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O argumento de autoridade e a pesquisa em Direito

No documento O direito e sua relação com a ciência (páginas 43-45)

CAPÍTULO 3. DIREITO E CIÊNCIA: INCOMPATIBILIDADES

3.4. O argumento de autoridade e a pesquisa em Direito

Há, no Direito, outra característica anticientífica que, embora não lhe determine necessariamente a essência, merece ser abordada, por ser tão frequentemente observada, tanto na prática jurídica como na produção acadêmica. Trata-se do chamado argumento de autoridade – ou argumentum magister dixit –, um artifício retórico onde se busca sustentar uma afirmação não através de sua demonstração lógica com base em evidências, mas através da adesão de indivíduos de prestígio e reputação à tese defendida.

Luciano Oliveira (2004:144,156), ao abordar o tema, fala ainda sobre uma espécie de reverencialismo que se forma dentro do mundo jurídico:

Ainda dentro desse rol de questões de estilo, um outro traço bastante encontradiço, e a ser a todo custo evitado – por ser ostensivamente anticientífico –, é o chamado argumento de autoridade. Contaminação talvez do estilo adotado no foro, onde é preciso convencer o juiz de que se está com o melhor direito (e portanto com a melhor doutrina...), trata-se de um verdadeiro “reverencialismo” expresso em fórmulas do tipo “como preleciona fulano de tal”, “segundo o magistério de sicrano” etc., típico de advogados preocupados antes em convencer com apelos a uma retórica “coimbrã” do que em demonstrar com dados cuja força decorra da própria exposição.

“Como ensina fulano”, “como preleciona sicrano”, “segundo o magistério de beltrano” etc. são fórmulas reverenciais que diluem diferenças e não contribuem para um esclarecimento verdadeiramente qualificado do argumento que se quer defender. Com tal reverencialismo, todos os sociólogos, filósofos, historiadores etc. tornam-se igualmente benfeitores da humanidade.

O operador ou teórico do direito, portanto, dificilmente poderia ser considerado um cientista – vocábulo que é, aliás, curiosamente ausente na literatura jurídica.

Como explica Carlos Sundfeld (in NOBRE, 2005:49), o jurista não gosta de se apresentar como pesquisador, pois sua produção se coloca mais como fruto de uma reflexão pessoal que como um levantamento e análise científica de dados que levaram a uma conclusão. A questão é abordada pelo autor da seguinte forma, em NOBRE (2005:49):

Para mim, o grande problema não está na confusão entre prática e teoria, mas sim na perspectiva em que o prático se põe quando vai produzir a teoria. Não vejo mal algum na confusão entre as duas coisas, justamente porque a definição intuitiva do Direito está muito ligada à atividade profissional. O problema é a postura que os indivíduos adotam quando vão produzir aquilo que chamamos de teoria. Creio que se fizer uma descrição, possivelmente muitos se identificarão ou identificarão seus inimigos. O que um professor de Direito almeja? Ser um jurista. Este não é exatamente um pesquisador, mas um sujeito de opinião; o que o caracteriza e entrava nosso progresso enquanto formuladores de teorias é o fato de termos um Direito de opinião. O que importa é alguém se transformar em um detentor de opiniões relevantes e, neste sentido, a menção ao exemplo do parecerista é muito feliz, já que ele é um sujeito de opinião valorizada. No fundo, os pareceristas são buscados não por sua capacidade de recensear com rapidez, qualidade e método, mas por possuírem um belíssimo nome e opinião respeitada. Normalmente o parecerista de sucesso é o que tem um aspecto respeitável e sério.

A tradição reverencialista no Direito é alvo de críticas também em LOPES (2014:3), onde o autor tece considerações acerca do sistema de ensino jurídico no Brasil, que, segundo ele, desde o início expõe os alunos a um processo que chama de “pinguinização12”:

Cabe aqui o relato de uma experiência que tivemos na graduação em Direito. Na avaliação da disciplina Direito Tributário, um professor perguntou o seguinte: Um fazendeiro decidiu explorar uma nascente de água mineral e vender aquela água. Haverá incidência de IPI sobre o produto vendido pelo fazendeiro? Primeiramente, chamou-nos a atenção a quantidade de linhas para se responder cada questão da prova, que eram três ou quatro. Isso já induz o estudante a ser taxativo e dogmático em sua resposta. Decidimos ousar na elaboração da resposta, que foi mais ou menos assim: se o

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O objetivo da expressão, segundo o autor, é criticar a forma unificada e insensível de se produzir o pensamento jurídico, e refere-se à necessidade de se recuperar o senso crítico na formação dos juristas.

fazendeiro comercializasse a água em embalagens rotuladas, obviamente seria o caso de incidência do IPI. Mas se a água fosse vendida para grupos religiosos como água milagrosa e com embalagens artesanais, não seria o caso de incidência de IPI. Resultado: a questão foi considerada errada pelo professor, pois não era para discutir as possibilidades do caso, mas dizer sim ou não e o porquê breve. Neste sentido, nota-se que até mesmo a pergunta elaborada na prova é um dogma. Questionar sobre a limitação da resposta e apresentar soluções inovadoras é considerado uma heresia.

Não se trata de criticar os métodos de avaliação dos estudantes nas Faculdades de Direito, até porque isso pode variar em grande escala. Este exemplo, entretanto, serve para demonstrar o quanto tem importância o argumento de autoridade dos doutrinadores para os sujeitos envolvidos no processo ensino-aprendizagem do Direito. Se a resposta da questão fosse iniciada com a expressão Segundo o doutrinador fulano de tal... seria bem provável que o professor aceitasse reverencialmente a resposta.

Este desestímulo ao pensamento crítico, à elaboração de idéias com certa autonomia intelectual, também faz parte do processo de pinguinização pelo qual passam os estudantes de Direito.

Além disso, o uso dos manuais, o manualismo, ou seja, a tendência a escrever verdadeiros capítulos de manual, explicando redundantemente aquilo que todos os estudantes já estudaram outrora e discorrendo largamente sobre o significado de princípios e conceitos que são como o bê-á-bá da disciplina e o reverencialismo, que se expressa na construção da demonstração a partir do argumento de autoridade, da proximidade com o melhor direito, sem perceber que a hipótese não pode ser tratada como uma tentativa de defesa de uma causa; são ingredientes que abundam na formação pinguinizante dos estudantes de Direito.

Como já se teve a oportunidade de demonstrar alhures, a verdade das proposições científicas não se sustenta na maior ou menor adesão a dogmas ou no prestígio e convicção de quem as defende, e sim na autoridade – sempre relativa e sujeita a críticas e reformulações – da observação e análise dos fatos a partir de um método específico. Não seria possível, portanto, defender que um campo do conhecimento que se utiliza majoritariamente de recursos retóricos – os argumentos de autoridade, o reverencialismo – para sustentar as proposições elaboradas em seu âmbito tenha qualquer relação com o pensamento científico.

No documento O direito e sua relação com a ciência (páginas 43-45)

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