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O objeto do Direito é convencional

No documento O direito e sua relação com a ciência (páginas 31-33)

CAPÍTULO 3. DIREITO E CIÊNCIA: INCOMPATIBILIDADES

3.1. O objeto do Direito é convencional

O primeiro aspecto do Direito a ser desde logo apontado como comprometedor de sua cientificidade é justamente o seu objeto.

Considerando-se, como exposto na introdução do capítulo, que aspectos como, por exemplo, a tendência dos grupos humanos de se organizarem através de sistemas legislativos (fato verificável) seja objeto da sociologia, e seu desenvolvimento ao longo dos séculos (consecução verificável de fatos) como objeto da história, teremos que ao Direito stricto sensu cabe se debruçar, ao menos predominantemente, sobre os sistemas legais e a norma.

O que se quer dizer é que certos fenômenos sociais, conquanto estejam

relacionados ao direito, constituem objetos de análise de outras áreas do conhecimento.

O Direito irá se ocupar não da análise de fatos, mas dos modelos de conduta e organização. Como explica Maurício Godinho Delgado (2016:190-191):

É que a Ciência Jurídica tem objeto estruturalmente distinto daquele que caracteriza as ciências em geral. Estas, como visto, debruçam-se ao exame dos fatos e atos ocorridos ou potencialmente verificáveis – aquilo que poderia genericamente ser designado como ser. Em contrapartida, a Ciência do Direito debruça-se à análise dos institutos jurídicos e da norma (e dos próprios princípios jurídicos), que se constituem em modelos de conduta ou de organização - e que correspondem a fenômenos que genericamente poderiam ser designados como dever-ser.

A Ciência Jurídica, portanto, tem objeto singular, consistente em realidades essencialmente conceituais, realidades ideais e normativas, que se desdobram em proposições ou modelos de comportamento ou de organização. Seu dado central e basilar consiste no dever-ser (elemento nitidamente ideal, em suma) e não no ser (elemento nitidamente concreto-empírico).

Conquanto o autor em comento se refira ao Direito como ciência, pensamos que as ideias que articula ao longo do capítulo citado permitem, em verdade, concluir pelo contrário6, eis que ele próprio expõe que certos elementos que constituem uma noção tradicional de ciência não se compatibilizariam com o Direito.

6 A razão desta discordância é o fato de que o autor, ao longo do texto, elenca elementos da noção

tradicional de ciência que ele mesmo entende incompatíveis com o Direito, e, ao final, se limita a dizer que o Direito, “apesar disso”, pode ser considerado ciência por se tratar de um campo especial do conhecimento, sem dar explicações suficientes acerca do que o leva a concluir que o Direito é especial enquanto ciência. Em suas palavras “Os principias, realmente, não conseguem se harmonizar a essa

dinâmica de atuação e construção das ciências. Ao contrário, a assunção de posições preestabelecidas acerca do objeto a ser investigado (assunção inerente à ideia de princípios) limitaria o próprio potencial

No que se refere ao seu objeto, o Direito não satisfaz as condições de cientificidade, pois as questões relativas ao dever-ser, à determinação do certo e errado, da conduta justamente exigível7, são de ordem estritamente metafísica, e, por definição, não interessam à ciência, eis que esta se ocupa, como vimos, da análise sistemática, controlada, empírica e crítica de fenômenos.

As normas e sistemas legais serão invariavelmente fruto de convenções: cada sociedade ou mesmo grupo de pessoas encontra formas – no ocidente se popularizou o sistema democrático – de estabelecer as regras que irão conformar o comportamento de seus membros.

Essas regras, no entanto, não decorrem de nenhuma norma universal de conduta preexistente, e sim da mera escolha daqueles que, em dada sociedade, detinham o poder decisório para estabelecer e alterar as regras vigentes.

