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O artista do espaço, O artista da forma

No documento Arquitectura e cinema (páginas 40-44)

“… o artista não é uma qualidade especial de homem, mas cada homem uma qualidade especial de artista…”19

Fernando Távora alega e defende que todo e qualquer homem é intrinsecamente responsável pela organização do espaço que vive, não todos com a mesma presença, mas ainda assim responsáveis sem que à parte se possam colocar. Diga-se que ninguém pede para nascer e nunca se tem a fiel certeza de quando se vai morrer, sendo que no fundo tudo acaba por se manifestar através da incerteza natural da vida, porém, pelo menos enquanto se é responsável pela metamorfose dos seus espaços, esteja-se mais ou menos presente. O tempo patente na transformação formal do espaço é olhado pelo seguimento de épocas diferentes e por uma mesma época, que no seu conjunto demonstrarão num presente, uma organização

19 COOMARASWAMY, Amanda, in, TÁVORA, Fernando. Da Organização do Espaço, Porto: FAUP, 1999,

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espacial organizada ou desorganizada, conforme o entendimento e a harmonia dos homens. À “organização desorganizada” o autor atribui-lhe apenas uma distinção de ocupação espacial. É de referir ainda que na organização do espaço da qual o homem tem um papel relevante que existem factores naturais pré-existentes e factores de carácter sociocultural que são criados e se vão desenvolvendo também como condicionantes de qualquer aspecto formal do espaço que seja posto em causa. Circunstância é a denominação que Távora atribui então ao “conjunto de factores naturais e humanos”20 e segundo o mesmo “a circunstância é tão

fundamental para a definição da forma como a água é indispensável para a vida do peixe”. A falta de ligação entre a forma e a circunstância priva o observador de chegar ao entendimento puro da mesma, ou seja, “da sua verdadeira realidade”21.22

O espaço não tem significado sem o elemento humano (Tadao Ando) e não é verdadeiro quando as suas formas estão separadas das suas circunstâncias (Fernando Távora).

“… a arquitectura não é apenas uma forma, não é apenas a luz, não é apenas o som, não é apenas o material, mas a integração ideal de tudo. O elemento humano é a chave que reúne tudo isso. Um grande edifício só começa a viver quando alguém entra nele. Uma forma não é imaginação. Uma forma engendra a imaginação.”23

Todavia as circunstâncias que o Homem deve conhecer para poder ter consciente a verdadeira realidade nem sempre devem ser tomadas em conta em termos condicionais ou como factor preponderante a respeitar numa criação formal.

As circunstâncias são um conjunto de aspectos negativos e/ou positivos, sendo que os primeiros devem ser evitados e os segundos, em demasia, podem significar utopia. Esta é dotada de uma impossibilidade eterna de materialização ou concretização. A criação formal tem como consequência a criação de uma ou mais circunstâncias e sabe-se que elas moldam directamente ou indirectamente o espaço pela influência que têm no imaginário dos indivíduos racionais.24

Posto isto, sabemos à partida que ao idealizarmos um espaço a ser construído, somos influenciados ou condicionados pelo existente, que é a, ou as circunstâncias presentes. Conforme a avaliação da situação com que nos deparamos, o espaço virtual onde o nosso

20TÁVORA, Fernando. Da Organização do Espaço, Porto: FAUP, 1999, p.22. 21TÁVORA, Fernando. Da Organização do Espaço, Porto: FAUP, 1999, p.22. 22 TÁVORA, Fernando. Da Organização do Espaço, Porto: FAUP, 1999.

23 ANDO, Tadao. Conversas com Michael Auping, Barcelona: Gustavo Gili, 2003, p.25 e 26. 24 TÁVORA, Fernando. Da Organização do Espaço, Porto: FAUP, 1999.

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pensamento habita deve ser capaz de discernir o peso que as circunstâncias reais que são passíveis de ser aceites ou rejeitadas terão no projecto em si.

Uma das circunstâncias que Tadao Ando fala a respeito do idealizar de um espaço novo, sendo uma das suas maiores preocupações, é o da harmonia desse mesmo com o seu envolvente.

