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O Aparecimento do Monstro

No documento MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS (páginas 58-62)

Na passagem do século XIX para o século XX ocorreram modificações no espaço urbano do ocidente europeu em função, segundo Foucault, da maior invenção do século XVIII, a disciplina.

O intenso crescimento demográfico na região ocorreu devido à industrialização, à formação de um mercado competitivo nos moldes capitalistas, à migração rural para as cidades, bem como à modernização da estrutura urbana. Concomitante a essas transformações, surgiu a necessidade de organizar o espaço urbano de modo a integrar a nova população ao sistema de produção capitalista, controlar os crimes e adequá-los ao sistema de vigilância – análise e disciplina – não mais no âmbito do indivíduo, mas num contexto maior, o dos

acontecimentos coletivos. Verifica-se, assim, paralelamente ao poder disciplinar centrado no indivíduo, o aparecimento da biopolítica com foco na população.

Segundo Foucault,

Esboça-se o projeto de tecnologia da população: estimativas demográficas, cálculo da pirâmide das idades, das diferentes esperanças de vida, das taxas de mortalidade, estudo do papel que desempenham um em relação ao outro o crescimento da população, diversas incitações ao casamento e à natalidade, desenvolvimento da educação e da formação profissional (FOUCAULT, 1989: 198).

Delineia-se o controle da população no que diz respeito ao biológico, buscando a criação de padrões urbanos, promovendo campanhas de higienização e políticas de habitação, dentre outras ações que podem ser definidas como governamentalização da vida.

Além das tensões sociais, as grandes cidades do final do século XIX assistiram ainda à emergência da reincidência criminal como um novo fenômeno social. Segundo Michel Foucault (1989), a situação foi em grande parte resultado do novo sistema de punição que se estabeleceu nos sistemas penais a partir do final do século XVIII. Afastado do convívio social durante longos períodos de reclusão, sem ter como sustentar a família, com um passaporte que informa seu delito à sociedade e estigmatizado perante o meio social, começava a se desenhar, para o chamado criminoso, um caminho único: o retorno ao “mundo do crime”. Diante de tal realidade, ele é concebido como um indivíduo portador de uma anormalidade, ou seja, o crime pode ser considerado como manifestação de uma natureza perturbada e doente (FOUCAULT, 1999b).

A reincidência criminosa na primeira metade do século XIX, segundo Foucault (1989), levou a uma modernização das técnicas de controle, vigilância e repressão utilizadas pelo Estado, dando lugar ao aparecimento de uma polícia científica. É neste sentido que se pode falar de criação de um meio delinquencial, produtor de reincidência, e que serviu de justificativa aos discursos a favor de instalações de um sistema de controle e vigilância destinado à população urbana.

Através do crime, juristas, criminalistas, criminólogos, antropólogos criminais, médicos legistas, psiquiatras, todos fortemente influenciados por doutrinas positivistas ou cientificistas, discutiam uma questão política

maior: os limites reais e necessários da liberdade individual, que, excessivamente, protegida nas sociedades liberais era apontada como causa da agitação social ou, ao menos, como empecilho à sua resolução (CARRARA, 1998: 65).

A partir das indicações levantadas por Carrara, emergiu, nessa época, a reflexão sobre a possibilidade de o crime ser consequência ou manifestação de uma desigualdade física e psicológica entre os indivíduos. Por ter sua base em uma sociedade liberal e individualista, ao consagrar a igualdade jurídica, o pensamento vigente mostrava-se incapaz de administrar tais diferenças. Era preciso reformar as bases legais e políticas, de modo a fornecer, ao Estado e a suas instituições de controle, os dispositivos necessários para uma intervenção mais eficiente. A partir das discussões sobre o crime, amplamente ancoradas em formulações positivistas e cientificistas, consolidava-se uma nova concepção de homem e de sua relação com a sociedade. Tais críticas ao liberalismo e à concepção iluminista do homem, baseadas em um pensamento autoritário, tiveram ampla adesão da elite intelectual da época.

Pelo cruzamento das áreas médica e jurídica, surgem novas discussões em torno do crime e do criminoso. No âmbito da medicina, as duas vozes que falam sobre o crime são a psiquiatria e a antropologia criminal. Na esfera jurídica, é a antropologia criminal que fornece as bases teóricas para a chamada Escola Positivista de Direito Penal.