A esse respeito, Eva Maria Lakatos (2003:127):

O problema, assim, consiste em um enunciado explicitado de forma clara, compreensível e operacional, cujo melhor modo de solução ou é uma pesquisa ou pode ser resolvido por meio de processos científicos. Kerlinger (ln: Schrader, 1974:18) considera que o problema se constitui em uma pergunta científica quando explicita a relação de dois ou mais fenômenos (fatos, variáveis) entre si, "adequando-se a uma investigação sistemática, controlada, empírica e crítica". Conclui-se disso que perguntas retóricas, especulativas e afirmativas (valorativas) não são perguntas científicas. Exemplos: ‘a harmonia racional depende da compreensão mútua?’; ‘o método de educação religiosa A é melhor que o B para aumentar a fé?’; ‘igualdade é tão importante quanto liberdade?’ Tais enunciados têm pouco ou nenhum significado para o cientista: não há maneira de testar empiricamente

investigativo sobre a realidade, conformando o resultado a ser alcançado ao final do processo de investigação. Desse modo, a submissão a principias (isto é, conceitos preestabelecidos), pelo cientista, no processo de exame da realidade, importaria em iniludível conduta acientifica: é que a resposta buscada, na realidade, pelo investigador, já estaria gravemente condicionada na orientação investigativa, em função do principio utilizado. Contudo, o anátema lançado pelas ciências contra os princípios não pode prevalecer no âmbito dos estudos jurídicos. De fato, na Ciência Jurídica - enquanto estudo sistemático a respeito dos fenômenos jurídicos, com o conjunto de conhecimentos resultantes -, os princípios sempre hão de cumprir papel de suma relevância, sem comprometimento do estatuto científico desse ramo especializado de conhecimento. Essa peculiaridade decorre da posição singular que a Ciência do Direito ocupa perante os demais ramos científicos existentes.” Vide capítulos “Origem e

desenvolvimento do direito do trabalho – proposições metodológicas” in DELGADO (2016:87-97). E “Princípios do Direito do Trabalho” in DELGADO (2016:190-223).

7 “Vamos observar que as diferentes respostas que se dão a essas questões têm um endereço comum, que

possibilita o uso genérico da expressão Ciência do Direito. Este endereço comum está no próprio sentido dogmático da ciência jurídica, que dela faz uma linguagem técnica, ordenada e refinada, dos interesses e conflitos expressos na linguagem comum. Esta ordem e refinamento aparece na forma de enunciados e conjuntos de enunciados válidos, que se organizam em teorias que tornam conceituável aquilo que se realiza como Direito e me diante o Direito. Portanto, a Ciência do Direito não só como teoria dos princípios e regras do comportamento justamente exigível, mas também que consiste em certas figuras de pensamento, as chamadas figuras jurídicas” (FERRAZ JR., 1977:6.). O autor, no entanto, não chega a definir o que seriam as chamadas “figuras jurídicas” a que se refere.

tais afirmativas ou perguntas, principalmente quando envolvem julgamentos valorativos.

Schrader (1974:20) enumera algumas questões que devem ser formuladas para verificar a validade científica de um problema:

a) Pode o problema ser enunciado em forma de pergunta?

b) Corresponde a interesses pessoais, sociais e científicos, isto é, de conteúdo e metodológicos? Estes interesses estão harmonizados?

c) Constitui-se o problema em questão científica, ou seja, relaciona entre si pelo menos dois fenômenos (fatos, variáveis)?

d) Pode ser objeto de investigação sistemática, controlada e crítica? e) Pode ser empiricamente verificado em suas consequências?

A questão de saber se “a igualdade é tão importante quanto a liberdade”, utilizada pela autora como exemplo de pergunta ostensivamente acientífica, é, inclusive, uma questão particularmente presente no âmbito do Direito Constitucional, visto que igualdade e liberdade constituem dois dos chamados princípios constitucionais, tema abordado no tópico seguir.

No documento O direito e sua relação com a ciência (páginas 31-33)

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