• Nenhum resultado encontrado

2 A LUTA PELA LEGITIMAÇÃO DA INDUSTRIALIZAÇÃO PLANEJADA NO

2.1.2 O Brasil em mudança: transformações estruturais dos anos 40 e 50

Em consonância com o que ocorria em nível internacional, os anos 40 e 50 foram também de intensas transformações no Brasil. As duas décadas que se seguiram ao fim do conflito mundial corresponderam não só ao retorno do país à democracia política mas a uma experiência democrática que podemos considerar inédita até então.14 Mas estas modificações

não se limitaram ao universo político, alcançando aspectos econômicos, sociais e culturais que acirraram intensamente um processo já em um curso desde a década de 1930, mas que, agora, ganhava novas dimensões.

Entre os anos de 1945 e 1964, a economia brasileira passou por grandes alterações estruturais. Além de um significativo crescimento geral – que, de 1947 a 1961, ficou na faixa de 6% a.a. – houve uma expressiva mudança na contribuição de cada atividade econômica no total da produção nacional, tendo em vista que o desempenho da indústria foi bem superior ao da agricultura. Enquanto esta última alcançou a média anual de 4,6%, a primeira apresentou resultados mais significativos (9,1% a.a.), o que a tornou “o setor dinâmico da economia” brasileira.15 Por essas razões, este período é considerado o momento de consolidação do processo de industrialização do país, quando se completa a passagem do sistema agro- exportador para o industrial tanto do ponto de vista da formação de capital, quanto da presença relativa de cada setor no crescimento do PIB.16 Tal transição, segundo análise do

13 Ver: MOURA, Gerson. Estados Unidos e América Latina. 2. ed. São Paulo: Contexto, 1991, p. 40-41 e

SCHOULTZ, Lars. Estados Unidos : poder e submissão. Uma história da Política Norte-americana em relação à América Latina. EDUSC. Bauru:SP. 2000, p. 381.

14 Apesar de alguns limites no que se refere ao pleno exercício da democracia representativa, esta experiência

apresentou características que a distinguem das anteriores, como: eleições para todos os cargos representativos, relativa liberdade de imprensa, regras eleitorais buscando maior lisura nas votações e um considerável aumento do contingente de eleitores, que, no pleito presidencial de 1950, chegaria a cerca de 20 % do total da população. Quanto a estas questões, consultar: CAMPELLO DE SOUZA, Maria do Carmo Campello de. Estado e partidos

políticos no Brasil : 1930-1964. São Paulo : Alfa-Omega, 1976, pp:139-168, LIMA Jr., Olavo B. L. O sistema

partidário brasileiro, 1945-1962. In: FLEISCHER, David V. (org.). Os partidos políticos no Brasil. v. 1. Brasília : Editora Universidade de Brasília. 1981. p. 24-44, SOARES, Gláucio. A democracia interrompida. Rio de Janeiro : Fundação Getúlio Vargas, 2001. p. 45-136 e DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. Partidos políticos

e frentes parlamentares: projetos desafios e conflitos na democracia. In: DELGADO, Lucilia & FERREIRA,

Jorge (org.). O Tempo da experiência democrática: da democratização em 1945 ao golpe civil-militar de 1964. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2003. p. 127-155.

15 Cf. BAER, Werner. A Industrialização e o Desenvolvimento Econômico do Brasil. Fundação Getúlio Vargas :

Rio de Janeiro, 1966, p. 73, nota 3.

16 Empregamos, aqui, a diferenciação utilizada por BAER entre crescimento industrial e industrialização: no

86 IPEA, “revela o alto dinamismo do setor industrial brasileiro, que realizou no pós-guerra uma das mais rápidas e radicais modificações de estrutura econômica já observada em países subdesenvolvidos”.17

Como os demais países da América Latina, o processo de industrialização no Brasil foi essencialmente de substituição de importações e, sendo assim, o avanço da indústria à condição de carro-chefe da economia nacional também implicou na transição de seu eixo dinâmico. Ou seja, o mercado externo – preponderante no sistema agro-exportador – deixou de ser o polo mais ativo, dando lugar ao mercado interno, como nos ilustra o próprio percentual das exportações no PIB brasileiro, que caiu de 19,7%, em 1939, para 7,1%, em 1954.18

