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CAPÍTULO IV A LEITURA NO CONTEXTO DO CURSO TÉCNICO

4.2. O texto de semidivulgação científica como objeto de ensino

Considerando a proposta bakhtiniana para os atos dos sujeitos com a linguagem, assumimos que o texto é algo que se faz, ou seja, considera-se o processo de construção do texto como uma ação que resulta de um projeto discursivo de um agente, em uma dada esfera institucional, construído a partir de uma intenção e de um objetivo. Assumimos também que a relação entre os interlocutores e as instâncias de sua enunciação é condição necessária a sua organização textual.

No âmbito das estruturas do poder da educação formal, conforme pudemos constatar, o curso técnico de Agropecuária se constitui como projeto político e econômico construído, nos discursos oficiais, com a intenção de promover a formação profissional de jovens carentes, durante o processo de sua escolarização no ensino médio.

Nas instituições de ensino responsáveis pela execução desse projeto, a exemplo da Escola Agrícola ―Assis Chateaubriand,‖ as instâncias enunciativas de interlocução mediadas por textos orais e escritos são determinadas, segundo Geraldi (1993, p.54-56), a partir de dois sistemas de referência ou ―universos discursivos‖: i) aquele logicamente estabilizado e afirmado como conhecimento científico no contexto dos nossos participantes, a área de zootecnia e agricultura; e ii) e outro não estabilizado, logicamente como um conhecimento da

experiência dos sujeitos em espaços sócio-históricos dos rituais ideológicos, das esferas institucionais de trabalho no ensino e aprendizagem dos sujeitos.

Esses sistemas de referência, segundo o autor, não funcionam de forma independente. Nos processos interacionais, esses universos discursivos fortalecem as estruturas ideológicas com poder para elaborar, sistematicamente, as necessidades, desejos, aspirações, em um dado campo de conhecimento, selecionando, hierarquizando, estruturando os componentes de seu objeto/conteúdo, em função da assimilação e apropriação do conhecimento pelo outro, que está numa posição social hierárquica inferior, na condição de aprendiz.

Nessa perspectiva, as situações de construção do conhecimento em aula se dão na inter-relação desses sistemas de referência, mediados pela autoridade e legitimidade de outras vozes da ciência, codificados nos textos escritos. Conforme explicitado pelo professor Pereira (v. enxerto 11, linhas 7-13), os livros existentes na biblioteca do curso, pelo aprofundamento do conteúdo, estilo e forma composicional, se constituem fonte de consulta e estudo para leitores com perfil acadêmico especializado. Nesse sentido, considerando as capacidades leitoras limitadas do público-alvo desse curso, alunos do ensino médio, os textos escritos que mediam as práticas de leitura em sala de aula são, especialmente, produzidos pelos professores, com foco no conteúdo de ensino e na imagem desse leitor.

Tendo em vista os objetivos que estabelecemos para as análises em leitura/escrita, torna-se relevante, neste momento, examinar como os professores constroem para si mesmos uma posição de sujeito-autor nos textos escritos que produzem para estas situações específicas de escolarização, objetivando a formação de técnicos em Agropecuária. Nesse sentido, optamos por examinar o texto escrito utilizado pelo professor Carvalho, na disciplina ―Manejo e conservação do solo‖, como um gênero do discurso típico das situações escolarizadas, em contextos de uso e funcionamento dos discursos científicos, a partir do tema, do estilo e da forma composicional.

Com base nesses pressupostos, o professor institui o seu projeto discursivo, materializado no texto escrito, de natureza didática, que estamos caracterizando como um discurso científico de semidivulgação (Anexo D), entendendo com Loffler-Laurian (1983), como aquele que tem como intenção a formação profissional e como objetivo a introdução do aluno de ensino médio (ou nível universitário) nos princípios de determinada ciência.

Orientado por essas evidências e pelos sistemas de referência que farão parte do universo temático-discursivo em ―Manejo e conservação do solo‖, o professor Carvalho marca a sua posição de autor no texto escrito, atribuindo um cabeçalho ao texto, localizado na

superfície superior e central da página, as indicações do lugar de onde fala e a posição que ocupa na instituição, estilisticamente marcadas pelo uso de maiúsculas.

Ao estabelecer uma forma composicional para o texto, o professor organiza o seu trabalho pedagógico de transmissão, tendo em vista a assimilação do conteúdo de ensino. Para garantir essa compreensão, o docente inicia esse movimento de compreensão pela indicação do título ―Erosão do Solo Agrícola‖. Na organização topográfica do conteúdo científico, o professor adota como estratégia didática a fragmentação do conteúdo de ensino em segmentos informacionais, precedidos de um título, apresentado com destaque em negrito. Essa fragmentação encontra-se diretamente relacionada com os discursos ideológicos da divisão do trabalho que a escola reproduz de múltiplas formas, inclusive na leitura, bem como ao aspecto didático do discurso pedagógico que atravessa o saber-fazer docente.

