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CAPÍTULO I MARCO TEÓRICO

1.1. A Aprendizagem do Sistema de Notação Alfabética e da Norma Ortográfica.

1.1.1. A Norma Ortográfica do Português.

A norma ortográfica do português apresenta regularidades e irregularidades. Essas últimas requerem do aprendiz uma tarefa de memorização; as regularidades podem ser compreendidas, a partir da dedução dos princípios gerativos (regras) que as justificam.

Vários autores, em seus trabalhos sobre ortografia, se limitam a analisar os “erros” apresentados pelas crianças. Além disso, a classificação dada ao tipo de erro cometido não especifica o que realmente está acontecendo durante o processo de aquisição. Se, como foi referido anteriormente, o aprendizado da ortografia se dá de forma ativa, as propriedades regulares podem ser percebidas pelos aprendizes através da compreensão dos princípios

gerativos da norma; sendo assim, é importante tentar entender como a criança está refletindo sobre a ortografia.

Os casos de regularidades e irregularidades estão presentes na relação entre sons e letras. Em nossa língua as correspondências regulares podem ser de três tipos: diretas, contextuais e morfológico-gramaticais (MORAIS, 1995, 1998)1.

As relações regulares diretas são evidenciadas quando só existe na língua um grafema para notar determinado fonema. Por exemplo, o p representará sempre o fonema /p/ (pato, capa, chapéu, entre outras); a mesma coisa acontece com os grafemas b, t, d, f, e v (bacia,

tatu, cadeado, café e velho).

As correspondências regulares contextuais ocorrem quando a relação letra-som é determinada pela posição em que a letra aparece dentro da palavra. Por exemplo: o uso do c ou qu, relaciona-se ao som /k/, dependendo da vogal que forme sílaba (casa, pequeno). Além deste exemplo, encontramos no português os seguintes casos de regras contextuais:

uso do r ou rr: dependendo do contexto, o primeiro grafema, poderá corresponder ao fonema /h/, /x/ (rato, genro e carta) ou ao fonema /r/ (barata), por sua vez o uso do rr terá sempre o som de /h/ (ferradura);

o uso do g ou gu para representar o fonema /g/ (gato, guerra);

o uso do j com som de /3/ antes de vogais orais ou nasais notadas com a, o, u (jato, jota, caju);

o uso do z em palavras que comecem com o som /z/ (zebra, zinco);

o uso do s no início das palavras correspondendo ao som /s/ de vogais orais ou nasais notadas com a, o, u (sapo, sola, surra);

1 Como indica esse autor (cf. Morais, 1995, 1998), para analisar as regularidades e irregularidades das relações

som-grafia numa língua, é necessário tomar como referência um dialeto. Em nosso caso, tomamos como modelo a idealização do que seria o dialeto de pessoas com longa escolaridade em Recife.

o uso do o ou u no final das palavras com o som de /u/ (bambu [bã´bu], bambo [´bãbu]);

o uso de e ou i no final de palavras com som de /i/ (perde [´pεxdi], perdi [pex´di]); os usos de m, nh, n ou ~ para grafar as nasais (pombo, ninho, canto, maçã)

As correspondências regulares morfológico-gramaticais são compostas de regras que envolvem morfemas tanto ligados à formação de palavras por derivação lexical como por flexão (MORAIS, 1998). No primeiro caso, por exemplo, tais regras estão presentes sobretudo em substantivos e adjetivos: o sufixo [eza] pode ser escrito com s ou com z, dependendo da classificação gramatical da palavra (portuguesa, pobreza). Outros exemplos são os casos dos adjetivos que indicam lugar de origem ês (francês); dos coletivos terminando com l (cafezal); do Sufixo ice em substantivos (doidice) e dos Substantivos derivados com os sufixos ência, ança, ância (ciência, esperança, importância).

As correspondências som-grafia baseadas em regras morfológico-gramaticais estão presentes ainda nas flexões verbais. Por exemplo:

u no final de verbos na terceira pessoa do passado perfeito do indicativo (cantou); flexões do imperfeito do subjuntivo –V__# com ss (bebesse);

todos os infinitivos terminam com r (cantar, beber), apesar de geralmente não pronunciarmos o fonema equivalente;

terceira pessoa do plural no futuro se escreve com ão, enquanto todas as outras formas da terceira pessoa do plural de todos os tempos verbais se escrevem com m no final (cantam, cantavam,cantaram).

No caso das correspondências irregulares não existe uma regra que ajude o aprendiz a selecionar a letra que deverá ser usada. Apenas um dicionário ou a memorização poderá ajudar nesses casos (MORAIS, 1998). Como observa esse autor, em nossa língua, os principais casos de irregularidade envolvem a notação dos fonemas /s/ (seguro, cidade,

auxílio, cassino, piscina, cresça, força, exceto), /z/ (zebu, casa, exame), /š/ (enxada, enchente), /ž/ (girafa, jiló) e o emprego do grafema h inicial (hora, harpa).

Além da proposta de análise das correspondências fonográficas de nossa língua agora revista e formulada por Morais (1995, 1998), outros estudiosos têm se dedicado ao tema, com enfoques nem sempre idênticos.

