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O CARÁTER PEDAGÓGICO DA JUSTIÇA RESTAURATIVA INSERIDA NA

4 JUSTIÇA RESTAURTIVA E SOCIOEDUCAÇÃO: UMA MUDANÇA

4.2 O CARÁTER PEDAGÓGICO DA JUSTIÇA RESTAURATIVA INSERIDA NA

Para além de uma contribuição ao sistema de justiça penal juvenil através de respostas mais democráticas às infrações praticadas pelos jovens em conflito com a lei, o novo paradigma restaurativo promove um excelente aprendizado aos sujeitos que participam dos encontros restaurativos. Nas práticas socioeducativas, então, a Justiça Restaurativa representa uma dialógica claramente pedagógica.

Conforme afirmado no item anterior, os encontros restaurativos estão marcados pelo diálogo. Essa marca pode conduzir os participantes diretos do conflito a buscarem pontos de entendimento e compreensão mútuos, após a escuta respeitosa do que um tem a dizer ao outro e vice-versa. Porém, esse encontro somente poderá ocorrer se houver como já dito, a anuência do jovem infrator e da vítima a buscarem a cura das feridas que foram abertas pela infração. Não se trata, pois, de um simples encontro, mas uma oportunidade dos sujeitos vivenciarem as mais fortes emoções e, a partir delas, encontrarem a racionalidade para traçar uma meta que vai culminar num acordo restaurativo170.

169 LÛCHMANN, Lígia Helena Hahn. A democracia deliberativa: sociedade civil, esfera pública e

institucionalidade. In: Cadernos de pesquisa, n. 33. 2002. p. 31. Disponível em:

<http://www.sociologia.ufsc.br/cadernos/caddernos%20PPGSP%2033.pdf >. Acesso em: 16 dez. 2017.

170 PINTO, Renato Sócrates Gomes. Justiça Restaurativa: O Paradigma do Encontro. Instituto de Direito

internacional de Brasília. 2004. p. 16. Disponível em:

http://www.crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/doutrina/justica_restaurativa/jr_o_paradigma_do_encontro.pdf. Acesso em: 21 dez. 2017.

Eis aí a necessidade de inclusão das práticas restaurativas nos processos socioeducativos. Como se viu, as medidas no âmbito da socioeducação, da forma como têm sido aplicadas, tornaram-se objeto de fortes críticas doutrinárias, principalmente por não atenderem a uma finalidade educativa para o jovem autor de ato infracional.

Esse problema está diretamente relacionado à confusão que se faz entre a lógica punitiva do direito penal e o direito infracional. É, aliás, por essa razão que deverá haver maior rigor na interpretação dos critérios normativos para a aplicação de respostas sancionadoras171. Tais respostas, necessariamente, não estariam alinhadas ao ECA e ao SINASE, se não tiverem como finalidade, a educação e a responsabilização do adolescente em conflito com a lei.

Aqui valem as lições de Leonardo Sicca172 ao afirmar que, numa sociedade cada vez mais complexa e plural, a coesão social que propicia laços de solidariedade, somente pode ser alcançada quando as normas não adquirem um caráter atemorizante de sanção. Daí porque também deve haver uma ética comunicativa no que se refere à apreensão do conteúdo da norma, de modo que os sujeitos possam conhecer, mediante uma atividade dialética e emancipatória, as relações em que estão envolvidos com o ordenamento jurídico.

Em outros termos, não se justifica a execução de medidas socioeducativas demasiadamente rígidas que pouco ou nada se diferenciam das penas aplicáveis aos adultos e que restrinjam direitos e garantias fundamentais do jovem infrator, ao argumento de que assim irá ele aprender com o rigor da lei a não voltar a praticar infrações, quando na verdade, tem-se um mandamento constitucional cuja temática envolve mecanismos diferenciados de responsabilização em respeito à doutrina da proteção integral e da condição peculiar de desenvolvimento desses sujeitos.

Uma clara justificativa para o aprimoramento das medidas socioeducativas, numa justiça juvenil, tendo como base mecanismos restaurativos é o reconhecimento segundo o qual o ofensor envolvido no conflito é um sujeito que se encontra numa fase de descobertas, questionamentos e problemas internos que, na maior parte das vezes, explica a prática de infrações e faz crer que o comportamento desviante do jovem é, em dada medida, fruto de um fenômeno normal, como bem salienta Juarez Cirino dos Santos:

171 CARVALHO, Salo de; WEIGERT, Mariana de Assis Brasil. As alternativas às penas e às medidas

socioeducativas: estudo comparado entre distintos modelos de controle social punitivo. In: PINHO, Ana Cláudia Basto de; DELUCHEY, Jean-François; GOMES, Marcus Alan de Melo (Coords.). Tensões, Contemporâneas da repressão criminal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014. p. 1.