Na forma composicional do texto escrito, a fragmentação do conteúdo tem como função monitorar o foco de atenção dos alunos, na macroestrutura textual20, através de estratégias enunciativas21 de construção de subtítulos e tópicos. Nas práticas de leitura com focalização no conteúdo, a indicação dessas partes facilita a apropriação/memorização desses blocos de informação que o professor necessita (deseja, precisa) que seja assimilado como repetição, em função do produto que resulta desse trabalho - a avaliação. Considerando esse universo discursivo, o professor adota como marca estilística de sua posição de autoria nos textos científicos de semidivulgação, o uso de letras maiúsculas (nos subtítulos) e minúsculas (nos tópicos), com destaque em negrito.

Os títulos e subtítulos nesses textos didatizados de semidivulgação científica funcionam, em práticas de leitura de construção de conhecimento na aula, como um recurso que permite ao professor, como autor introduzir uma explicação ou o detalhamento de conceitos e classificações apresentados em enunciados do tipo: ―a erosão do solo agrícola é [...]‖ ―a água [...] exerce uma ação transportadora‖, ―as gotas de chuva [...] contribuem para a erosão da seguinte maneira‖ (Anexo D1). Outros elementos estilísticos utilizados pelo professor-autor nesses textos são os recursos multimodais, próprios dos gêneros científicos acadêmicos (gráficos, tabelas, quadros), para apresentar resultados ou explicar de forma condensada explicações densas, conforme evidenciado na figura1 ―Fases do processo

20 O termo macroestrutura é usado no sentido dado por Van Dijk & Kintsch (1983), como uma estrutura

hierárquica do texto, derivada de diferentes níveis de macroproposições, inferidas das sequências de proposições explícitas ou implícitas no texto. Quando integradas às informações essenciais do texto, servem como base para a compreensão de segmentos posteriores do discurso.

21 O termo estratégia enunciativa, neste trabalho, toma como referência o conceito de gênero do discurso de

Bakhtin (2003), que permite trabalhar as formas composicionais do texto, estilo e tema, como resultantes da interação autor-leitor.

erosivo,‖ cuja função é facilitar a memorização das quatro etapas que caracterizam os processos erosivos em suas diversas fases (Anexo D.1).

Uma das formas de legitimar a autoria nos discursos científicos é a citação das vozes do outro, apresentando dados, opiniões e fatos, a fim de imprimir veracidade aos argumentos dos autores. Nos textos científicos de divulgação ampla e restrita, a presença do outro é marcada pela citação (direta ou indireta), pelas aspas, pela paráfrase etc. No entanto, ao produzir um texto didatizado para mediar à construção do conhecimento do aluno, em práticas pedagógicas de leitura, o professor Figueira, na condição de autor, faz uso de estratégias de apagamento dessas marcas, com a intenção de tornar ―a linguagem acessível‖ ao aluno, segundo a fala do professor Figueira, no excerto 11 (linha 6).

A ausência dessas marcas, entretanto, não exclui a presença das vozes nos textos didatizados. A heterogeneidade nas relações dialógicas, embora não indiciadas explicitamente por qualquer crédito de autoria, manifesta-se no interdiscurso, pelo uso de um léxico que não é neutro e indicia para o leitor o pertencimento do sujeito, na condição de autor, a um determinado campo de conhecimento e de trabalho. Essa condição está presente nesses discursos, nas formas de indeterminação sintáticas do sujeito, através da voz passiva (―é preciso considerar‖, ―são transportadas‖, ―foram desalojadas‖, ―é considerada,‖ entre outras).

Tendo em vista a ideia de que o texto é uma ação que se faz com a linguagem em direção ao outro, com determinada intenção e objetivo, consideramos que o apagamento das marcas convencionais da presença do outro não permitem aos alunos recuperar, nos textos didatizados que leem, os argumentos conflitantes, o debate de ideias, os processos de auto referência pela citação. A não percepção dos traços que distinguem a natureza de um texto do gênero científico e gênero o didatizado de semidivulgação científica impede a inserção e a construção de um lugar de autoria nos textos escritos que os alunos produzem.

O texto didático ―Erosão do Solo Agrícola‖, reproduzido como cópia pelo professor Carvalho, através de estratégias de redução semântica do texto-fonte, apresenta a referência bibliográfica da seguinte forma: “Texto extraído da apostila: EROSÃO DO SOLO.

ANTONIO RODRIGUES FERNANDES; HERDJANIA VERAS DE

LIMA.UFRA/ICA/BELÉM – PA – 2007‖22, (destaque do autor). Conforme se pode perceber,

ao apresentar a referência bibliográfica do texto didático de semidivulgação científica, o professor não segue as normas da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas) e não é

22 O texto fonte pode ser encontrado na íntegra no endereço:

http://www.portal.ufra.edu.br/attachments/586_Introdu%C3%A7%C3%A3o%20a%20conserva%C3%A7%C3% A3o%20do%20solo.pdf

por desconhecimento, uma vez que ele é pesquisador, com textos publicados. Trata-se, portanto, de uma escolha que tem relação com o aluno de ensino médio e o processo de didatização.

A partir dessas considerações, examina-se como o professor Carvalho desenvolve uma prática de leitura através do texto ―Erosão do solo agrícola‖.

4.3. A prática dialógica de leitura: o entrecruzamento do discurso pedagógico e do discurso