Faraco (2003), por exemplo, classifica as regras ortográficas do português em relação

biunívoca, relações cruzadas previsíveis (que correspondem às regularidades contextuais, apresentadas nos parágrafos acima), relações cruzadas parcialmente previsíveis e

parcialmente arbitrárias (a unidade sonora tem mais de uma representação gráfica, que em alguns casos pode ser determinado pelo contexto e em outros casos não) e relações cruzadas

totalmente arbitrárias.

Este autor, além de tratar as regras em relação à posição em que os sons se encontram na palavra, afirma ainda que a origem das palavras também é levada em conta para o estabelecimento de sua grafia (memória etimológica).

Pode-se perceber, nessa discussão, que a questão morfológico-gramatical não é tratada pelo autor e que as propriedades irregulares, decorrentes da etimologia, não são claramente diferenciadas daquelas de tipo regular. Julgamos errôneo levar o aprendiz a pensar que a relação letra/som sempre pode ser estabelecida de forma direta ou dependendo de sua posição na palavra, pois partindo desse princípio, todas as outras grafias dependeriam da memorização. Por exemplo os sufixos esa e eza, como visto anteriormente, aparecem no mesmo contexto, porém são grafados de forma distinta – portuguesa (adjetivo que indica lugar de origem) e beleza (substantivo derivado). Por outro lado, como observa Morais (1999), como em ortografia tudo é arbitrário, convencionado, tornar-se-ia inadequado confundir previsibilidade (decorrente de princípios regulares de tipo contextual ou morfológico) com uma suposta maior ou menor “arbitrariedade”.

Lemle (1988), uma das pioneiras no mapeamento das correspondências letra-som em nossa língua, apresenta a ortografia também com regras predominantemente determinadas por princípios fônicos. Dessa forma, identifica as regras determinadas por relações diretas (correspondência biunívoca - monogamia), por relações contextuais (poligamia) e as

arbitrariedades (que corresponderiam às irregularidades).

Carraher (1985) também propôs uma análise das relações letra/som de nossa língua, vendo-as como determinada por regras “hierárquicas” (isto é,contextuais) e de considerações léxicas (origem da palavra), sendo estas últimas identificadas como irregulares. No trabalho dessa autora evidenciou-se uma não-aleatoriedade nos tipos de “erros” que uma criança venha a apresentar e viu-se que os “erros” indicam uma compreensão da escrita, que vão se modificando à medida que a criança vai adquirindo novos conhecimentos sobre a escrita. Consideramos, no entanto, que a forma de classificação de “erros” sugerida, não facilita ao adulto perceber como a criança está refletindo sobre a norma ortográfica. Por exemplo, um tipo de erro é classificado, pela autora, como erro sobre regra contextual (rrolha para rolha), porém um outro tipo de erro é classificado como ausência de nasalização (oça para onça). O que se pode perceber, nesse exemplo, é que a ausência de nasalização também informa que esse aprendiz está apresentado problemas relacionados a uma regra contextual, como no primeiro caso. Não existe, portanto, independência entre as categorias utilizadas pela autora.

Zorzi (1998) apresenta ainda uma classificação semelhante à da autora acima, com alguma diferenciação na nomenclatura. Ao classificar os “erros” das crianças, não leva em consideração os problemas que são cometidos pelas mesmas, relacionando-os, especificamente, às regularidades e irregularidades da ortografia. Por exemplo, considera como um mesmo erro do tipo “representação múltipla,” as notações caguína para cajuína e

giló para jiló). Porém, interpretamos que a escrita da criança sinaliza problemas distintos: no

correspondência fonológica j por /ž/ é do tipo irregular. Desse modo, o fato de uma criança cometer um erro do segundo tipo seria mais aceitável, visto que, para superar esse erro, é necessária uma memorização da forma escrita da palavra. Porém, no caso de “caguína” é necessário que a criança compreenda uma regra regular contextual que normatiza o uso do j com som de /ž/.

Buscando uma análise mais coerente do modo como está organizada nossa norma ortográfica, é que optamos pela descrição proposta por Morais (1995). Partindo das contribuições de alguns dos autores há pouco revisados, e assumindo o caráter histórico- convencional das restrições que atualmente governam nossa ortografia, o mapeamento proposto por Morais busca, desde uma ótica cognitiva, diferenciar que critérios o aprendiz precisa reconstruir através da compreensão (no caso das regularidades) e quais ele terá que memorizar (porque são apensas resultantes da etimologia ou da tradição de uso) (cf. MORAIS, 1998).

Como foi indicado anteriormente, consideramos importante não só classificar os “erros” da criança, mas entender como ela está percebendo a ortografia da sua língua. Cremos que apenas dessa forma poderá ser encontrada a melhor maneira de levar o aprendiz a pensar sobre as regras ortográficas baseadas em princípios gerativos. É importante, assim, buscar explicar o que existe de sistemático nos “erros” das crianças, pois nem sempre elas conseguem verbalizar o seu conhecimento sobre ortografia, o que não significa que elas não o tenham, como veremos em outra parte deste texto.