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Nos Códigos de Oitocentos

No documento ESTUDO DAS PRESTAÇÕES PRINCIPAIS (páginas 67-72)

PARTE I – Delimitação e contextualização do tema

3. Manifestações históricas até à conformação atual do contrato de mediação

3.3 Nos Códigos de Oitocentos

Há nas suas cortesias rasgadas alguma coisa de artificial, que não ilude ninguém, e às vezes a menos cerimoniática familiaridade substitui até essas aparências de respeito. São espantosos de tenacidade a perseguirem em certos casos o comerciante, que em vão tenta fugir-lhes; passam-lhe da esquerda para a direita, da direita para a esquerda; atravessam-se-lhe no caminho; entram com ele nos portais, sobrem com ele as escadas, invadem-lhe o ádito dos escritórios, transpõem a barreira dos mostradores, encostam-se sem cerimónia às escrivaninhas, batem-lhe amigavelmente nos ombros, colocam-lhe diante dos olhos garrafas, vidros, maços de fazenda, tabelas de preços, amostras de todos os géneros comerciáveis, de que andam constantemente munidos, e a custo se resolvem a soltar das mãos a vítima, que chegaram a atacar. – São estes os corretores e agentes de casas estrangeiras.

JÚLIO DINIS, Uma Família Inglesa, Cap. «Na Praça»

3.3.1 O Código Comercial de 1833

O corretor foi integrado no Código Comercial de Ferreira Borges, que lhe dedicou uma extensa secção com os artigos 102 a 140.

As operações dos corretores consistiam, conforme enumeração do artigo 103, «em comprar e vender para os seus comitentes mercadorias, navios, fundos públicos, e outros créditos, letras de câmbio, livranças, letras da terra, e outras obrigações

97 Segundo JOSÉ PEDRO MACHADO, Dicionário etimológico da língua portuguesa, II, p. 236,

corretor vem do provençal corratier, «que corre; intermediário».

98 De acordo com JOSÉ PEDRO MACHADO, Dicionário etimológico da língua portuguesa, IV, p.

451, o vocábulo vem «do gr. proxenetés, pelo lat. proxeneta, «o que intervém num negócio»». Em idêntico sentido, ANTONIO DE MORAES SILVA, Diccionario da lingua portuguesa, II, p. 617.

99 ADRIANO ANTHERO, Comentario ao Codigo Commercial portuguez, I, p. 154 – «Os corretores

chamavam-se entre os Romanos proxenetae e argentarii». PHILIPPE BORNIER, Ordonnance de Louis XIV

sur le commerce…, p. 33 – «Les Latins les appellent par emprunt des Grecs, Proxenetas, ou bien Conciliatores(…) & dans le Droit Canon ils sont appelés Interventores (…) ou Mediatores». JOSÉ DA SILVA LISBOA, Princípios de direito mercantil…,V, p. 56 – «Já o Direito Romano legislou sobre esta

matéria expressamente no Digesto tit. de Proxenetis, que era especialmente relativo aos Corretores de compras, e vendas: hoje eles também são de câmbios, Afretamentos, e Seguros». ANTONIO DE MORAES SILVA, Diccionario da lingua portuguesa, p. 617 – «Proxeneta, s. m. (do Lat. proxeneta, do Gr.

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mercantis; – em fazer negociações de descontos, seguros, contratos de risco, fretamentos, empréstimos com penhor ou sem ele; – e em geral em prestar o seu ministério nas convenções e transações comerciais». Nesta mole de operações, destrinçamos três áreas de atuação: a corretagem de mercadorias e serviços associados (compra e venda de mercadorias e navios, efetuar fretamentos); a corretagem de seguros (fazer seguros e contratos de risco); e a corretagem financeira (compra e venda de fundos públicos e outros créditos, letras de câmbio, livranças, letras da terra e outras obrigações mercantis, negociação de descontos e empréstimos). Sintetizando, cabia ao corretor intermediar as transações de bens e direitos que, então, se efetuavam nas bolsas ou praças. Interessante notar que o art. 97 do Código cuidava de dizer as duas aceções de «praça de comércio ou bolsa», como sendo «não só o local mas a reunião dos comerciantes, capitães e mestres de navios, corretores, e mais pessoas empregadas no comércio».

Era longa a lista de deveres do corretor, alguns dos quais transitaram para leis subsequentes, ou foram retomados, encontrando-se deveres aparentados no RJAMI, no RJAMS, no CVM, entre outros diplomas. Sem ser exaustiva, dizia o velho Código que o corretor tinha o dever de certificar-se da identidade e capacidade negocial das pessoas em cujos negócios intervinha (art. 111); verificar a autenticidade da firma do último cedente da letra de câmbio (art. 112); guardar sigilo (art. 115); assistir à entrega das coisas vendidas, quando exigido por qualquer dos contraentes (art. 117); receber e entregar os títulos e os preços (art. 118); fazer assento formal de todas as operações (art. 119); estar presente na assinatura de negócios que se devam celebrar por escrito (art. 126); não negociar por conta própria, nem adquirir para si as coisas que lhe deram para vender (arts. 127 e 132).

