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Nos trilhos da luta

No documento Escrita subsiva: O Democrata (páginas 35-39)

Escritos subversivos no Ceará

1.2 Nos trilhos da luta

Mas os protestos dos trabalhadores não foram “privilégios” da mobilização dos homens letrados. Os homens do campo também participaram da luta por melhores condições de vida. Eles chegaram até a Capital e enfrentaram a exploração da mão-de-obra, num contexto de afirmação da cidade-província. Durante a construção da Estrada de Ferro de Baturité, a partir de 1872, um contingente de três mil trabalhadores chegou a ser arregimentado. A seca de 1877 a 1879 contribuiu para o aumento da mão-de-obra farta e barata, que ajudou a rasgar os trilhos do progresso no sertão cearense. Em 1878, foi a vez de o trem tomar o rumo da região Norte do Estado com o início da construção da ferrovia para Sobral, em direção ao porto de Camocim. Desta forma, no final do Século XIX, as estradas de ferro passaram a ser a “escola do trabalho”, preparando operários, segundo a lógica e racionalidade próprias do capitalismo29.

O trabalho pesado de construção das ferrovias era sinônimo de exploração e baixos salários, cujos valores ficavam entre 300 e 800 réis, por dia. Para se ter idéia dessas quantias, na época, um jornal chegava a custar algo em torno de 500 réis. Mal alimentados e sem experiência técnica, eram comuns os acidentes em descarrilamentos e explosões de minas para abrir caminhos. Aos poucos, esses trabalhadores foram resistindo e criando mecanismos de defesa, pois a miséria extrema não era sinônimo de passividade, como analisa Tyrone Cândido:

...o padrão de trabalho não os condicionava à passividade. Pelo contrário, o padrão de trabalho novo, de tipo capitalista, caracterizado pelo tempo cronometrado, pela disciplina, e pela necessidade de obediência a um saber estranho, parece ter suscitado, por parte dos trabalhadores da construção da Estrada de Ferro de Baturité – homens e mulheres provenientes do sertão

29 Cândido, Tyrone Appollo Pontes. In Os Trilhos do Progresso: episódios das lutas operárias na

construção da Estrada de Ferro de Baturité (1872-1926). Trajetos. Revista do Programa de Pós

Graduação em História Social e do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará. Vol. 1, número 2 (jun.2002).

agrário -, momentos de conflitos e ações de resistência que marcaram indelevelmente a trajetória daquela ferrovia e a formação da classe operária” 30.

Em 1890, os trilhos já alcançavam Baturité e chegavam até Quixadá deixando um rastro de homens maltrapilhos e cansados das longas jornadas debaixo do sol. Nesse percurso, a ferrovia formava também uma categoria de trabalhadores, responsável pelos serviços de funcionamento das estações e manutenção dos trens e trilhos. Os chamados ferroviários eram pessoas que conheciam a história desses caminhos e compartilhavam de perto os desafios do ferro cravado sobre a madeira no chão quente. No período de 1888 a 1889, quando o Ceará saía de mais uma seca, o trem chegava ao sertão central com as oficinas, estações e locomotivas, ao longo de quase 200 quilômetros. Eram novos espaços de trabalho a empregar desde engenheiros e mecânicos, até auxiliares nas estações de passageiros.

Os retirantes começaram a conviver com o novo regime de trabalho, cheio de horas contadas e tarefas a serem cumpridas31. Acostumados ao trabalho

familiar e autônomo nas terras arrendadas, agora se viam diante da divisão do trabalho e das ordens severas do engenheiro-chefe ou do capataz. O saber do campo era desprezado pela disciplina rigorosa imposta pelos engenheiros e regulamentos, alguns deles estrangeiros (Neves, 2005; Tyrone, 2002). O trem derrubava a mata, cortava as serras, “levava o progresso e dava empregos às pobres famílias”, como argumentavam os construtores. Diante das jornadas forçadas, esta gente do interior começou a traçar as estratégias de enfrentamento. Em 1889, as primeiras insatisfações chegam às ruas de Fortaleza, em manifestação dos empregados das oficinas de Baturité, que reivindicavam a regularização da jornada de trabalho de oito horas.

30 Cândido, Tyrone Appollo Pontes. In Os Trilhos do Progresso: episódios das lutas operárias na

construção da Estrada de Ferro de Baturité (1872-1926). Trajetos. Revista do Programa de Pós

Graduação em História Social e do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará. Vol. 1, número 2 (jun.2002).