Outra alteração importante e diretamente relacionada ao processo industrializante esteve nas mudanças na população brasileira. Esta já apresentava, desde os anos 30, um crescimento acelerado, mas ele irá se acentuar no pós-guerra19 e virá acompanhado por um alto índice de urbanização: nos anos 1940, o país estava dividido entre 30.826.243 (74,75%) habitantes considerados como rurais e 10.410.072 (25,24%) como urbanos; porém, em 1960 esses números já seriam respectivamente de 38.767.423 (55,32%) e de 31.303.034 (44,77%) e, em meados dos anos 60, os residentes nas cidades se tornariam maioria.20 Esse processo de urbanização provocou profundas transformações nas grandes metrópoles brasileiras, que deixaram de ser apenas polos administrativos e comerciais para também “construir o locus da

agrícolas” e “não foi acompanhado por mudanças estruturais da economia. A industrialização, por outro lado, está presente quando a indústria se torna o principal setor de crescimento da economia e gera mudanças estruturais pronunciadas” (BAER, Werner. A Economia Brasileira. São Paulo : Nobel, 1996., p. 55). Ver também MELLO, João Manuel Cardoso de. O capitalismo tardio. São Paulo, Brasiliense, 1982. Sobre a transição do modelo agro-exportador para o industrial, ver SUZIGAN, Wilson. Indústria Brasileira : Origem e Desenvolvimento. São Paulo : Brasiliense, 1986, p. 246 e BAER 1966, p. 79.

17 CANDAL, 1977, p. 246. Especialmente se considerarmos que a participação da indústria no PIB era, em 1947,

de 19%, passando para 30%, em 1964 (CANDAL, op.cit., 248)

18 Conforme FURTADO, essa mudança iniciou ainda nos anos 30, como decorrência da crise de 29 e das

medidas tomadas pelo Brasil para enfrentá-la. Ver: FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. Brasília : Editora da Universidade de Brasília, 1963.

19 Isso fica bem ilustrado quando consideramos que o contingente populacional do páis passa de 41.236.315

habitantes, em 1940, para 70.070.457, em 1960, num incremento de aproximadamente 70% em duas décadas. Cfe. dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censohistorico/1940_1996.shtm, consultado em 31 de maio de 2009. A principal razão desse índice é atribuída à manutenção de altas taxas de natalidade acompanhadas de queda da mortalidade, cujo maior declínio ocorre exatamente na década de 1950, “período de maior propulsão do esforço desenvolvimentista e de expansão do processo de industrialização” (PATARRA, Neide. Dinâmica

Populacional e Urbanização no Brasil : o Período pós-30. In.: Boris Fausto (org.). História Geral da Civilização Brasileira. Tomo III: O Brasil Republicano, 4º vol.: Economia e Cultura, 1930-1964, Capítulo V, 2ª ed., São

Paulo, Difel, 1986, p. 257). Ver também MERRICK, Thomas. A População Brasileira a Partir de 1945. In.: BACHA, Edmar Lisboa & KLEIN, Herbert S. A Transição Incompleta : Brasil desde 1945. Vol. I: População, Emprego, Agricultura e Urbanização. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1986, p. 31.

87 atividade produtiva”.21

Contudo, devemos salientar que essas mudanças estiveram longe de ser naturais e/ou espontâneas, pois implicaram ou mesmo derivaram de uma decisiva interferência do Estado. Como ressalta BAER, a industrialização antes do pós-guerra foi mais um “expediente ocasional”, determinada pelas contingências geradas pela Crise de 1929 e pela Segunda Guerra Mundial, do que por uma decisão deliberada e planejada. Pós 1945, porém, ela transformou-se paulatinamente “em uma decidida política no sentido de modificar drasticamente a estrutura da economia brasileira”.22

Para tanto, foram empregados basicamente três mecanismos, muitos dos quais já existentes no período anterior, mas que, na nova conjuntura, vão tomar um caráter mais programático e coordenado: a política cambial, que privilegiou a liberação de divisas à importação de bens de capital e de insumos industriais, servindo para proteger e de subsidiar o setor; a política de crédito, que favoreceu os investimentos no parque fabril, em especial a compra dos bens e dos insumos mencionados acima; e os investimentos públicos, especialmente nas indústrias de base, como a siderurgia, o setor petrolífero e a eletricidade, responsáveis por fornecer infraestrutura e alavancar as inversões privadas.23 Isso, entretanto, implicou no inevitável aumento do intervencionismo estatal na economia, com a criação de empresas públicas, de novos tributos – ou da repartição da receita dos antigos em favor do governo federal – e a ampliação da burocracia, sem contar as novas agências do Estado ou paraestatais, responsáveis por planejar as suas principais ações econômicas.24