Em oposição à ideologia oficial, a criminologia contemporânea define o comportamento desviante do adolescente como fenômeno social normal (com exceção da grave violência pessoal, patrimonial e sexual), que desaparece com o amadurecimento: infrações de bagatela e de conflito do adolescente seriam expressão de comportamento experimental e transitório dentro de um mundo múltiplo e complexo, e não uma epidemia em alastramento, cuja ameaça exigiria estratégias de cerco e aniquilamento. As ações anti-sociais características da juventude não constituem, isoladamente e por si sós, raiz da criminalidade futura do adulto, nem passagem para formas mais graves de criminalidade, como homicídios, roubos e estupros, por exemplo: o caráter específico do comportamento desviante da juventude, segundo várias pesquisas, explica sua extinção espontânea durante a fase da chamada “Peack-age” e, em regra, não representa sintoma justificante da necessidade de intervenção do Estado para compensar defeitos de educação173.

Em complemento, o autor indica que as infrações cometidas na adolescência se verificam por causas que representam a falta de maturidade própria dessa fase da vida, dentre as quais, pode-se mencionar uma tentativa do jovem em demonstrar coragem, testar a eficácia das normas ou mesmo ultrapassar limites. Portanto, em razão desse fenômeno, tanto a sociedade, quanto o Estado, devem ter uma maior tolerância e proteção, porquanto o processo de aprendizagem comportamental de adequação às normas legais até a passagem para a fase adulta é lento e gradual. Assim expõe o Cirino dos Santos:

Como se vê, cometer 1 ou mais delitos é fenômeno normal e geral da adolescência: jovens cometem infrações ou para mostrar coragem, ou para testar a eficácia das normas ou, mesmo, para ultrapassar limites – e negar essa verdade significa ou perda de memória, ou hipocrisia. O comportamento anti-social do adolescente parece ser aspecto necessário do desenvolvimento pessoal, que exige atitude de tolerância da comunidade e ações de proteção do Estado. A tolerância da comunidade e a proteção do Estado são indicadas pela psicologia do desenvolvimento humano, que mostra a necessidade de aprendizagem dos limites normativos, e pela criminologia contemporânea, que afirma o desaparecimento espontâneo desse comportamento. Ao contrário, a intervenção segregante do Estado produz todos os efeitos negativos da prisão: rotulação, estigmatização, distância social e maior criminalidade. A teoria da normalidade do desvio na adolescência tem os seguintes desdobramentos: se o desvio é fenômeno normal da juventude, então a ausência desse comportamento seria um sintoma neurótico e sua punição uma reação anormal que infringe, no setor das infrações de bagatela e de conflito, um dos mais fundamentais de todos os direitos humanos: o direito constitucional da liberdade174.

173 SANTOS, Juarez Cirino dos. O adolescente infrator e os direitos humanos. In: Revista do Instituto Brasileiro

de Direitos Humanos, Ano 2, vol. 2, número 2, 2001. p. 2-3.

De igual modo Vicentin175 trabalha com a mesma lógica, pois partindo de um olhar desafiador, verifica que a delicada questão da conflituosidade moderna, que a maioria dos jovens apresenta, é criada a partir de atitudes de revolta, protesto e rebeliões, baseados em estratégias de sobrevivência. Ela alerta que conflito e criminalidade, bem como protestos e violência, constituem uma linha tênue por vezes difíceis de serem discernidas.

Compartilha da mesma opinião Javier Llobet Rodríguez que se referindo à necessidade de um sistema de direitos dentro de uma justiça penal juvenil, defende a desjudicialização e que se deve partir das considerações de que os jovens enfrentem conflitos internos o s quais devem ser considerados:

Dentro del sistema de derechos establecidos en la justicia penal juvenil uno de los que sobresale es la búsqueda de la desjudicialización, ello a través de la diversión, ya sea con intervención o sin intervención. Se parte en definitiva del carácter episódico que tienen las conductas delictivas de los jóvenes, siendo en gran parte consecuencia de los conflictos que implica la adolescencia en sí, sin que luego de pasada la misma necessariamente impliquen que se va a continuar una carrera delictiva. Se agrega a ello que en ocasiones el carácter episódico de la delincuencia juvenil hace que la mejor respuesta es la falta de respuesta del sistema penal. Precisamente en relación con la desjudicialización con intervención es que encuentra cabida la justicia restaurativa, llegándose incluso en muchas ocasiones a caracterizar la justicia penal juvenil como restaurativa176.

