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O Movimento Antimanicomial e a Reforma Psiquiátrica Italiana

No documento MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS (páginas 123-126)

Houve dois importantes movimentos antimanicomiais que influenciaram a Reforma Psiquiátrica Brasileira: a antipsiquiatria e o movimento de desinstitucionalização italiana. O primeiro teve origem na Inglaterra na década de 1960, com os precursores Ronald Laing e David Cooper, a partir da contestação do saber psiquiátrico e de uma sociedade excludente. Segundo Amarante (1998), a antipsiquiatria buscava um diálogo entre a razão e a loucura, denunciando a cronificação do paciente no tratamento asilar.

16 “Os indivíduos tornam-se ‘dividuais’, divisíveis, e as massas tornam-se amostras, dados, mercados ou

‘bancos’” (DELEUZE, 2006: 222).

17 “Problematizar a democracia participativa é situá-la como um novo dispositivo de controle para conter os

fluxos vivos que escapam, ou que os procedimentos majoritários de representação não conseguem conter. Integrar as minorias às maiorias é um procedimento da democracia participativa” (TÓTORA, 2006: 243).

O movimento de desinstitucionalização na Itália surge também, a partir da década de 60, com base na crítica aos hospitais psiquiátricos, vistos como instrumentos de violência e exclusão social, articulados ao modo de organização social. Basaglia (1985), precursor do movimento, lutou pela desconstrução dos hospitais psiquiátricos denominando-os “instituições da violência”, dado que no âmbito dessas instituições, a violência e a exclusão eram – e são – justificadas como necessárias, em função de sua finalidade educativa. Esta proposta de desconstrução do saber psiquiátrico recebeu influência dos trabalhos de Goffman e Foucault.

Se a psiquiatria desempenhou um papel no processo de exclusão do doente mental quando forneceu a confirmação científica para a incompreensibilidade de seus sintomas, ela deve ser vista também como a expressão de um sistema que sempre acreditou negar e anular as próprias contradições afastando-as de si e refutando sua dialética, na tentativa de reconhecer-se ideologicamente como uma sociedade sem contradição (BASAGLIA, 1985: 124).

Basaglia implementou em 1970, quando diretor do Hospital Provincial na cidade de Trieste, um processo de desativação e de criação de serviços alternativos na comunidade. Para tanto, defendeu a subversão à lógica institucional manicomial, promovendo serviços de atenção comunitários, emergência psiquiátrica em hospital geral, cooperativas de trabalho protegido, centros de convivência e moradias assistidas.

Três anos após o desmembramento do hospital de Trieste, a Organização Mundial da Saúde (OMS) credenciou seu trabalho como referência mundial para a reformulação da assistência em saúde mental. Dessa forma, Basaglia participou decisivamente da criação dos movimentos de Psiquiatria Democrática e da rede de Alternativas à Psiquiatria, assim como da promulgação da Lei n. 180, aprovada pelo Parlamento Italiano em maio de 1978, que propunha o fechamento dos hospitais psiquiátricos, reconhecendo o processo de desinstitucionalização. Com a nova lei, ficaram proibidas a construção de novos hospitais psiquiátricos e a internação de novos pacientes nessa estrutura; além disso, os hospitais gerais não poderiam ultrapassar 15 leitos; foram estabelecidos prazos para a alta dos internos; e foram abolidos o estatuto de periculosidade social do doente mental, sua tutela e sua internação compulsória.

A lei italiana n°180 mostra seu caráter inovador ao produzir uma cisão entre os conceitos de loucura e periculosidade social – ainda hoje largamente difundidos no discurso da sociedade brasileira – no momento em que abole a internação compulsória, medida que era utilizada para privação de liberdade de indivíduos que transgredissem a norma legal ou os padrões morais de comportamento social.

Na medida em que se toma consciência de um sistema social de violência e exclusão, inicia-se um processo de negação da psiquiatria como ideologia, a partir de práticas de desconstrução dos saberes e das práticas psiquiátricas. De acordo com Basaglia (1985), era necessário que a psiquiatria transformasse efetivamente sua prática através da tomada de consciência das condições bipolares existentes na sociedade, ou seja, da relação entre excluídos e excludentes.

Pode-se afirmar, neste sentido, que o trabalho realizado por Basaglia passou por um ato de negação:

negação da instituição manicomial; da psiquiatria enquanto ciência; do doente mental como resultado de uma doença incompreensível; do papel do poder puro da psiquiatria em relação ao paciente; do seu mandato social, exclusivamente de custódia; do papel repressivo do doente, colocado junto à cultura da doença; a negação e a denúncia da violência à qual o doente é sujeito dentro e fora da instituição (AMARANTE, 1998: 73).

A negação constitui-se simultaneamente como questionamento do saber psiquiátrico e renúncia do mandato técnico da instituição. Em Trieste, um dos primeiros passos para a mudança da situação em que se encontrava a assistência, foi a abertura dos hospitais psiquiátricos, tendo como princípio a negação da exclusão e do isolamento. Rompe, assim, com as estereotipias institucionais e as contradições deixam de ser acobertadas, para serem enfrentadas. Nesse novo contexto, o médico, segundo Basaglia (1985), passava a ter um papel libertador quando aceitava a contestação do doente, assumindo um dos pólos da dialética e criando uma relação de cumplicidade. O paciente passava a não ser mais reduzido à categoria “doença”, devendo ser encarado com um ser social e político.

De acordo com essa perspectiva, a desinstitucionalização decorre do processo de negação que acompanha a invenção de uma nova realidade, com o objetivo de transformar as

relações de poder entre as instituições e os sujeitos. Esse movimento defende a construção de serviços comunitários e o deslocamento da ação terapêutica para o contexto social. Destruir a face institucional da doença passa, então, pelo enfrentamento da problemática psicopatológica do doente, a exclusão e a estigmatização social. Em síntese, o tratamento deve levar em consideração essa realidade para, assim, ser constituído como algo terapêutico.

O projeto de desinstitucionalização de Basaglia (1985) desdobra-se num processo de construção de saberes e práticas que focam o sujeito doente e não mais a doença como centro da terapêutica. O projeto resultou na substituição do manicômio por Centros de Saúde Mental, organizações abertas; iniciou, assim, um processo de integração do paciente à sociedade. Abriu-se um novo campo de relacionamento com a loucura e com o louco, que não é mais visto como um sujeito em posição de subordinação à tutela médica. Rompe-se, portanto, com a prática de isolamento.

No documento MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS (páginas 123-126)