De outra parte – e diretamente ligado ao que afirmamos acima -, essas mudança implicavam em alterações na tradicional posição do Brasil na divisão internacional do trabalho. Embora o país ainda continuasse exportador de produtos primários, optar pela

21 PATARRA, op.cit., p. 260. Ver também KATZMAN, Marin. Urbanização no Brasil a partir de 1945. In.:

BACHA, Edmar Lisboa & KLEIN, Herbert S. op.cit., p. 198.

22 BAER, op.cit., p. 35. Ver também: LEOPOLDI, Maria Antonieta Parahyba Leopoldi. Política e interesses na industrialização brasileira : As associações industriais, a política econômica e o Estado. São Paulo : Paz e Terra

: 2000, p. 181, DRAIBE, Sônia. Rumos e metamorfoses – Estado e industrialização no Brasil: 1930/1960. Rio de

Janeiro : Paz e Terra, 1985 e FONSECA, Pedro César Dutra. Vargas: O capitalismo em construção: 1906-1954. Ed. Brasiliense : São Paulo, 1987.

23 Quanto a estes aspectos, ver DRAIBE, op.cit., p. 182, LEOPOLDI, op.cit., p. 222-223, TAVARES, Maria da

Conceição. Da Substituição de Importações ao Capitalismo Financeiro : Ensaios Sobre Economia Brasileira. Zahar Editores : Rio de Janeiro. 1976, 5ª. edição, p. 62 e BAER, 1966. Em relação ao sistema de controle de importações pela licença prévia, iremos tratar mais além. Ver, por ora, LEOPOLDI, Maria Antonieta P. O difícil

caminho do meio: Estado, burguesia industrial e industrialização no segundo governo Vargas (1951-1954). In.:

SZMRECSÁNYI, Tamás & SUZIGAN, Wilson (org.) História Econômica do Brasil Contemporâneo. 2ª. edição. São Paulo – HUCITEC/Associação Brasileira de Pesquisadores em História Econômica/Editora da Universidade de São Paulo/Imprensa Oficial, 2002, (p. 17-29), p. 62 e FONSECA, op.cit., p. 374-375.

24 Uma abordagem dessas instituições relativas à ampliação do papel econômico do Estado será feita ao longo do

88 industrialização implicou no controle qualitativo das importações (preferência por bens de capital e insumos em detrimento das mercadorias de consumo) e atingiu o fluxo de capital, ao provocar restrições no envio ao exterior de lucros e de dividendos para, com isso, aproveitar as divisas escassas no desenvolvimento industrial. Desta maneira, tais medidas entravam em choque com os princípios defendidos em Bretton Woods e com as pretensões norte- americanas para a América Latina no pós-guerra, dando origem a inúmeros conflitos entre o governo brasileiro, o Departamento de Estado e os círculos financeiros de Wall Street, cujo principal exemplo ficou por conta do problema do “reinvestimento”, surgido no Segundo Governo Vargas.25

Essas transformações igualmente tiveram fortes efeitos no que se refere à distribuição do poder e da renda na sociedade brasileira. Quanto ao primeiro caso, as mudanças na estrutura populacional e a rápida urbanização interferiram nas bases do sistema representativo, na medida em que o voto urbano teve um ganho relativo frente ao voto rural – e isso em pleno retorno da democracia. Além disso, o crescimento acelerado das cidades provocou o agrupamento dos eleitores nas mesmas e também “veio alterar profundamente a composição do eleitorado, já que se tratava de incorporação dos setores médios e inferiores da sociedade, particularmente de um contingente respeitável de trabalhadores”.26 Em

consequência, tivemos um enfraquecimento das formas tradicionais de poder, ligadas ao clientelismo rural, em favor de estratégias mais aptas a incorporar o voto citadino.27 O principal reflexo dessa mudança se daria na evolução eleitoral dos partidos, com perda de representatividade daqueles que mais dependiam do voto rural, como a UDN e o PSD, frente aos que demonstraram maior aptidão a cooptar o eleitor urbano, como o PTB.28