Significa dizer, em síntese, que o modo como se deve enfrentar as infrações praticadas na adolescência deve perpassar, muitas das vezes, por uma visão não normativa e desvinculada de determinismos do processo de desenvolvimento humano, de modo geral, e na fase juvenil, em especial. Carece, assim, de outro tipo de trabalho no tratamento dos jovens em conflito com a lei, alvos do atendimento socioeducativo, a ser desenhado de modo crítico quanto às práticas no âmbito da socioeducação177.

É preciso, porém, registrar que o respeito e tolerância às infrações praticadas na fase da adolescência não se confundem com ausência de responsabilização que promove sentimento de insegurança e impunidade no seio social. A responsabilidade é ínsita ao processo de aprendizagem do jovem infrator através das medidas socioeducativas178

175 VICENTIN, Maria Cristina Gonçalves. A vida em rebelião: jovens em conflito com a lei. São Paulo:

HUCITEC: FAPESP, 2005. p. 19.

176 RODRÍGUEZ, Javier Llobet. Justiçia Restaurativa e Garantías em la Justícia Penal Juvenil. p. 29-30. 177 OLIVEIRA, Maria Cláudia Santos Lopes.” Da medida ao atendimento socioeducativo: implicações conceituais

e éticas”. Justiça juvenil: teoria e prática no sistema Socioeducativo. Organizadoras: Ilana Lemos de Paiva, Candida Souza, Daniela Bezerra Rodrigues. – Natal, RN: EDUFRN, 2014. p. 89.

Outro fator que que deve ser sopesado para a inserção do modelo restaurativo, na execução das medidas socioeducativas, é também as falhas no tocante à sua tão questionada finalidade educadora e corretiva do jovem infrator. A esse respeito, há muito tem-se questionado a pretensa função pedagógica das referidas medidas.

Alexandre Morais da Rosa e Ana Christina Brito Lopes179, por exemplo, rechaçam qualquer ideia de finalidade educativa das referidas medidas, apontando que em verdade o que se verifica, na prática, é a existência de uma Justiça da Infância e da Juventude que, salvo raras exceções, fomenta uma ideologia baseada na formação para o trabalho, a ordem e a disciplina, mas agindo seletivamente nas camadas mais marginalizadas da sociedade, a fim de tranquilizar poucos grupos de indivíduos. Afirmam os autores que o que se tem feito é uma domesticação dos jovens infratores através de medidas, que revestidas do discurso de que a intervenção é um bem para o adolescente, causam a opressão e a manipulação desses sujeitos para se adequarem a uma ordem burguesa com propostas pedagógicas que se perdem na teoria.

Da mesma forma, Vívian Caldeironi180 sustenta que, por trás das medidas socioeducativas, existe uma finalidade na escolha sobre quais os jovens que enfrentam problemas com a justiça serão segregados e afastados da sociedade por certo período. Ao argumento de se considerar a condição especial do jovem em desenvolvimento promove-se a privação da liberdade e perpetua-se a perversidade da exclusão social, característica marcante da lógica capitalista.

Vivian Caldeironi181, citando a teoria do Labelling Approach182, argumenta ainda que o jovem infrator a partir do momento em que sofre medida de internação, passa por um constante processo de estigmatização, sendo rotulado como criminoso. Como exemplo desse etiquetamento social, lembra do procedimento de corte de cabelo do adolescente autor do ato

179 ROSA, Alexandre Morais da; LOPES, Ana Christina Brito. Introdução Crítica ao Ato Infracional:

Princípios e Garantias Constitucionais. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 265.

180 CALDERONI, Vivian. Adolescentes em Conflito com a Lei: considerações críticas sobre a medida de

internação. In. Revista Liberdades. n. 05, set./dez. 2010. p. 28.

181 CALDERONI, Vivian. Ibdin; p. 43.

182 Também denominada de Teoria do Etiquetamento Social, parte da ideia segundo a qual as construções que

giram em torno do crime e da figura do criminoso remetem a uma construção social, mas tendo como base as instâncias formais de controle estatal que ditam em quais comportamentos serão atribuídos um caráter criminoso. Assim, as práticas desviantes não estariam inerentes ao agente, mas a ele é rotulado por meio de um etiquetamento que a própria sociedade enxerga em certos indivíduos como delinquentes.

