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Novas mercadorias, novas idéias e novos conceitos

CAMPO GRANDE: DEMONSTRATIVO DA DISTRIBUIÇÃO HIPOTÉTICA ENTRE OS USUÁRIOS DAS LINHAS INTEGRADAS QUE UTILIZAM AS LINHAS ALIMENTADORAS –

III. A RUA 14 DE JULHO E A ECONOMIA “Deixo em testamento

2. Novas mercadorias, novas idéias e novos conceitos

Nas últimas décadas do século XIX, o Brasil estava em plena transformação, com o fim da escravidão, a proclamação da República e o surgimento de uma elite endinheirada pelo café que possibilitou o financiamento da industrialização de São Paulo e o surgimento do centro monopolista paulista. Nesse mesmo período, a Argentina vivia uma fase de muito dinamismo na sua economia, com um mercado que se expandia além das suas fronteiras, adentrando o território mato-grossense, através dos rios da

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SERRA, Ulysses. Camalotes e Guavirais... p.49 14

Bacia do Prata e chegava até o Triângulo Mineiro, passando por Campo Grande15.

Nesse contexto, Mato Grosso foi incorporado ao mercado internacional, por intermédio das rotas de circulação de mercadorias, lideradas por Buenos Aires e Montevidéu e havia os portos de Corumbá e Concepción como portas de entrada para o seu vasto território. Portanto, a virada do século XIX para o século XX foi marcada por uma conjunção de fatores que, interna ou externamente, levaria os habitantes dos pequenos lugarejos do oeste brasileiro, incluindo logicamente Campo Grande, a incorporarem novas formas de comportamentos, que acabariam por transformar as relações sociais entre eles e deles com o espaço em que viviam.

É compreensível que as novas atitudes, introduzidas no dia-a-dia dos moradores daqueles vilarejos, por meio da ampliação das relações de trocas, via aumento da circulação de mercadorias, os distanciassem dos seus antigos padrões campestres e os induzissem a vivenciar uma outra realidade, mais próxima daquela experimentada por aqueles que moravam em regiões já urbanizadas.

Em função dessa nova realidade de mudanças no comportamento social, o Decreto que instituiu o Código de Posturas de Campo Grande, em 1905, buscou dar aos habitantes do lugar, um corpo normativo às novas regras de convivência, conforme já analisado em capítulo anterior. Com ele, ao mesmo tempo, tentava-se acelerar o entendimento, por parte daquela população, da nova realidade a que estava sendo submetida e se procurava aprofundar e disseminar os novos usos e costumes.

Entendo que o aumento nas relações de trocas e na utilização do dinheiro, para mediar essas relações, acelerava a absorção de maneiras urbanas de se comportar e introduzia, conseqüentemente, na sociedade campo-grandense, uma série de novas necessidades. Necessidades essas que eram, até então, desconhecidas para aquele grupo de pessoas, mas que já faziam parte do dia-a-dia dos habitantes de Buenos Aires, Montevidéu e Rio de Janeiro, assim como das cidades européias, já com uma grande tradição de vida urbana.

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BOURLEGAT, Cleonice Alexandre Le. MATO GROSSO DO SUL E CAMPO GRANDE:

As necessidades recém incorporadas suscitavam um aumento na oferta de mercadorias, também novas para o lugar, produzidas para satisfazer os mesmos anseios já existentes nos locais anteriormente integrados ao mercado de trocas e que eram inevitavelmente consumidas por aquela população. Por sua vez, essas novas mercadorias traziam consigo novas idéias, provocando novos comportamentos, inferindo novas necessidades, que levariam ao consumo de outras mercadorias, fechando assim um círculo vicioso, muito interessante para o modo capitalista de produção.

Esse raciocínio serve como base para o entendimento de que, nas sociedades em que prevaleçam relações capitalistas de trocas e produção, novas idéias assim como novos padrões de comportamento, inerentes aos interesses do capital, vão sendo transmitidos dos locais mais integrados para os menos integrados e que essa transmissão segue a mesma rota da comercialização de mercadorias. Seguindo essa hipótese, pode-se dizer que, quanto maior o volume de mercadorias que circulam por um lugar, maior a circulação e a conseqüente incorporação de idéias novas para o local, oriundas dos pontos de origens e de passagens dessas mercadorias. Eleva-se, também, na mesma proporção, a noção de progresso.

Para a região oeste do Brasil, essa relação entre a circulação de dinheiro e mercadorias e a noção de progresso podem ser detectadas no livro de Annibal Amorim, quando ele escreve que, na cidade de Corumbá, havia vários inconvenientes como: tiroteios, cantos de galos que duravam a noite inteira, latidos de cães, calor de mais de 30º C e bicharocos atraídos pela iluminação pública, mas:

Apezar desses inconvenientes, a cidade progride. Corre alli muito dinheiro. Os melhoramentos urbanos continuam. Depois da illuminação electrica, veiu a rede telephonica, que acaba de ser istallada.

