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Numeracia: definic¸˜oes e dimens˜oes

No documento A Matemática na Imprensa Portuguesa (páginas 66-70)

1.3 A numeracia e o caso particular da numeracia dos jornalistas

1.3.1 Numeracia: definic¸˜oes e dimens˜oes

´E reconhecida a crescente importˆancia da utilizac¸˜ao de conhecimentos matem´aticos na vida quotidiana, seja para fazer face a certo tipo de problemas, interpretar certo tipo de informac¸˜ao ou ajudar a tomar algumas decis˜oes importantes (Best, 2008). Estudos emp´ıricos indicam ainda que quanto melhor for a capacidade do indiv´ıduo em usar competˆencias matem´aticas nas situac¸˜oes do dia-a-dia, menos sujeito est´a a condicionar as suas decis˜oes a efeitos de contexto (estado de esp´ırito ou ideias preconcebidas sobre o assunto em causa, por exemplo) ou `a forma da informac¸˜ao (por exemplo, se um dado ´e apresentado em frequˆencia absoluta ou

33Exemplo: curso de matem´atica para jornalistas da Universidade de Austin (https://knightcenter.utexas.edu/

course/mathematics-journalists-6th-edition, consultado pela ´ultima vez em 7 de fevereiro de 2014.

34Exemplo: Cap´ıtulo “Matem´atica para Jornalistas” do Manual de Jornalismo da Reuters (http://handbook.reuters.

com/?title=CAPTULO 2 - MATEMTICA PARA JORNALISTAS — consultado pela ´ultima vez em 7 de fevereiro de 2014.

35Exemplo: http://www.robertniles.com/stats/ — consultado pela ´ultima vez em 7 de fevereiro de 2014. 36Exemplo: Wickham, K.(2003), Math Tools for Journalists: Student Version, Marnion Street Press.

em frequˆencia relativa) e em ´ultima instˆancia, ´e menos prov´avel que ceda perante informac¸˜ao enganosa (Peters, 2012).

A capacidade de usar a matem´atica em contexto pr´atico ´e, h´a muito, designada na literatura por numeracia. Todavia, as contribuic¸˜oes de v´arios autores para tal definic¸˜ao evidenciam divergˆencias de delimitac¸˜ao e diferentes concec¸˜oes quanto `as componentes da numeracia. Estas divergˆencias observam-se at´e na diversidade de termos usados, entre os quais se identificam numeracia, literacia quantitativa, literacia matem´atica ou materacia (D’Ambrosio, 2003; Steen, 1990b).

Embora neste trabalho n˜ao se procure apresentar uma reflex˜ao pormenorizada sobre a diferenc¸a entre os termos usados, realc¸a-se o trabalho de Steen nesse contexto por auxiliar na distinc¸˜ao de conceitos e desse modo contribuir para a fixac¸˜ao de terminologia usada na investigac¸˜ao realizada no ˆambito desta dissertac¸˜ao. De acordo com o autor, os termos numeracia e literacia quantitativa s˜ao usados, de uma forma geral, como sin´onimos, embora realce que, nalguns contextos, literacia quantitativa tem um significado mais restrito do que numeracia. J´a no que se refere `a distinc¸˜ao entre literacia quantitativa e literacia matem´atica, Steen salienta que este ´ultimo ´e um termo mais usado por matem´aticos e educadores. Embora n˜ao seja claro se estes usam com o mesmo sentido de literacia quantitativa, o autor afirma que, para a maioria das pessoas, o termo literacia matem´atica ´e usado em referˆencia ao desempenho matem´atico37 em situac¸˜oes anteriores `a vida profissional e com exigˆencias

consideradas avanc¸adas ao n´ıvel do conte´udo. Por estas raz˜oes n˜ao se optar´a por usar o termo literacia matem´atica na investigac¸˜ao que se pretende conduzir.