31 No próximo tópico (p. 25 a 35), faço uma breve análise sobre o contexto de participação desses

A tensão ficou ainda maior, a partir de 1891, com a implantação de mudanças na condução do trabalho da ferrovia, além de alterações na estrutura hierárquica e a imposição de uma caderneta de controle32. Nesse mesmo ano, os

ferroviários realizavam a primeira greve da categoria, encabeçada por 52 operários das oficinas da Estrada de Ferro de Baturité. Os trabalhadores das oficinas, em Fortaleza, exigiam a demissão do mestre de oficina e reivindicavam aumento de salário33. Eles condenavam a implantação de novas medidas impostas pelo engenheiro-chefe, Ernesto Lassance Cunha, sem a discussão prévia da categoria. Na visão dos ferroviários, as medidas constrangiam os operários. A paralisação durou cerca de um mês, suficiente para creditar a primeira vitória desses trabalhadores, tendo em vista que foram acatadas parte das reivindicações.

Alguns jornais da cidade faziam coro diante do protesto inédito. O jornal Cearense tinha, como um dos fortes apoiadores do movimento, Rodrigues Júnior. O jornal O Combate, ligado ao Partido Operário, apoiava e repercutia o movimento grevista e abria suas páginas para fazer as denúncias de insatisfações:

“As officinas ficarão todas sôb a direção de um só mestre e um contra- mestre ficando o primeiro com largas attribuições, e como tal, perseguir os seus companheiros que o considerão mais um inimigo do que um chefe. Além de todas estas reformas feitas no Regulamento e que acarretarão estamos certos, sensíveis prejuízos para a nossa classe, pretende o Director da Estrada de Ferro, como tem dito particularmente, priva-los até do sagrado direito de votar, não querendo que haja política naquella repartição”34.

Pelas páginas dos jornais e outras fontes de pesquisa, as mudanças nas relações de trabalho, em que as imposições das jornadas excessivas, além das condições de trabalho e os baixos salários, contribuíram para as primeiras

32 Fonte: Jornal O Combate, de 26/05/1891. 33 Fonte: Jornal A Verdade, de 07/06/1891. 34 Fonte: Jornal O Combate, de 26/05/1891.

mobilizações de trabalhadores. A condição servil de trabalho, legado da sociedade escravocrata, buscava substituir a mão-de-obra compulsória pelo regime de tarefas diferenciadas, baseado no pagamento de baixos salários. A condição de exploração imposta aos trabalhadores sofreu resistências, preparando assim as estratégias de lutas e táticas de insubordinação. Os protestos surpreenderam o empregador, que buscou resposta frente ao confronto e atendeu parte das reivindicações. A criação da Associação Beneficente do Pessoal da Estrada de Ferro de Baturité era uma forma de conter as insatisfações.

A entidade beneficente fundada pelo engenheiro-chefe da Estrada de Ferro, Ernesto Lassance, tinha como objetivos a aproximação dos ferroviários, a fim de poder cooptá-los. O surgimento da escola de alfabetização noturna, ligada à associação beneficente, foi uma maneira de barrar as ações do Partido Operário (PO)35, que também tinha uma experiência de Escola Noturna, com fins

semelhantes. Já a direção da Estrada de Ferro buscava desarticular as ações do partido classista. Em virtude da capacidade de organização dos ferroviários e da numerosa fileira de trabalhadores, estimada em três mil pessoas, os partidos políticos e associações voltavam os “olhos” à categoria emergente e traçavam programas voltados a esse público. Mas a maior parte dessa aproximação tinha o intuito de desmobilizar ou ainda angariar votos nas primeiras eleições.

As experiências pioneiras dos ferroviários e tipógrafos, como ressaltei anteriormente, alimentaram as discussões das categorias. As suas vivências abriram os caminhos do intercâmbio de formação de novas entidades classistas. O proletariado conhecia, nos espaços de luta, as possibilidades de enfrentamento. As participações sedimentaram articulações futuras, no sentido de canalizar a insatisfação das categorias exploradas pelo novo regime de horas trabalhadas e salários reduzidos. Nesse contexto, a transição da Monarquia para a República trouxe contribuições ao debate e à circulação das idéias, no universo da política. A circulação de escritos rebeldes, difundidos pelas categorias, ajudava a questionar, permitia a reflexão sobre as condições impostas pelo mundo do trabalho. Os intérpretes da transgressão partilhavam de idéias opostas, eles se defrontavam

35 Mais à frente trato do Partido Operário (PO). O partido prestava o apoio aos ferroviários nas suas

com o sistema que garantia a manutenção do poder e a exploração da mão-de- obra.

No documento Escrita subsiva: O Democrata (páginas 35-39)