Ao mesmo tempo, sobre a ausência de progresso na cidade de Cuiabá, fazendo o mesmo raciocínio, relacionando-a com a falta de proximidade com centros comerciais, o autor escreveu:

Uma das causas determinantes da ausência de progresso que se observa na capital do Estado, reside no seu afastamento dos grandes nucleos commerciaes do paiz.16

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AMORIM, Annibal. VIAGENS PELO BRAZIL: Do Rio ao Acre – Aspectos da Amazônia do Rio a

Fernando de Azevedo, no livro anteriormente citado, busca enfatizar a importância para a humanidade da abertura de estradas e caminhos – sejam eles terrestres, fluviais ou marítimos – por onde corre a vida coletiva, projetando até os pontos mais distantes, o raio de ação dos centros que emana e distribui o poder político e econômico. Ele afirma que, pelas vias de comunicação de qualquer tipo ou natureza, não se realizam somente trocas comerciais e de negócios, mas também existe a propagação de idéias e de culturas diferentes.

No raciocínio de Azevedo, passa a existir uma fecundação de umas civilizações por outras17, realizando um alargamento progressivo dos horizontes das sociedades mais afastadas dos centros mais civilizados. Azevedo prossegue, escrevendo:

Não são, pois, sòmente as mercadorias, os artigos de comércio, os produtos, mas a língua, a cultura, as idéias e os costumes que circulam ao longo dos caminhos.18

Indo um pouco mais além, quero dizer que, no modo capitalista de produção, as trocas de mercadorias são as principais responsáveis pela criação de novas estradas e pela ampliação dos meios de comunicação. A incessante busca por novos mercados faz com que os bens produzidos sejam levados até as mais distantes localidades e, para tanto, é necessária a constante abertura de novos caminhos. Desse modo, procuro entender as mercadorias como os meios de condução que fariam a emanação e a distribuição das idéias predominantes nos centros dos poderes econômicos e políticos até as mais distantes periferias, seguindo os caminhos referidos por Azevedo.

É na contínua movimentação dos mercados de trocas, que as mercadorias, além de conduzirem valor e incorporarem parte desse valor nos locais por onde elas circulam, também carregam idéias e vão, ao longo do seu caminho, transmitindo-as e fazendo-as serem incorporadas pelas populações dos lugares que fazem parte da sua rota de circulação. Não é demais ressaltar que, embora todos os tipos de idéias acompanhem a circulação de 17

Embora, na obra citada não haja uma discussão conceitual a respeito dos termos civilização e civilidade, entendo que a fecundação de uma civilização por outra civilização, nos moldes que Fernando de Azevedo deseja imputar, se dê de forma hierárquica, através do avanço técnico, que ele prefere interpretar como sendo do centro mais civilizado para o centro menos civilizado.

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mercadorias, são as idéias das classes dominantes, aquelas que predominam e que, evidentemente, serão as mais incorporadas.

Sobre predominância das idéias da classe dominante, Marx e Engels escreveram:

As idéias da classe dominante são, em cada época, as idéias dominantes; isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante.(...). As idéias dominantes nada mais são do que a expressão ideal das relações materiais dominantes, as relações materiais dominantes concebidas como idéias; portanto, a expressão das relações que tornam uma classe a dominante; portanto, as idéias de sua dominação.19

Seguindo todo esse raciocínio, pode-se dizer que as mercadorias que chegavam, no início do século XX, até a vila de Campo Grande, como uma novidade, traziam consigo as idéias da elite dominante dos centros de poder econômico, que transformavam essas mercadorias em realidade e em necessidade. Essas idéias, após assimiladas, incluiriam, ao curso de pouco tempo, nos moradores do lugarejo, a necessidade de consumo das mercadorias que, por isso mesmo, deixavam de ser novidade e passavam a fazer parte do quotidiano daquelas pessoas.

Campo Grande estava localizada no cruzamento de rotas distintas de comercialização de mercadorias. Por ela passavam produtos vindos do além-mar, por meio dos rios da Bacia do Prata, assim como outros vindos do Rio de Janeiro e São Paulo, via boiadeiros do Triângulo mineiro. De certa forma, ela representava, naquele momento, a ponta final da linha de transmissão das novas idéias, ou seja, o local de menor integração às novas tecnologias e de maior possibilidade de incorporação de novas idéias.

Seguindo essa trajetória, tinha-se uma situação em que os habitantes de Campo Grande incorporavam idéias originárias principalmente da Europa, mas que já continham elementos introduzidos nos pólos intermediários, no caso: Buenos Aires, Montevidéu, Assunção, Corumbá, Concepción, Rio de Janeiro, São Paulo e Uberaba.

As novas idéias criavam a necessidade do consumo de mercadorias e revolucionavam as relações sociais, assim como as relações dos habitantes com o espaço que habitavam. No âmbito social,

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implementavam-se outros padrões de condutas morais, ao mesmo tempo, novas concepções de ocupação espacial tomavam conta do relacionamento entre o homem e meio. Num capítulo em que comenta as ações dos mascates e a presença de bolichos, que eram os responsáveis pela comercialização de mercadorias, Paulo Coelho Machado descreveu a chegada de novas idéias em Campo Grande:

Assim surgiram conhecimentos novos, concepções desconhecidas, práticas profissionais, religiosas, morais, fora dos padrões existentes. O novo estilo cristalizou-se gradativamente em costumes e tradições que não mais se modificaram. O progresso, em tempo algum, deixou que Campo Grande voltasse aquela posição de atraso e insularidade.20

Verifica-se, nos comentários do memorialista, a importância das transformações ocorridas na sociedade campo-grandense, após a efetiva inclusão do lugarejo no mercado de trocas. Como pecuarista, e legítimo representante da elite local, o autor relaciona a incorporação de novas idéias com o conceito que sua classe tem sobre progresso.