D’Ambrosio contribui tamb´em para a distinc¸˜ao entre conceitos. Especificamente, o autor afirma que, enquanto a literacia quantitativa ou a numeracia constituem componentes comunicativos inclu´ıdos na literacia, a materacia ´e um instrumento anal´ıtico definido como a capacidade de inferir, propor hip´oteses e tirar conclus˜oes partindo de dados (D’Ambrosio, 2003). Todavia, esta capacidade que D’Ambr´osio associa ao conceito de materacia est´a, de certa forma, impl´ıcita na definic¸˜ao que Gal atribui ao conceito de numeracia:

O termo numeracia descreve a agregac¸˜ao de competˆencias, conhecimento, opini˜oes, disposic¸˜oes e h´abitos de pensamento assim como competˆencias de comunicac¸˜ao geral e de resoluc¸˜ao de problemas de que as pessoas precisam para lidar efi- cazmente com situac¸˜oes do mundo real ou tarefas interpretativas que integram elementos matem´aticos ou quantific´aveis (citado em (Neill, 2001)).

Pelo facto da definic¸˜ao de Gal ser abrangente, utilizar-se-´a a mesma na presente investigac¸˜ao. Tendo em considerac¸˜ao as diferentes nuances subjacentes aos termos numeracia, literacia

37Neste contexto, o “desempenho matem´atico” incorpora noc¸˜oes que se estendem al´em das num´ericas,

quantitativa, literacia matem´atica e materacia, opta-se ainda por utilizar a designac¸˜ao de numeracia, por ser a que melhor se adapta ao que se pretende estudar.

Para al´em da contribuic¸˜ao de Gal, outros autores, tais como Johnson ou Cockcroft (referido em (Donoghue, 2002)) forneceram diferentes definic¸˜oes para numeracia, que ilustram n˜ao s´o diferentes perspetivas sobre o conceito numa dada altura, mas tamb´em da evoluc¸˜ao do pr´oprio conceito ao longo do tempo, que foi refletindo as exigˆencias e as expectativas impl´ıcitas da sociedade (Steen, 1990b). A este prop´osito, Steen refere que:

Parece haver um consenso razo´avel entre indiv´ıduos de perspetivas amplamente diferentes quanto ao crescimento natural desde a numeracia da aritm´etica b´asica da escola prim´aria at´e ao racioc´ınio num´erico mais sofisticado das medidas, proporc¸˜oes, percentagens, gr´aficos e an´alise explorat´oria de dados, que ´e agora o foco da matem´atica no segundo ciclo (Steen, 1997).

Partindo desta observac¸˜ao de Steen e tamb´em da definic¸˜ao de Gal e da consulta de outras mais recentes, compreende-se que n˜ao s´o os conte´udos associados a n´umeros e medidas se incluem nas definic¸˜oes mais recentes de numeracia, mas tamb´em conte´udos de ´algebra, geometria, estat´ıstica, a resoluc¸˜ao de problemas e pensamento l´ogico (no qual se incluem, por exemplo, a detec¸˜ao de fal´acias ou avaliac¸˜ao de evidˆencias) (FitzSimons, 2008; Steen, 1997). Sendo a numeracia uma construc¸˜ao da sociedade, n˜ao ´e s´o a evoluc¸˜ao temporal que a molda mas tamb´em o pr´oprio contexto social, cultural, hist´orico ou pol´ıtico (FitzSimons, 2008), que ajudam a definir a estrat´egia (matem´atica) usada pelo cidad˜ao de acordo com as suas necessidades externas, contextuais ou locais. Em contraponto, o desenvolvimento na ´area da matem´atica, embora muitas vezes seja motivado por necessidades externas, n˜ao ´e determinado necessariamente por elas, uma vez que o conhecimento (matem´atico) pode ser criado com base em ideias abstratas. ´E aqui que reside, segundo FitzSimons, uma das diferenc¸as entre a numeracia e a matem´atica. Outra diferenc¸a, de acordo com o investigador, ´e que a matem´atica ´e caracterizada por uma estrutura sistem´atica, coerente e expl´ıcita, em que o conhecimento mais complexo ´e constru´ıdo com base em argumentos e conceitos mais simples e est´a organizado em especialidades38. Em contraponto, a numeracia remete para