O exercício da função do corretor não era livre e era dotado de características de poder público. Só podia ser corretor quem, reunindo certos requisitos (sexo masculino, nacionalidade portuguesa, maior de vinte e cinco anos, experiência no comércio, não eclesiástico, nem militar, nem funcionário público), fosse investido no cargo. Embora os comerciantes pudessem contratar diretamente por si, ou por meio dos seus assalariados ou feitores, não podiam servir-se de quaisquer intermediários remunerados que não

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fossem corretores (art. 106). Só os corretores podiam «intervir e certificar legalmente os tratos e negociações mercantis» (art. 102)100.

3.3.2 O Código Comercial de 1888

No Código Comercial de Veiga Beirão, a matéria passou a constar dos artigos 64 a 81, mantendo-se no essencial as operações da competência dos corretores: «1.º Comprar ou vender para os seus comitentes mercadorias, navios, fundos públicos, ações de sociedades legalmente constituídas, títulos de riscos marítimos, letras, livranças, cheques, e outros créditos e obrigações mercantis; 2.º Fazer negociações de descontos, seguros, fretamentos e empréstimos; 3.º Proceder às vendas de fundos públicos, ações ou obrigações de bancos ou companhias, ordenadas por autoridade da justiça da respetiva comarca; 4.º Prestar em geral o seu ofício para todas as operações de bolsa, e em todos os casos em que a lei exija a sua intervenção» (art. 66). Identificamos, novamente, as três grandes áreas de atuação dos corretores – mercadorias, seguros e financeira – correspondentes aos bens e direitos que eram transacionados nas bolsas (praças comerciais).

Mantiveram-se grosso modo idênticos os deveres dos corretores: certificar-se da identidade das pessoas em cujos negócios intervinham, propor com exatidão e clareza os negócios de que eram encarregados, guardar segredo do que dissesse respeito às negociações, não revelar os nomes dos comitentes quando a lei ou a natureza do negócio não o exigisse e aqueles não autorizassem (art. 68), entregar às partes uma cópia dos assentos lançados no seu caderno, no momento em que o contrato se tornasse perfeito (art. 70), entre outros. Manteve-se também a natureza pública do seu múnus: os seus documentos faziam especial fé em juízo e não podiam recusar-se a prestar os seus serviços (arts. 64 e 71 a 75). Estava-lhes vedado exercer o comércio por conta própria (art. 80). Intervindo um só corretor na negociação, a corretagem era paga por ambos os contraentes (art. 81) e era devida depois de concluída a operação, considerando-se esta

100 Sobre o corretor, à época, veja-se o respetivo verbete em JOSÉ FERREIRA BORGES, Diccionario

juridico-commercial– «chamam-se assim os agentes intermédios estabelecidos para facilitar as compras e

vendas das mercadorias. Há corretores de fazendas – de seguros – intérpretes e fretadores de navios – e

corretores de transporte por terra e água. Corretores de fazendas são os que facilitam a venda das mercadorias pertencentes a fabricantes e manufatores: poupam-lhes um tempo precioso e desarranjos» –; ou em I. DE SOUSA DUARTE, Diccionario de direito comercial – neste encontramos sobretudo a transcrição das disposições do Código, ainda que anotadas, como era intenção do seu autor, expressa na introdução.

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ultimada quando entre as partes se estabelecia vínculo jurídico, condicional ou incondicional, quer os contraentes interviessem pessoalmente, quer fossem representados ambos ou só um deles pelo corretor, ou quer o corretor figurasse «como simples instrumento de mediação, quer como comissário»101.

Das normas dos códigos comerciais do século XIX percebemos que o corretor podia limitar-se a negociar ou a aproximar as partes, mas também podia ir mais além, e provavelmente assim seria na maioria dos serviços, intervindo nos contratos visados, por conta dos clientes. Nas palavras de ADRIANO ANTHERO, «[o] contrato de corretagem

é bilateral, e isento de fórmulas, e tanto que, ordinariamente, se estipula vocalmente. Tem por fim concluir uma transação comercial; e é acessório de outro contrato, que vem a ser aquele que o corretor é encarregado de concluir»102. Sobre as declarações contratuais das partes, escreve: «[o] cliente que dá a ordem ou faz a incumbência ao corretor, obriga-se a pagar a corretagem; e o corretor que recebe a ordem ou incumbência, obriga-se a empregar os devidos esforços, para que o negócio chegue à conclusão»103. As compras e vendas que o corretor fazia por conta dos comitentes podiam ser feitas no mercado (quando efetuadas com outro corretor a agir por conta da parte contrária), ou por aplicação (quando dois clientes recorriam ao mesmo corretor para a realização das duas partes de uma transacção)104.

