• Nenhum resultado encontrado

Nos embalos do canto orfeônico

No documento A Forja e a Pena - Ebook.pdf (11.70Mb) (páginas 52-55)

Estava com 16 anos e cursava a 3ª série quando entrara em contato com ela pela primeira vez. A experiência não fora das mais tranquilas, afinal de contas, nunca havia cantado em público antes. E ainda mais ali, diante daquela mulher alta, magra, enérgica, munida de uma batuta e de um diapasão, insistindo para que ele cantasse alguma coisa!

Para piorar a situação, só mesmo a presença da turma inteirinha, meninos que estavam na iminência de ser expulsos. Convenceu-a, enfim, a deixá-lo por último, mas não conseguira fugir da raia. Então, cantara um samba de Orlando Silva:

Perdoai-a para Deus.

A gente só se arrepende depois que faz. Você me abandonou faz muito tempo e não volta mais.

E queres convencer que tens razão, mulher! Não ajoelha em meus pés. Eu não sou Deus para te dar perdão.

Sempre te dizia, não era fantasia... Meu amor é diferente.

Você nada me ouviu e foi embora

e agora por que choras? Chora ...1

Assim foi o teste vocal de Eufrásio Trindade da Silva, aluno da oficina de Alfaiataria, ingresso no Liceu Industrial em 1938. A experiência, descrita com a professora Maria de Lourdes Filgueira Guilherme, teria acontecido, segundo ele, no ano em que a mesma fora contratada para formar um coral.

Para o alfaiate José Tácito Pereira Rocha 2, vulgo

Ebenezer, a prova de fogo fora menos tensa. Nascido em lar evangélico, segundo justificara, era

1 SILVA, Eufrásio Trindade da. Sobre a Escola de Aprendizes Artífices e o Liceu Industrial de Natal. Entrevistadores: Arilene Lucena de Medeiros e Carmem Daniela Spínola D’Hora. Natal, 2006. ____. Sobre a Oficina de Alfaiataria, as aulas de educação física e o canto orfeônico. Entrevistador: Adriana Severo. Natal, 2007. 1 gravação digital audiovisual em minidv. (30min).

2 ROCHA, José Tácito Pereira. Sobre a Oficina de Alfaiataria e as aulas de canto orfeônico. Entrevistador: Arilene Lucena de Medeiros e Daianne Luz. Natal, 2006. ______. Sobre a Oficina de Alfaiataria, as aulas de educação física e o canto orfeônico. Entrevistador: Adriana Severo. Natal, 2007. 1 gravação digital audiovisual em minidv. (19min).

acostumado a cantar nos corais da igreja. Ao seu pedido, cantou para ela uma música que chamara muito sua atenção: Meu filho, você vai ganhar uma bolsa de estudos”!

A canção fazia parte do folclore musical brasileiro, que ao lado dos hinos patrióticos, constituía o programa do canto coral popular a ser ministrado pela professora sob a denominação de canto orfeônico. Dizia assim:

Como pode um peixe vivo viver fora d’água fria,

Como pode um peixe vivo viver fora d’água fria,

Como poderei viver Como poderei viver

Sem a tua, sem a tua, sem a tua companhia. Sem a tua, sem a tua, sem a tua companhia. 3 No projeto educacional proposto pelo Ministério da Educação do Governo Vargas, o ensino do canto orfeônico caminhava lado a lado com o de educação física. Ambos surgiram pelo mesmo decreto, em abril de 19314, e foram reforçados, três anos

depois, com uma legislação que ressaltava seu valor pedagógico como uma das mais eficazes maneiras de desenvolver os sentimentos patrióticos do povot.

5

Por isso, quando a Lei Orgânica do Ensino Industrial fora promulgada em janeiro de 1942, as chamadas “práticas educativas” tornaram-se obrigatórias no currículo dos cursos industriais, de mestria, técnicos e pedagógicos. A educação física, até a idade de 21 anos, e a educação musical, constituída por aulas e exercícios de canto orfeônico, até o aluno completar

3 Música pertencente à tradição oral.

4 BRASIL. Decreto nº. 19.890 de 18 abril de 1931. Dispõe sobre a Organização do Ensino Secundário. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 31 dez. 1931. Coleção de Leis do Brasil. Disponível em: <http://www6. senado.gov.br>. Acesso em: 04 dez. 2007.