Segundo Winfried Hassemer o labeling approach está relacionado com a noção de etiquetamento, cuja ideia central é a de que o crime é uma consequência de de um processo de imputação promovida pela polícia, pelo ministério público e pelo tribunal penal, enfim, pelas instâncias formais de controle social. (HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do Direito Penal. Tradução de Pablo Rodrigo Aflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2005; p. 101-102).

infracional, como um dos atos adotados assim que adentra na instituição, marcando-o de tal forma que, mesmo após deixarem a instituição, são rotulados e reconhecidos como ex-internos. Do mesmo modo se dá com a regra humilhante de terem de andar com uma postura na qual estejam com as mãos para trás e a cabeça para baixo, em condição de total domesticação183.

Também Maria de Lourdes Trassi Teixeira conclui pela inexistência de um caráter pedagógico na medida socioeducativa:

Nas condições institucionais atuais – em diferentes cantos do Brasil – de cumprimento da medida de privação de liberdade, não é possível nenhum processo educacional, nenhuma esperança. Portanto, é necessário, antes de tudo, reinventarmos a capacidade de nos sensibilizar com o sofrimento do corpo torturado, com a dor da humilhação, para atribuirmos a esses adolescentes sua dignidade moral e nos tornarmos educadores. Do contrário, as palavras ficam ocas de significado184.

Todas as críticas parecem apontar para uma constatação de que o sistema de justiça juvenil, a sociedade o Estado jamais podem negligenciar quanto a uma função educativa das medidas preconizadas pelo SINASE. Questiona-se qual seria a forma coerente de educação a ser passada aos jovens em conflitos com a lei, tendo em vista o fracasso das medidas até então aplicadas? Não seria a hora de se buscar modelos que, realmente, atendam ao efetivo interesse desses sujeitos, mas, ao mesmo tempo, que lhes imprima uma consciência para a necessidade de se sentirem responsáveis pelos danos que causou à vítima e a comunidade?

Certamente, a aplicação de medidas socioeducativas aos jovens a quem se atribui a prática de ato infracional precisa estar pautada em um projeto pedagógico que o encaminhe a uma formação que lhe prepare para assumir seu papel na vivência social, condições dignas para o trabalho e para se comportar conforme a justiça perante a vida pública, utilizando seus conhecimentos e habilidades para contribuir com a melhoria da sociedade185.

A aplicação do modelo restaurativo, no âmbito da socioeducação, é uma meta educativa ousada, mas que promove uma mudança de paradigma no trato daquele sujeito de direitos e na necessidade de fazê-lo responsabilizar-se pela infração perante a vítima e a

183 CALDERONI, Vivian. Op. Cit.; p. 43.

184 TEIXEIRA, Maria de Lourdes Trassi. Evitar o Desperdício de Vidas. In Justiça, Adolescente e Ato

Infracional: socioeducação e responsabilização. São Paulo: ILANUD, 2006. p. 442-445.

185 Rodrigues, M. M., Mendonça, A.; Algumas reflexões acerca da socioeducação. Núcleo de Comunicação

Institucional do MPPR. 2011. Disponível em:

<http://www.crianca.caop.mp.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=434>. Acesso em: 26 dez. 2017.

comunidade, a partir da construção de relações humanizadoras que superem a fragilidade que decorreu da violência, posto que enfrentam o núcleo das suas causas e promovem a inclusão.

A implementação do modelo restaurativo oportuniza uma experiência única às pessoas envolvidas, fazendo-as perceber a complexidade do outro, delas próprias e as reais necessidades que os cercam. A vinculação a essas práticas humaniza as medidas socioeducativas, personaliza os sujeitos e reduz a possibilidade de violência e sentimentos de não aceitação.

De maneira geral, conforme sintetiza Konzen186, os encontros restaurativos consistem em oportunidades pedagógicas pautadas numa responsabilidade ativa e não mais passiva que engloba, pois, uma cultura do aprendizado em substituição à cultura da culpa. Lembra, ainda, que o grande diferencial não é um método que tenha, como meta, diminuir os riscos que podem advir dos erros, tampouco pelo respeito às convicções individuais dos participantes, mas, sobretudo, em respeito a uma cultura do aprendizado.

Com razão, João Batista da Costa Saraiva187, para quem o sistema de justiça juvenil, para ser efetivo, precisa adotar, como elemento fundamental, um modelo de responsabilização penal que o torne um sistema de justiça juvenil restaurativo e afirma que a Lei 12.534/2012, traça esses caminhos.

Por certo, um sistema de justiça penal juvenil, que se preste restaurativo, deve pautar- se numa lógica pedagógica de responsabilização. Todavia, é preciso desgarrar-se das velhas concepções menoristas que tratavam como semelhantes os institutos da pena e a medida socioeducativa, bem como o crime e o ato infracional.