Repare-se que a enumeração das operações dos corretores não contemplava o mercado imobiliário (art. 66 do CCom), o que faz sentido na medida em que os corretores eram auxiliares do comércio por grosso, entre comerciantes. Não quer dizer que eles não pudessem ser encarregados da venda de imóveis. O art. 351, ao relacionar os objetos dos contratos nas bolsas, contemplava a venda de bens imóveis e de direitos a eles inerentes. Porém, seriam casos de exceção, como dá a entender ADRIANO ANTHERO

ao dizer, em anotação àquele artigo, que os imóveis «em regra, não fazem objeto das transações comerciais. Mas aqui incluem-se todas as espécies de vendas, e, portanto, de compras, pelas vantagens que este mercado das bolsas pode oferecer»105.

101 CUNHA GONÇALVES, Comentário ao Código Comercial português, I, pp. 163-4. 102 ADRIANO ANTHERO, Comentario ao Codigo Commercial portuguez, I, p. 157. 103 ADRIANO ANTHERO, Comentario ao Codigo Commercial portuguez, I, pp. 157-8. 104 ADRIANO ANTHERO, Comentario ao Codigo Commercial portuguez, I, p. 161. 105 ADRIANO ANTHERO, Comentario ao Codigo Commercial portuguez, II, p. 299.

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3.3.3 Declínio e transformação do corretor

Relembro os três grandes campos da intermediação dos corretores: mercadorias, seguros e títulos.

O DL 42.444, de 12 de agosto de 1959, considerou «extinta a obrigatoriedade de qualquer produto ser transacionado nas bolsas de mercadorias, quer em leilão, em concurso ou em particular, assim como a cobrança, pela Inspeção-Geral dos Produtos Agrícolas e Industriais, de taxas sobre mercadorias importadas, com o fundamento de não terem sido transacionadas nas mesmas bolsas» (art. 1.º), revogando os diplomas que obrigavam à transação em bolsa de uma série de produtos – nomeadamente, géneros coloniais, bacalhau, arroz, café, algodão e trigo (art. 2.º). Já então, segundo se lê no preâmbulo, as mercadorias não eram, em geral, negociadas na bolsa, à exceção daquelas que as leis em vigor obrigavam a que assim fossem transacionadas.

O DL 145/79, de 23 de maio, veio regular a atividade tendente à realização e/ou à assistência a contratos de seguro, entre tomadores e seguradoras, atividade a que chamou de mediação de seguros. A regulação desta atividade manteve-se até ao presente por via de vários diplomas que se foram sucedendo no tempo.

Entretanto, o DL 8/74, de 14 de janeiro, tinha regulado a organização e o funcionamento das bolsas de valores, bem como a disciplina das operações nelas realizadas e estabelecido o Regimento do Ofício de Corretor das bolsas de valores. Em 1988, o DL 229-I/88, de 4 de julho, regulou a constituição e o funcionamento das sociedades corretoras (ou brokers, que operam apenas por conta de terceiros) e das sociedades financeiras de corretagem (ou dealers, que podem também operar por conta própria), permitindo todavia, em disposição transitória, que os corretores individuais continuassem a exercer a atividade até ao final de 1990 (este diploma de 1988 veio a ser revogado pelo DL 262/2001, de 28 de setembro, que hoje rege aquelas sociedades).

Finalmente, o Código do Mercado de Valores Mobiliários (anterior ao vigente Código dos Valores Mobiliários), aprovado pelo DL 142-A/91, de 10 de abril, veio revogar os arts. 64 a 81 do CCom «no que se refere às bolsas de valores, seus corretores e operações sobre valores mobiliários» (art. 24 do DL 142-A/91). Por esta altura, o campo de aplicação daqueles artigos já estava reduzido à intermediação financeira, pois a mediação de seguros tinha regulamentação própria, a corretagem de mercadorias obrigatória tinha sido abolida, e a livre de há muito que não era praticada.

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Consequentemente, não obstante a restrição expressa na disposição revogatória, os artigos 64 a 81 desapareceram das subsequentes edições do CCom.

Podemos dizer que, do corretor do CCom nasceram, sobretudo, os intermediários financeiros e os mediadores de seguros; com efeito, o termo corretor subsiste apenas nas leis sobre intermediação financeira106 e sobre mediação de seguros107 para designar uma atividade ou um profissional que trabalha com base em vários contratos.

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