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O capital varejista e a reestruturação do setor no capitalismo flexível

CAPÍTULO 1 WALMART BRASIL: TRAJETÓRIA DE INTERNACIONALIZAÇÃO E

1.1 O capital varejista e a reestruturação do setor no capitalismo flexível

A fim de contribuir com a lacuna apontada por Bonacich e Wilson (2008), mencionada na introdução desse trabalho, a respeito do papel do capital comercial nas transformações recentes do capitalismo (para além da reestruturação da produção industrial e do crescente poder do capital financeiro), apresentamos a seguir um breve debate para reforçar a relevância do estudo desse capital em articulação com o movimento geral do capitalismo.

Entende-se que o capital comercial (e em sua forma particular no varejo) deve ser apreendido tanto na sua particularidade quanto na sua unidade em relação ao processo de produção capitalista. Essa forma de capital exclusivamente dedicada à compra e venda, na medida em que possui a função especial de converter em capital o capital mercadoria, é percebido enquanto momento particular do circuito total do capital, que se realiza dentro da esfera da circulação. E que cumpre papel crucial na acumulação do capital na medida em que facilita a realização do valor contido nas mercadorias:

Ao concorrer para abreviar o tempo de circulação, pode indiretamente contribuir para aumentar a mais valia produzida pelo capitalista industrial. Ao contribuir para ampliar o mercado e ao propiciar a divisão do trabalho entre os capitais, capacitando portanto o capital a operar com escala maior, favorece a produtividade do capital industrial e a respectiva acumulação. Ao encurtar o tempo de circulação, aumenta a proporção da mais-valia com o capital adiantado, portanto, a taxa de lucro. Ao reter na esfera da circulação parte menor do capital na forma de capital-dinheiro, aumenta a parte do capital diretamente aplicada na produção. (MARX, 1974, L3-V5, p.323).

Ao mesmo tempo, deve-se atentar para a forma e função distintas do capital comercial considerando sua expressão 1) voltada para o valor de troca das mercadorias; 2) como capital que não produz mais valia e 3) como processo de conversão das mercadorias em capital dinheiro que se realiza nas mãos de outros agentes que não o capitalista industrial (BLOMLEY; DUCATEL, 1990, p. 212). Se por um lado, busca-se reforçar aqui o papel do capital comercial no circuito global do capital, essas particularidades acima mencionadas são fundamentais para compreender algumas das contradições em que este recai.

Em primeiro lugar, destaca-se que o objetivo da comercialização não é o consumo diretamente, mas o ganho do dinheiro, a maximização do valor de troca. Esse aspecto pode trazer um conflito em potência para o capital varejista em relação ao consumo, na medida em que o sentido geral do consumo está no valor de uso das mercadorias.

Em segundo lugar, ainda que algumas atividades, como o transporte, possam criar valor, o capital comercial “não cria valor nem mais valia, mas propicia sua realização” (MARX, 1974, L3- V5, p. 325). Por esse motivo, no momento em que essa divisão do trabalho se estabelece e o capitalista comercial adquire função especial dedicada ao intercâmbio de mercadorias, se, por um lado, essas formas de capital – comercial e produtivo – estão funcionalmente relacionados como parte de sua lógica interna, ao mesmo tempo, precisam competir pela sua parcela no capital social total. Em outras palavras, por constituir-se o capital comercial (e varejista) como predominantemente improdutivo, a distribuição da mais-valia gerada no processo produtivo será objeto de conflito entre capitalistas comerciais e capitalistas produtivos. Frente a essa limitação enquanto criador de valor, o capital varejista desenvolve estratégias adicionais de acumulação que consistem em duas principais: a já mencionada pressão sobre o capital produtivo, para a apropriação de uma parcela maior da mais valia, e a busca generalizada pela redução nos custos de circulação.

Essas estratégias são centrais para os debates recentes a respeito da balança de poder entre varejistas e produtores. Se a concentração do capital varejista foi benéfica inicialmente para o capital produtivo, ao aumentar a rotatividade do capital, o fenômeno da monopsonia e controle da informação no ponto de venda, melhorou a posição dos varejistas na barganha por uma fatia maior da mais valia (CHESNAIS, 2016). Esse fenômeno é parte do processo de concentração e reestruturação do varejo

e objeto de discussão desse capítulo.

Situar o varejo no processo mais geral de produção e reprodução do capitalismo parece fundamental, já que algumas das características e contradições do capital comercial terão desdobramentos nas suas expressões históricas no tempo e espaço. No entanto, para analisarmos a particularidade da evolução do Walmart e de sua estratégia, é necessário analisar também outro conjunto de processos e relações mais contingentes, ainda que sejam eles mediados pelas tendências do desenvolvimento capitalista.

1.2 Globalização e reestruturação do varejo

O debate surgido nos anos 1980 a respeito das transformações do capitalismo no sentido de uma acumulação flexível indicou um conjunto de mudanças que foram se consolidando em diferentes velocidades e formatos, pelos mais diversos lugares do globo. Esse debate teve diferentes ênfases e contornos (GERTLER, 1992; HARVEY, 1992; PIORE; SABEL, 1984).

Contudo, apesar da riqueza dessa literatura, ela esteve vinculada principalmente ao setor industrial e seu processo de reestruturação. Sua penetração na discussão do setor varejista será iniciada com as contribuições de Wrigley, a partir da experiência do Reino Unido, que abordou pelo menos 4 temas principais: a concentração do capital varejista, suas ligações espaciais, a intensificação da ‘produção’ no varejo, e as mudanças tecnológicas na distribuição varejista (WRIGLEY; LOWE, 1996, p. 07). A partir dessa e outras contribuições depreende-se que o processo de reestruturação varejista não é diretamente análogo àquele do setor produtivo industrial, como explicamos a seguir (CHRISTOPHERSON, 1989; WRIGLEY; LOWE, 1996).

A reestruturação do varejo, ou o que alguns autores vão chamar de “revolução no varejo” é compreendida como o conjunto de mudanças que se desenvolvem a partir dos anos 1980, possibilitadas principalmente pela “revolução” logística e pelo desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação, combinada com a constituição de grandes redes internacionais e nacionais. Essas mudanças permitiram o aumento do poder dos grandes varejistas por meio de uma combinação de fatores que moldou de forma significativa as estratégias de negócios no setor.

O primeiro elemento que caracteriza esse processo de reestruturação diz respeito ao controle da tecnologia que permite aos grandes varejistas a coleta de dados nos pontos de venda. Com isso, eles sabem o que os consumidores compram, quais os preços, quais mercadorias estão ganhando e perdendo popularidade, e como os padrões de compra variam de acordo com o lugar, o perfil da população etc (BONACICH; WILSON, 2008; LICHTENSTEIN, 2013). Sob a justificativa de poder oferecer preços mais baixos aos clientes, essas informações valiosas são utilizadas para determinar o