O crime, enquanto objeto da psiquiatria, passava a ser visto como sintoma de uma doença mental, isto é, um comportamento sintomático de um problema físico e psíquico, de que seriam portadores determinados indivíduos. Já como objeto da antropologia, o crime – sob a ótica da crueldade e da imoralidade – resultaria de atributos próprios da natureza humana. Foi, portanto, no final do século XIX, que os caminhos da psiquiatria e da antropologia criminal se encontraram em um espaço que paira entre o médico e o legal. Foi desse cruzamento, com efeito, que nasceu o Manicômio Judiciário (CARRARA, 1998).

A questão da transgressão às normas sociais não é um fenômeno que se compreenda, sem dificuldades, no interior da sociedade disciplinar. Como discutido anteriormente, fundada sobre a base racional de um contrato social esta sociedade tem como objetivo a garantia do bem comum. Sendo o crime visto enquanto ataque à sociedade e, portanto, como ruptura

desse contrato, não deixa de se transfigurar como uma forma de irracionalidade, pois para uma sociedade burguesa, não parece inteligível que um concidadão possa atacá-la em seu estado racional.

Se é justamente através da sociedade que os interesses individuais encontram condições para expressarem e se realizarem livremente; se, portanto, interesse individual e interesse social se superpõem harmonicamente, atacar a sociedade não seria, de certa forma, atacar a si próprio? E atacar a si próprio não seria o ato irracional por excelência? (CARRARA, 1998: 69).

De acordo com Robert Castel (1978), as primeiras manifestações do alienismo francês para fora dos asilos estiveram relacionadas à questão do crime. Elas ocorreram no início do século XIX, quando os alienistas foram chamados pelos tribunais para desvendar certos crimes. Segundo o autor, as saídas resultaram “na sua imposição como peça indispensável ao funcionamento do aparelho judiciário” (CASTEL, 1978: 169). Tratava-se da necessidade de entender as causas do crime, da probabilidade de uma nova ocorrência e da própria confirmação – ou não – de lucidez do criminoso durante o delito. As questões a serem respondidas, agora, passavam a ser outras:

Não mais simplesmente: ‘o fato está comprovado, é delituoso?’, mas também: ‘o que é realmente esse fato, o que significa essa violência ou esse crime? Em que nível ou em que campo da realidade deve ser colocado? Fantasma, reação psicótica, episódio de delírio, perversidade? Não mais simplesmente ‘quem é o autor’ mas: ‘como citar o processo causal que o produziu? Onde está, no próprio autor, a origem do crime? Instinto, inconsciente, meio ambiente, hereditariedade?’ Não mais simplesmente: ‘que lei sanciona essa infração?’ Mas ‘que medida tomar que seja apropriada? Como prever a evolução do sujeito? De que modo será ele mais seguramente corrigido?’ (FOUCAULT, 1999a: 20).

Baseando-se no pressuposto da existência de uma racionalidade humana, tal sistema via-se comprometido ao tentar codificar as ações criminosas que, de um lado, não demonstravam razões aparentes, mas que, de outro lado, não possibilitavam o encaixe de tais delinquentes nos quadros clássicos da doença mental. Nem paixões nem qualquer outro interesse poderiam ser imediatamente identificados como desencadeadores de certos delitos de indivíduos que não pareciam alienados. Pode-se citar, por exemplo, o caso de Pierre Rivière (FOUCAULT, 1991), cujos motivos apresentados para explicar o crime são moralmente tão inaceitáveis que a razão parece se recusar a compreendê-lo, exigindo a presença de

alienistas nos tribunais. Nesse sentido, a inexistência de causas socialmente claras para a execução de crimes – tais como ganância, posição social, prazeres sexuais –, ou a ocorrência de delitos que não se encaixem em tais ilegalidades tornam impossível compreendê-los como meras subversões ao meio social.

Com efeito, os crimes que exigiam pareceres médicos pareciam possuir uma outra causalidade em comparação aos crimes comuns, pois subvertiam valores básicos que estão supostamente enraizados na natureza humana, tais como a piedade, amor materno, caridade, fraternidade dentre outros. É nessa perspectiva que esses crimes colocam

em questão a própria humanidade de parricidas, infanticidas, assassinos cruéis, sendo mais bem interpretados no contexto das selvagerias da natureza, mais afeitas, portanto, à abordagem das ciências biológicas ou naturais (CARRARA, 1998: 71).

Foi a partir de tais casos, por subverterem todos os valores sociais consagrados, que se tornaram possíveis as primeiras reflexões sobre a relação entre crime e loucura e, por fim, o nascimento do manicômio judiciário nos fins do século XIX.

O Psiquiatra e o Antropólogo Criminal nos Tribunais – O Louco

No documento MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS (páginas 58-62)