o uso de conhecimento matem´atico que ´e simples39e portanto n˜ao tem a estrutura “vertical”

que caracteriza a matem´atica, mas antes constitiu um discurso que Bernstein (referido em (FitzSimons, 2008)) designa de “horizontal”. Este discurso horizontal que constitui a numeracia ´e desenvolvido distintamente pelos cidad˜aos, de acordo com as circunstˆancias com que se v˜ao deparando ao longo das suas vidas. Especificamente, Steen (1990b) identifica cinco contextos importantes neste ˆambito: pr´atico, referente `as capacidades matem´aticas que o indiv´ıdio usa no seu dia-a-dia, por exemplo para comparar valores relativos a empr´estimos ou promoc¸˜oes,

38Estas especialidades constituem disciplinas no campo da matem´atica.

ou compreender uma escala de reduc¸˜ao de um mapa; c´ıvico, que remete para o uso que o indiv´ıduo faz da matem´atica enquanto cidad˜ao, na avaliac¸˜ao de informac¸˜ao importante para a vivˆencia em sociedade (exemplo: a compreens˜ao de dados sobre sondagens, ou indicadores fornecidos por entidades governamentais tais como a taxa de desemprego); de lazer, referente ao uso que o indiv´ıduo faz da matem´atica nos seus tempos livres por meio do uso de puzzles ou jogos; cultural, inerente `a heranc¸a humana, que compreende a identificac¸˜ao e manutenc¸˜ao de t´ecnicas, por exemplo de construc¸˜ao de padr˜oes sim´etricos em azulejos ou tapec¸arias; e ainda o profissional, ou seja, que se desenvolve no exerc´ıcio da profiss˜ao e que ´e de particular interesse para a presente investigac¸˜ao, pois permite enquadrar e compreender melhor o estudo da numeracia no caso espec´ıfico dos jornalistas enquanto profissionais.

Analisando a numeracia em contextos profissionais e sob o ponto de vista evolutivo, Steen realc¸a que existe necessidade de crescentes n´ıveis de numeracia nos empregos da atualidade, embora saliente que isso nem sempre ´e reconhecido, algo que tamb´em ´e sugerido por resultados de estudos realizados com a populac¸˜ao portuguesa. De facto, ´Avila (2005) observa que, apesar da populac¸˜ao adulta portuguesa deter dos n´ıveis mais baixos de literacia quantitativa40quando

comparada com os outros pa´ıses que participaram no Estudo Internacional de Literacia de Adultos, os portugueses consideram, na sua maioria, que tˆem competˆencias de c´alculo41

razo´aveis (50%) ou boas (37,1%) para o contexto profissional em que se inserem. Destes resultados, a autora conclui que existe um baixo grau de exigˆencia ao n´ıvel da literacia quantitativa, embora segundo a perspetiva de Steen sobre as necessidades de numeracia nos empregos, os resultados possam antes indicar que existe falta de consciˆencia, quer por parte dos empregadores, quer por parte de empregados, da necessidade de n´ıveis crescente de numeracia nos contextos profissionais da sociedade atual. Esta falta de consciencializac¸˜ao, n˜ao s´o no contexto profissional mas tamb´em no caso geral, pode ser explicada pelo paradoxo que FitzSimons refere. O autor salienta que apesar da crescente necessidade de utilizac¸˜ao da matem´atica que acompanha a sofisticac¸˜ao da tecnologia, existe uma aparente reduc¸˜ao do conhecimento matem´atico expl´ıcito requerido para a operacionalizac¸˜ao dessa tecnologia, conduzindo `a percec¸˜ao de que vivemos numa sociedade “desmatematizada”. Na verdade, segundo o autor, isto deve-se ao facto de o aumento do conhecimento matem´atico se traduzir, em grande parte, em conhecimento n˜ao vis´ıvel ao utilizador, para quem a matem´atica mais vis´ıvel continua a ser a aritm´etica e os conhecimentos que adquire em contexto escolar (FitzSimons, 2008).