Já no que se refere à questão da distribuição da renda, às mudanças produtivas estavam associadas

alterações no seio das classes dominantes, pois, muito embora não haja consenso na bibliografia acerca de quais grupos mais perderam ou mais ganharam com este processo,

25 Esse tema será analisado no Capítulo V.

26 LIMA Jr., Olavo B. L. O sistema partidário brasileiro: 1945-1962. In: FLEISCHER, David V. (org.). Os partidos políticos no Brasil. v. 1. Brasília : Editora Universidade de Brasília. 1981 (p. 24-44), p. 29. Em 1950, o

percentual de votantes em cidades com menos de 10 mil habitantes era de 47,7%, enquanto em cidades com mais de 10 mil habitantes era de 52,3%. Em 1958, essas cifras passariam para 36,5% e 63,5%, respectivamente. Fonte: BASTOS, Suely. A Cisão do MTR com o PTB. In: FLEISCHER, David V. (org.). Os partidos políticos

no Brasil. v. 1. Brasília : Editora Universidade de Brasília. 1981, p. 125. Ver também SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Getúlio Vargas a Castelo Branco (1930-1964). 11. reimp., Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1996, 133. 27 Quanto a essa análise, ver especialmente SOARES, op.cit. e CAMPELO DE SOUZA, op.cit.. Uma síntese e,

ao mesmo tempo, uma crítica a esta interpretação é oferecida por LIMA JÚNIOR, op.cit., p. 25.

28 A trajetória da representação dos partidos na Câmara Federal nos indica isso: em 1945, os chamados “partidos

conservadores” (UDN+PSD) obtiveram conjuntamente vitória expressiva, com 84,3 % das cadeiras, ficando o PTB com apenas 7,7%; contudo, nas eleições parlamentares de 1962, a soma da UDN e do PSD caiu para 53,7%, enquanto os trabalhistas atingiram 29,8%. Dados conforme DELGADO, op.cit., p. 142.

89 parece inegável que a burguesia industrial foi a sua maior beneficiária, o que levou muitos autores a afirmarem que a industrialização acelerada do Brasil foi conduzida sob a “hegemonia” desta classe.29

Não podemos negligenciar que esse processo, não obstante os seus resultados positivos em termos macroeconômicos, trouxe também muitos problemas de curto e médio prazos, tais como o estrangulamento do balanço de pagamentos, o aumento do déficit público, o endividamento do país e o aceleramento da inflação; ao mesmo tempo, acarretou novas necessidades a serem atendidas pelo poder público, como as dificuldades de moradia, de abastecimento e de transportes urbanos, que transformaram as cidades em focos de reivindicações e de conflito.30 Ou seja, no curto prazo, as mudanças aqui analisadas trouxeram consigo não apenas vantagens mas, também, vários problemas.

Sendo assim, não é difícil aceitar que tais alterações geraram muitos questionamentos sobre a sua adequabilidade e validade para o país, especialmente no que dizia respeito ao seu ritmo, aos seus métodos e aos seus custos. Além disso, é lícito supor que elas provocaram muita contrariedade entre aqueles que se sentiram prejudicados, tanto em nível interno – como o setor econômico ligado ao comércio de importação e exportação e as elites citadinas e rurais, deslocadas ou enfraquecidas no centro de poder político com a ascensão do voto popular e urbano – quanto em nível externo, ao contrariar o papel que originariamente os EUA projetaram para o Brasil na divisão internacional do trabalho e na própria geopolítica do pós-guerra.

Tais mudanças enfrentaram também a resistência da forte tradição liberal – por muito tempo hegemônica no pensamento acadêmico e no imaginário da elite brasileira. Nunca é tarde para lembrar que esta linha de pensamento defendia a especialização primária do Brasil a partir da teoria das vantagens comparativas, sendo contrária à interferência do Estado na economia, quer seja pelo protecionismo, pelo excesso de investimentos públicos ou pela

