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2 TEORIA DAS OPERAÇÕES PREDICATIVAS E ENUNCIATIVAS (TOPE)

2.7 NOÇÃO E DOMÍNIO NOCIONAL

Ao dizer que um postulado da TOPE é central, corre-se o risco de incorrer em um clichê porque todos os princípios da TOPE são centrais. Porém, quando se trata do conceito de noção, podemos dizer que se trata de um conceito central sem corrermos este risco. Noção e domínio nocional são realmente dois conceitos essenciais para o modelo culioliano. Segundo Franckel & Paillard (2011, p. 87-101), eles têm sido o suporte da teoria culioliana desde o final dos anos setenta (antes a teoria estava centrada nas operações de orientação (repérage). Dada esta importância, neste item, buscaremos deixar bem claro o que são noção e domínio nocional e como estes conceitos se aplicam a VFs.

A noção é um sistema complexo de representação que organiza propriedades físico–culturais de natureza cognitiva. Ela existe antes que as palavras se tornem categorias e é geradora de unidades lexicais. A noção é geralmente representada entre barras, como, por exemplo, /raposa/; ela é um predicado em potencial (‘ser uma raposa’, ‘ter a propriedade de ser uma raposa’). Este predicado é definido apenas em intensão. As noções possuem um certo grau de estabilidade, sem o qual não haveria comunicação, porém, não são fixadas de modo definitivo. Pelo contrário, são dinâmicas e variam de um indivíduo para outro e de uma situação para outra. É apenas através de suas ocorrências que uma noção pode ser apreendida.

Trata-se de um dos conceitos mais complexos do modelo culioliano. Segundo o autor (2002, p. 53, tradução nossa):

“A noção pode ser resumida como um grupo de eventos que possuem a mesma propriedade, como por exemplo “ser raposa”. E cada ocorrência de ser raposa se refere a uma “raposa” que é tanto uma ocorrência específica quanto, ao mesmo tempo, qualquer ocorrência de raposa, porque, caso contrário não poderíamos dizer “uma raposa” já que cada “raposa” estaria separada de qualquer outra raposa. Então, devemos isolar um certo número de propriedades para definir o critério de

conformidade que corresponde à representação que uma pessoa tem de uma verdadeira “raposa”, o que realmente merece o nome “raposa”. Esse processo de abstração é necessário e, em certo momento, há uma mudança de uma representação particular, cujas propriedades abstraímos, para uma representação de qualquer ser cujas propriedades podemos, a partir desse momento, chamar de “raposa”.

Culioli (1981, p.53–54) explica que a noção se refere a grupos, conjuntos que podem ser expressos, como, por exemplo, “ler, leitura, livro, leitor, biblioteca, entre outros”. O autor enfatiza que ela não deve ser confundida com a unidade lexical, a qual é meramente uma introdução, um primeiro passo para o “feixe de propriedades físico–culturais”.

O autor (1974, p. 12) ainda explica que a noção não expressa coisas como quantidade, qualidade e nem positividade ou negatividade. Ela expressa valores de natureza enunciativa e predicativa. Como exemplo, ele usa a questão: “alguém abriu a janela?” Segundo Culioli (p.13), em uma pergunta como essa passamos por valores como positivo, negativo (abriu/não abriu), mas não somos capazes de atribuir um valor positivo ou negativo, no sentido de bom ou ruim, ao enunciado. Usamos a noção do predicado, que não é nem positiva nem negativa, mas compatível com ambos.

Retomando o exemplo do “ser raposa”, podemos dizer que, grosso modo, a noção envolve tudo que algo pode ser e tudo que pertence ao, digamos, campo deste algo – como “biblioteca”, “leitura”, “livro” pertencem ao campo de “ler”.

Já o domínio nocional, segundo Culioli (1982, 1991), se origina da noção e permite que o enunciador estruture as ocorrências associadas àquela noção específica. Portanto, o domínio nocional se organiza em torno de uma ocorrência que serve como referência. Esta ocorrência recebe o nome de centro organizador e está dividida em três áreas:

O interior do domínio nocional, marcado por relações de identificação com o centro organizador, quando as ocorrências possuem todos os traços que constituem a noção. Ex.: ‘um livro de verdade’ (não uma brochura ou um catálogo). Algo que possui tudo aquilo que é necessário para “ser livro”;

O exterior do domínio nocional engloba as ocorrências que expressam desconexão, separação do centro organizador. Ex.: ‘não é um livro mesmo’ (não possui nenhum dos traços necessários para “ser livro”)

A última área é a fronteira do domínio nocional. Nela estão as ocorrências que expressam diferenciação do centro organizador. É importante observar que diferenciação não significa completa oposição. Significa na verdade que as ocorrências desta área possuem traços tanto do interior quanto do exterior do centro organizador. Ex.: ‘Não são realmente cachorros’ (podem possuir alguns traços de ‘ser cachorro’ mas não todos os traços necessários para serem realmente cachorros).

2.7.1 O Complementar

Toda noção possui um correspondente que permite entendê-la a partir daquilo que ela não é. A este(s) correspondente(s) damos o nome de complementar.

O complementar de uma noção se situa no exterior do domínio nocional e é construído através da negação. Aplicando este conceito ao nosso estudo, podemos dizer que ele é necessário para o processo de significação dos verbos preposicionados do inglês. Aguilar (2007, p. 68) explica o complementar da seguinte maneira:

“O livro é bom”. O complementar de ‘bom” engloba “quase bom”, “mais ou menos bom”, “não muito bom”, entre outros, até chegar em “ruim”, que está totalmente fora do domínio de “bom”. Levando em consideração esse exemplo, temos entre “bom” e “ruim”: “bom” como centro organizador; “menos bom”, “quase bom”, etc., como gradientes; a passagem de “bom” a “ruim” como fronteira; “ruim” (não bom) como centro organizador do complementar e “menos ruim”, “quase ruim”, etc., como gradientes do complementar.

Podemos aplicar o mesmo raciocínio para entendermos a atividade de linguagem empregada para estabilizar os enunciados que empregam verbos preposicionados, como no exemplo:

James married up but for Susan it was a step down. (James fez um bom negócio (casando-se com Susan) mas, para Susan foi um mau negócio – em tradução livre).

Marry up geralmente significa casar-se com alguém de posição social ‘superior, acima’. Seu oposto é marry down e seus principais complementares podem ser vistos no quadro abaixo:

Quadro 1 – Marry up Marry down

Interior Gradientes Fronteira gradientes Exterior

Marry up (centro atrator)

Marry kind of

up; a bit up Marry

Marry a bit down, kind of down; not so up Marry down (complementar)

Fonte: elaborado pelo autor

Temos então no centro atrator ‘casar bem’, seguido dos gradientes ‘um pouco’ e ‘mais ou menos bem’ até chegar à fronteira onde temos ‘nem bem nem mal’, passando pelos gradientes ‘um pouco mal’ e ‘mais ou menos mal’ até chegarmos a ‘casar mal’ que está totalmente no exterior. O sentido do centro atrator se estabiliza pela negação do exterior e seus gradientes mais próximos. É importante observar também que a preposição ‘mas’ (but) tem um papel importante no agenciamento da negação pelo fato de ser um marcador natural de oposição.

2.8 RELAÇÕES PRIMITIVAS, RELAÇÕES PREDICATIVAS E RELAÇÕES