Neste ˆambito, a necessidade de consciencializac¸˜ao dos empregadores, passa n˜ao s´o pelo

40Na sua dissertac¸˜ao, Patr´ıcia ´Avila diferencia numeracia de literacia quantitativa, considerando o primeiro

conceito mais abrangente do que o segundo por incluir mais competˆencias e pelo facto da sua avaliac¸˜ao ser menos dependente de interpretac¸˜ao de informac¸˜ao escrita.

41Note-se que a autora usa conceitos diferentes para analisar o desempenho global dos adultos portugueses

— literacia quantitativa — e para analisar a auto-avaliac¸˜ao quanto `a correspondˆencia `as exigˆencias no contexto profissional— competˆencias de c´alculo. Apesar destes dois conceitos remeterem para coisas diferentes, existe uma forte relac¸˜ao entre os dois.

reconhecimento de um n´ıvel crescente de exigˆencias de numeracia nos contextos profissionais em geral, mas tamb´em pela identificac¸˜ao das necessidades espec´ıficas de cada um desses contextos ao n´ıvel do conhecimento matem´atico. Rosen e outros (2003) ilustram esta situac¸˜ao, apresentando o testemunho de um gestor de qualidade de uma empresa e de um chefe de desenvolvimento organizacional de outra empresa, que identificam diferentes caracter´ısticas que procuram nos seus colaboradores. Ao n´ıvel da necessidade de conhecimento matem´atico, enquanto um enfatiza a capacidade de c´alculo (competˆencias de adic¸˜ao, subtrac¸˜ao, divis˜ao e multiplicac¸˜ao de n´umeros), o outro enfatiza a capacidade de racioc´ınio matem´atico para o planeamento de tarefas, identificac¸˜ao de m´etricas para recolha de dados e a compreens˜ao de como usar esses dados para melhorar desempenhos.

Segundo v´arios autores ´e tamb´em a diferenc¸a nas concec¸˜oes sobre o que constitui conheci- mento matem´atico importante que conduz `a existˆencia de um desfasamento entre a numeracia usada em contexto profissional e a matem´atica ensinada nas escolas, e que tem como princ´ıpio dotar os cidad˜aos de competˆencias importantes para a integrac¸˜ao num futuro trabalho. De acordo com Best (2008), o ensino da matem´atica falha por ser organizado essencialmente em func¸˜ao do ensino de c´alculo e resoluc¸˜ao de problemas abstratos por meio de estrat´egias matem´aticas, com progressivo grau de complexidade. O autor realc¸a que apesar de reconhecer que estes conhecimentos s˜ao necess´arios, o ensino da matem´atica deveria tamb´em contemplar a an´alise da matem´atica `a luz da sua integrac¸˜ao em contextos sociais, valorizando a sua interpretac¸˜ao e usos cr´ıticos em situac¸˜oes sociais ou politicamente contextualizadas. Por sua vez, Steen (1997) aponta que, enquanto na realidade de muitas profiss˜oes ´e necess´ario resolver mais frequentemente problemas com racioc´ınio e pr´atica sofisticadas, mas recorrendo a conte´udos matem´aticos elementares, na matem´atica estudada em contexto educacional insiste-se mais na abordagem de conte´udos matematicamente sofisticados e abstratos mas aplicados a situac¸˜oes problem´aticas simples, talvez porque enquanto que na matem´atica ensinada em contexto formal se valoriza o poder de abstrac¸˜ao, no contexto real valoriza-se a praticalidade da mesma (Steen, 2001).

No documento A Matemática na Imprensa Portuguesa (páginas 66-70)