5 ______. Decreto nº. 24.794 de 14 julho de 1934. Cria, no Ministério da Educação e Saúde Pública, sem aumento de despesa, a Inspetoria Geral do Ensino Emendativo, dispõe sobre o ensino do Canto Orfeônico e dá outras providências. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 31 dez. 1934. Coleção de Leis do Brasil. Disponível em: <http://www6. senado.gov.br>. Acesso em: 04 dez. 2007.

18 anos.6

As tentativas do Ministério de implantar um programa de educação estética musical na rede educacional brasileira só ganharam reforço, porém, em 1943, após a instalação do Conservatório Nacional de Canto Orfeônico, originário de um projeto de grande envergadura apresentado ao ministro Gustavo Capanema pelo maestro Heitor Villa-Lobos:

Tomo a liberdade de propor a V. Excia. a solução que segue, a qual nada mais é do que um plano de reforma e adaptação edu- cacional da música no Brasil, para que dessa forma possa ser considerado o problema da música brasileira, como o de absoluto inte- resse nacional a corresponder às respeitosas e elevadas idéias de nacionalização do Exmo. Sr. Presidente da República. 7

Instalado junto à Escola Nacional de Música da Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro, o Conservatório dedicara-se à formação de candidatos ao magistério primário e secundário do canto orfeônico, ministrando conteúdos de Didática e Prática do Canto Orfeônico, Coordenação Orfeônica Escolar, Estética Musical e Cultura Pedagógica. 8

Diplomada pelo Conservatório, onde tivera aulas com o próprio Villa-Lobos, Lourdes Guilherme ampliara sua atuação em Natal como professora de canto e piano nas Escolas Normal e Doméstica, no Atheneu e na Escola Industrial, na qual fora contratada em março de 1945, nela permanecendo até julho de 1968.9

Sua presença de espírito, postura e competência profissional eram traços tão fortes nessa comunidade escolar que seu nome é mencionado por todos quantos conviveram com ela no período citado. Uma das poucas mulheres, dentre as funcionárias

6 ______. Decreto-lei nº. 9.494 de 22 de julho de 1946. Lei Orgânica do Ensino de Canto Orfeônico. Rio de Janeiro: Diário Oficial da União, 27 jul. 1946, p.10.923, coluna 1.

7 VILLA-LOBOS, Heitor. Ofício ao ministro Capanema. In: SCHWARTZMAN, Simon, BOMENY, Helena Maria Bousquet, COSTA, Vanda Maria Ribeiro. Tempos de Capanema. São Paulo: Paz e Terra: Fundação Getúlio Vargas, 2000. p. 109.

8 SCHWARTZMAN, Simon, BOMENY, Helena Maria Bousquet, COSTA,Vanda Maria Ribeiro. Tempos de Capanema. São Paulo: Paz e Terra: Fundação Getúlio Vargas, 2000. p. 109.

9 GUILHERME, Joaquim. Sobre a professora Maria de Lourdes Filgueira Guilherme. Entrevistador: Arilene Lucena de Medeiros. Natal, 2003. 1 gravação digital audiovisual em minidv. (06min).

da Escola Industrial, que tiveram a oportunidade de substituir interinamente o diretor em suas viagens de trabalho à capital da República, como também de assessorar a direção nas ações de natureza pedagógica, cultural e administrativa.

