma atividade de criação ideológica diferenciada, uma vez que a evolução do grau de consciência está diretamente relacionada ―[...] à firmeza e à estabilidade social. Quanto mais diferenciada e organizada for a coletividade no interior da qual o indivíduo se orienta, mais distinto e complexo será o seu mundo interior‖. Essa atividade permite diferentes graus e tipos de modelagem ideológica. As coletividades em que se desenvolvem os sistemas religiosos ou filosóficos produzem nos indivíduos sentimentos de fatalismo e resignação na adversidade. Em coletividades reunidas por vínculos materiais (soldados, operários), com sentimentos de ―classe para si‖, não haverá lugar para mentalidade resignada e submissa. É a ―atividade mental do nós‖ que favorece um desenvolvimento ideológico bem formado.(BAKHTIN/VOLOSHINOV, 2002, p. 121).

Bakhtin/Voloshinov (2002, p. 121) consideram ainda a constituição da ―atividade mental para si‖ ou ―atividade mental individualista‖. O individualismo caracteriza-se, segundo os autores, como uma forma ideológica especial da ―atividade mental do nós‖ da classe burguesa, ou da classe feudal aristocrática. Essa atividade mental da consciência é dotada de uma orientação sólida e afirmada com base na consciência individual e na confiança do próprio valor, afirmado do exterior, do status social, ou seja, relacionada ao papel oficial, legalmente instituído na estrutura social. Trata-se de uma atividade mental, cuja identidade é do tipo coletivista, estruturada ideologicamente, com capacidade e força de sentir-se no seu direito. Afirma-se, a partir de uma compreensão de que existe um pensamento para si e outro para o público/leitor (ou ouvinte) nessa esfera cultural.

Dessa forma, a personalidade do sujeito que fala, desde seu interior, revela-se como um produto total ―da inter-relação social‖. Sua atividade mental constitui-se como uma forma da expressão exterior, um conteúdo mental a exprimir, pelo discurso (sua objetivação externa), como um conteúdo próprio de uma esfera social. Os autores enfatizam ainda que, quando a atividade mental para si ou individualista se realiza em enunciados/discursos, adquire uma maior complexidade social, em razão ―[...] da exigência de adaptação ao contexto social do ato de fala e, acima de tudo aos interlocutores concretos‖ (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 2002, p 120-121).

Ao fixarem a atividade de compreensão entre duas consciências, a do ―eu e a do nós,‖ Bakhtin/Voloshinov (2002) afirmam que existe uma variedade de graus de consciência, intrinsecamente relacionadas às atividades que os agentes desenvolvem no meio social. Isso significa que, quanto mais complexas e abrangentes e mais nítidas forem as marcas do instituído social, maiores são as possibilidades de esse sujeito ser bem sucedido em atividades complexas.

Dessa forma, pode-se entender que o vir-a-ser-consciente depende da atuação do agente nas multiplicidades das esferas, onde realizam atividades que vão desde aquelas do dia a dia até aquelas de maior complexidade, em que os graus de apropriação e de compreensão se estabelecem a partir de relações do tipo lógico, a exemplo do que ocorre nas interações de construção/transmissão de conhecimento em instituições de educação formal.

Nesse âmbito, o sujeito, quando se apropria, escolhe e recorta o objeto-conteúdo a ser conhecido, estabelece uma relação consciente com o que determinam seus atos e para atuar com essas determinações com os outros. Para atuar sobre o outro, é necessário que o sujeito utilize a palavra, como mediação simbólica, em suas práticas discursivas de construção de conhecimento. A linguagem simbólica, por ser generalizante, necessita da interferência dos interlocutores por ocasião da construção de sentido, oportunidade em que singularizam, tornam únicos e irrepetíveis os atos genéricos, nas atividades individuais vivenciadas pelos sujeitos em suas trocas interacionais.

Com essa compreensão, Bakhtin/Voloshinov (2002) pensam a realidade dos fenômenos ideológicos como uma superestrutura, não mais determinado pelo conjunto das leis sociais econômicas, de base marxista, mas pelo fenômeno da interação verbal. A comunicação verbal, os enunciados entendidos como réplicas do diálogo social, tornam-se a unidade de base da língua, nos discursos (interior ou exterior) e, portanto, não existem fora do horizonte social de cada interlocutor.

A percepção da consciência e a elaboração ideológica onde se origina toda a atividade mental do eu e do nós, na orientação filosófica do Círculo de Bakhtin, têm sempre uma ―orientação social de caráter apreciativo‖ (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 2002, p. 114). Nesse processo, o psiquismo e a ideologia estão em relação dialética constante, pois ambos trabalham com o mesmo objeto – o signo ideológico ―[...] como expressão das relações e lutas sociais, veiculando e sofrendo o efeito desta luta, servindo ao mesmo tempo, de instrumento e de material‖ (YAGUELLO, 2002, p. 17).

Nessa perspectiva, a enunciação da palavra-signo reflete o mundo, apontando para uma realidade que lhe é externa, e refrata o mundo no qual construímos, pela história, a experiência concreta, múltipla e heterogênea, com a qual agimos avaliativamente nos diferentes grupos humanos que se refratam nos discursos.

Em ―Estética da Criação Verbal‖, Bakhtin (2003) retoma o tema da refração dos discursos para desenvolvê-la na dialogização das vozes sociais se entrecruzando nas fronteiras culturais, entre os já ditos e os que ainda esperam para serem ditos. Em suas palavras:

Não existe a primeira nem a última palavra, e não há limites para o contexto dialógico (este se estende ao passado sem limites e ao futuro sem limites). Nem os sentidos do passado, isto é, nascido do diálogo dos séculos passados, podem jamais ser estáveis (concluídos acabados de uma vez por todas): eles sempre irão mudar (renovando-se) no processo de desenvolvimento subsequente, futuro do diálogo. Em qualquer momento do desenvolvimento do diálogo, existem massas imensas e ilimitadas de sentidos esquecidos, mas em determinados momentos do sucessivo desenvolvimento do diálogo em cursos, tais sentidos serão relembrados e reviverão em forma renovada (em novo contexto). Não existe nada absolutamente morto: cada sentido terá sua festa de renovação (BAKHTIN, 2003, p.410).

Este trecho, do nosso ponto de vista, representa, de forma ímpar, a concepção dialógica da linguagem nos discursos que tem os seus sentidos constituídos, intersubjetivamente, no intercâmbio verbal dos sujeitos em situações concretas de uso da linguagem. Como se observa, a linguagem é essencialmente ativa porque realizada por agentes nos intercâmbios linguísticos, nos quais os sentidos não estão fixados, definitivamente, nos discursos produzidos por uma única voz, mas são constantemente renovados, na interação, pela heterogeneidade de vozes socais, na história e no coletivo de

uma dada esfera da cultura. Nesse sentido, os atos humanos, nos enunciados/discursos, são originados em permanente tensão com outros atos que o precederam e aqueles que ainda não aconteceram e, no presente, esses sentidos estão sempre se reconstituindo entre a estabilidade e a mudança, que começa no discurso interior e nunca termina, por permitir que novas questões possam ser formuladas a partir do discurso.