29 Não iremos abordar no momento a discussão em torno da categoria “burguesia nacional”, mas pode-se

consultar uma resenha sobre a mesma em TRINDADE, Helgio. Burguesia e Estado no Brasil : um balanço crítico. In: Estudos FEE, Porto Alegre, 7(1): 105-124,1986. Já em relação à defesa da tese de que o projeto de industrialização se deu sob a hegemonia da burguesia industrial brasileira, ver os seguintes autores: LEOPOLDI (2000, 2002), FONSECA, op.cit. e, mais recentemente, BASTOS, Pedro Paulo Zahluth. A dependência em

progresso : fragilidade financeira, vulnerabilidade comercial e crises cambiais no Brasil (1890-1954). Tese de

Doutorado – Unicamp – Campinas – SP – 2001 (s.n.), disponível em http://libdigi.unicamp.br/document/?code=vtls000232699, consultado em outubro de 2009. No que se refere ao questionamento desta interpretação, afirmando que tal industrialização se deu por iniciativa da burocracia estatal, com a burguesia a reboque no processo, ver especialmente MARTINS, Luciano. Industrialização, burguesia

nacional e desenvolvimento : introdução à crise brasileira. Rio de Janeiro : Saga, 1968 e CARDOSO, Fernando

Henrique. Empresário industrial e desenvolvimento econômico no Brasil. 2. ed. São Paulo : DIFEL, 1972.

90 presença direta no sistema produtivo.

Por tudo isso, não é difícil aceitar que a emergência e, acima de tudo, a continuidade do processo industrializante exigiram um amplo trabalho de legitimação. Em outras palavras, era necessário difundir e fazer vencer a ideia de que a industrialização acelerada do país, com presença ativa do Estado, era não só possível como necessária para o seu desenvolvimento. Trabalho simbólico que tinha como uma das suas etapas a busca de alternativas conceituais à ortodoxia econômica que permitissem aos defensores da industrialização, ao mesmo tempo, justificar e orientar o processo em curso.

Porém, como toda a luta simbólica – ou seja, nos termos de BOURDIEU, como toda a luta pela imposição de uma visão mais legítima sobre a realidade social capaz de agir não apenas no pensamento sobre a realidade mas na própria realidade pelas mudanças que provoca nesse pensamento –, a busca pela legitimação do processo industrializante não foi mero reflexo das mudanças em curso. Ao contrário, como veremos, ela constituiu um momento decisivo no qual as principais alternativas para a continuidade ou não das mudanças em curso foram elaboradas, contestadas e difundidas. De outra parte, em se tratando de uma luta por legitimidade, tal conflito não pode ter se limitado ao universo acadêmico mas também envolveu os mais amplos setores da sociedade, como as entidades de classe, os partidos políticos, a burocracia estatal e, especialmente, a grande imprensa. Mais do que isso, sendo um conflito para impor uma visão específica da realidade nacional como a mais legítima a todo o corpo social, parece ser lícito supor que os grandes jornais brasileiros do período constituíram um dos palcos privilegiados dessa luta.

Dessa análise acima derivam muitas questões: de um lado, quais foram exatamente os termos desse debate? Que elementos e que argumentos entraram em confronto nesse processo? Como as políticas de industrialização ganharam legitimidade para serem aceitas e aplicadas? De outro lado, qual a importância do Segundo Governo Vargas nesse processo de aceleramento e de legitimação do projeto industrialista brasileiro? Pergunta pertinente na medida em que, muito embora Vargas tenha tomado algumas medidas fundamentais para estabelecer as bases da passagem a um modelo de industrialização pesada,31 não existe

consenso a respeito do sentido de seu programa econômico, alguns autores afirmando ter Getúlio levado adiante um projeto industrializante em parceria com a burguesia industrial, enquanto outros defendendo que ele apenas seguiu uma política econômica ortodoxa de

31 Ao ponto de ser considerado o momento da “criação de um embrião de estrutura industrial mais integrada, que

praticamente determinou o modelo de desenvolvimento industrial subsequente, uma vez que a opção básica pela industrialização já estava garantida” (CANDAL, op.cit., p. 266).

91 estabilização.32

A exposição a seguir procura analisar esses temas com mais detalhes: primeiro, iremos avaliar em que termos se deu o debate em torno da industrialização e, depois, como o Segundo Governo Vargas se enquadra nessa discussão. A análise do posicionamento da imprensa será objeto dos capítulos seguintes (III, V e V).

2.2 – Ortodoxia X desenvolvimentismo na luta pela industrialização do Brasil: os

Documentos relacionados