Aluno do curso industrial básico de Mecânica, no período de 1957 a 1960, Francisco Bernardino de Souza resume, com as seguintes palavras, a imagem dessa professora diante da comunidade estudantil:

Lourdes Guilherme era aquela mãe que quem não teve passou a ter e a segunda mãe daqueles que tinham. Ela era próxima dos alunos. Obedecíamos cegamente ao que ela dizia. Nos contatos que tinha conosco nos orientava que deveríamos nos comportar como homens. O respeito que deveríamos ter pela pátria, pelos símbolos, o Hino Nacional - que ela fazia questão de ensinar. As aulas de canto eram o lócus utilizado para esta for- mação.10

Embora a prática educativa do canto orfeônico não implicava necessariamente a formação de um coral escolar, as aulas ministradas pela professora Lourdes Guilherme na Escola Industrial visavam, sempre, às apresentações públicas: solenidades de diplomação, recepção a visitantes ilustres, comemorações alusivas ao aniversário da escola, horas cívicas do Centro Lítero-Recreativo Nilo Peçanha e até os desfiles de 7 de Setembro.

João Maria Cortez, aluno do ginásio industrial no período de 1959 a 1962, se recorda de uma ocasião em que Lourdes Guilherme introduzira a expressão “Estudante Industrial” em determinado hino para que os alunos o apresentassem durante o desfile da Semana da Pátria.

Eu me lembro que ela ensaiou isso bastante com os alunos de todas as séries da escola e no desfile de 7 de Setembro todos nós que íamos na marcha cantávamos. Era uma coisa assim que não existia na época [...], era apenas marchar acompanhado da banda. Cantamos em um percurso na Avenida Deodoro com essa música ensaiada [...], praticamente todas as aulas eram pra ensaiar e ela não queria que desentoasse, entendeu? Ela olhava aluno por aluno, assim, nos olhos, 10 SOUZA, Francisco Bernardino de. Sobre a Escola Industrial de Natal. Entrevistador: Maria da Guia de Sousa Silva. Natal, 08 fev. 2010. 1 gravação digital. Sonoro.

pra ver quem tava cantando certinho [...]. Eu posso até solfejar um pouco a letra. Era bem assim: Estudante Industrial/ sua missão é a maior missão / trabalhar pela verdade e por sua geração / marchar, marchar pra frente / lutar incessantemente / a vida ensinar / ide- ias avançar / e assim será bem maior / o seu valor varonil.11

Apesar da predominância de cânticos folclóricos e patrióticos no repertório trabalhado com os estudantes, a música erudita também ocupara seu espaço no programa preparado por Lourdes Guilherme. Nessa época, o acervo sonoro da Escola Industrial mantinha, entre outros discos à vitrola, os clássicos de Beethoven, Bach, Grieg, Chopin, Schubert, Wagner e Strawinsky.12

Contemporâneo de João Maria Cortez no curso industrial básico, o ex-aluno Júlio Alves Hermínio considera marcante essa vivência musical proporcionada pela instituição.

Tudo o que eu aprendi praticamente de músi- ca erudita foi nessa época. Claro que depois você se interessa e vai estudando mais, mas nessa época, só pra ter uma idéia como é que eram os exames que ela fazia com a gente: Ela ensinava todos aqueles compositores [...] e no dia da avaliação era uma coisa que a gente tremia muito. Por quê? Porque ela isolava a sala com uma divisória - na sala de aula tinha um piano -, e ela ficava por trás dessa divisória executando essas obras e a gente tinha de dizer de quem era aquela obra. Então veja que rigor a gente tinha pra aprender isso aí!13

11 MELO, João Maria Cortez Gomes de. Sobre a Escola Industrial de Natal. Entrevistador: Arilene Lucena de Medeiros. Natal, 07 abr. 2008. 1 gravação digital audiovisual em minidv. (36min)

12 GUILHERME, Lourdes. Gravações que vão integrar a discoteca da Escola. Natal, 06 abr. 1951.

13 HERMÍNIO, Júlio Alves. Sobre a trajetória do servidor como aluno e professor da Escola Industrial à Escola Técnica Federal do Rio Grande do Norte. Entrevistador: Arilene Lucena de Medeiros. Natal, 15 jul. 2008. 1 gravação digital audiovisual em minidv. (29min).

Ao lado do canto orfeônico, as aulas de educação física e os exercícios pré-militares constituíam as práticas educativas obrigatórias do currículo escolar. Década de 40.

O empenho na organização das exposições

No documento A Forja e a Pena - Ebook.pdf (11.70Mb) (páginas 52-55)