“A arquitectura deve ter seu próprio universo, mas, …, ela deve sentir as forças e o vigor do sítio. … Num local urbano, é preciso ser prático e o terreno específico deve dialogar com os outros edifícios e com os caminhos, com a maneira como as pessoas se deslocam.”25

Uma das responsabilidades de um indivíduo que seja arquitecto é perceber até que ponto o que se cria será harmonioso com o existente ou destoante do mesmo. O destoante não significa o errado. Se nos referirmos, por exemplo, a um espaço desorganizado e obsoleto, mesmo das suas próprias funções, muito possivelmente iremos querer alterar o rumo que essa circunstância nos aponta, não a seguindo, mas tomar partido pela circunstância oposta, quiçá chamar à atenção da sociedade de que algo está mal e criar-lhe novas circunstâncias menos comprometedoras de um futuro saudável e promissor.

O Homem precisa então defrontar a realidade circunstancial de que quaisquer das suas acções aplicadas ao real tem implicações no futuro. O passado e o futuro devem delinear o espaço para que haja uma correcta organização do mesmo, ainda que a utopia nunca se possa soltar do imaginário para ocupar um lugar mais concreto no real.

Qualquer profissão exercida pelo agente humano também ela será responsável pela organização do espaço.26 Toda a actividade humana desempenha à sua maneira de uma forma

mais concreta ou abstracta, um papel que traduzirá o espaço num talismã da vivência da sua sociedade. A forma deve advir de um todo e não de uma parte, por muito que seja apenas um indivíduo a materializar uma forma, esta tem, por ordem de significado existencial, que estar intrinsecamente ligada a um uso e aceitação generalizado.

“A delapidação é assim um processo de criação de formas desprovidas de eficiência e de beleza, de utilidade e de sentido, de formas sem raízes, verdadeiros nado-mortos que nada acrescentam ao espaço organizado ou o perturbam com a sua existência.”27

Este processo é descrito pela deterioração do espaço, resultado da desarmonia do pensamento de cada um e a um individualismo tornado realidade. Num sistema em que de

25 ANDO, Tadao. Conversas com Michael Auping, Barcelona: Gustavo Gili, 2003, p.23. 26 TÁVORA, Fernando. Da Organização do Espaço, Porto: FAUP, 1999.

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uma maneira ou de outra, a arte de projectar um espaço é reservada a todos os intervenientes que se apresentam vivos, qualquer decisão também se dirige à vivência de todos eles. As nossas vidas são feitas de escolhas certas e escolhas erradas, em que umas se vão destacar mais na organização espacial do meio em geral e outras de modo mais particular e anónimo. Mas todas elas influenciarão o aspecto formal do espaço e a cultura daí gerada. Más decisões de peso relevante não se apresentam apenas, ou necessariamente, nas plantas, cortes e alçados de um dado edifício, porque o artista do espaço não é só o arquitecto ou o engenheiro, ele vai para além disso. Portanto a deterioração de que às vezes tanto nos queixamos tem autores ou origens mais abstractas, se assim se pode dizer. Um cliente, por exemplo, quer uma casa, uma habitação para a família, ele pode estar condicionado pelas leis locais, como o está o arquitecto responsável pela obra, porém o mesmo, dentro dessas condicionantes ou mesmo circunstâncias, apontará ainda mais circunstâncias. Essas resultarão do seu estilo de vida particular, do seu modo de ver as coisas, dos seus desejos e preconceitos, da sua propensão em aceitar certas circunstâncias e rejeitar outras. No fim, quando a encomenda do edifício, do espaço habitacional é cedida à responsabilidade do arquitecto, ele estará sujeito a todas essas circunstâncias mais as do seu próprio ser, que terão todas de se confrontar e, onde quem paga terá o direito a fazer soar mais alto as suas.

“A leitura do local, a descoberta de objectivo, sentido e finalidade do projecto, o projectar, planear e formular da obra é por isso não um processo linear, mas sim multiplamente entrelaçado.”28

28 ZUMTHOR, Peter. Atmosferas, Barcelona: Gustavo Gili, 2006, p.7.

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No documento Arquitectura e cinema (páginas 40-44)