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O Centro Nacional de Referências Culturais (CNRC)

No documento O samba de roda na gira do patrimônio (páginas 76-80)

Simultaneamente as ações descritas acima, em 1976, Aloísio Magalhães,

designer e profissional da comunicação, promoveu um grande debate sobre a gestão

patrimonial dos bens culturais a nível federal. A partir da criação do Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC), dirigido por ele, críticas à visão elitista sobre os bens culturais foram tecidas e ofertada uma perspectiva inclusiva:

... o conceito de bem cultural no Brasil continua restrito aos bens móveis e imóveis, contendo ou não valor criativo próprio, impregnados de valor histórico (essencialmente voltados para o passado), ou aos bens de criação individual espontânea, obras que constituem o nosso acervo artístico (música, literatura, cinema, artes plásticas, arquitetura, teatro) quase sempre de apreciação elitista (...). Permeando essas duas categorias existe vasta gama de bens – procedentes sobretudo do fazer popular – que por estarem

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Refiro-me ao Grupo de Trabalho do Patrimônio Imaterial (GTPI) que será apresentado a seguir.

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Foi o CNCP o responsável pela concepção e execução do projeto Celebrações e Saberes da Cultura

Popular, ação que desenvolveu projetos pilotos do Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC)

79 inseridos na dinâmica viva do cotidiano não são considerados como bens culturais nem utilizados na formulação das políticas econômica e tecnológica. No entanto, é a partir deles que se afere o potencial, se reconhece a vocação e se descobrem os valores mais autênticos de uma nacionalidade (Magalhães, 1985: 52-3).

O objetivo do CNRC foi estudar as formas de vida e de atividades pré- industriais em vias de desaparecimento e documentá-las para posteriormente viabilizar apoio específico de acordo com a necessidade de cada uma e, assim, auxiliar sua manutenção. Dessa forma, foram registradas e impulsionadas várias atividades culturais, como diversos tipos de artesanato, fabricação de bebidas e alimentos, etc.

As referências que o CNRC se propunha a apreender eram as da cultura em sua dinâmica (produção, circulação e consumo) e na sua relação com os contextos sócio-econômicos. Ou seja, um projeto bastante complexo e ambicioso, e que visava exatamente aqueles bens que o Iphan considerava fora de sua escala de valores. E, gradualmente, a preocupação com os “novos patrimônios” passou a incluir os sujeitos a que se referiam esses patrimônios, primeiro com a idéia de “devolução” dos resultados das pesquisas às populações interessadas e, posteriormente, com sua participação enquanto parceiros (Londres, 2000).

O conceito bem cultural é indispensável para a compreensão da política cultural de Aloísio Magalhães. Para ele, o bem cultural seria o instrumento privilegiado para o desenvolvimento harmonioso do país. De acordo com esta perspectiva, o crescimento e o desenvolvimento do país não poderia levar em consideração apenas os aspectos quantitativos, como o Produto Nacional Bruto. Elementos qualitativos, que para ele são revelados pelos valores estáveis de uma nação, ou seja, os bens culturais, são essenciais na consolidação de uma nação plena. Em sua visão, o desenvolvimento da nação precisa aglutinar medidores sensíveis aos matemáticos. Não bastam índices

80 econômicos favoráveis, a felicidade dos indivíduos também precisa ser contemplada. O caminho indicado é a valorização da cultura.50

Em 1979, Aloísio Magalhães é nomeado pelo Ministro da Educação e Cultura, Eduardo Portella, ao cargo de Diretor-Geral do Iphan. Sua prática foi no sentido de não tratar a política cultural como um campo autônomo e segregado em órgãos especificamente culturais. As políticas culturais deveriam ser implementadas como política governamental, abrangendo e sendo pano de fundo de um projeto amplo de nação. Proposta semelhante àquela colocada pelo presidente Lula e o ministro Gil, alvo de análise anteriormente.

Quando assumiu o cargo de Diretor-Geral do Iphan, Magalhães reconheceu o mérito dos trabalhos de preservação e restauração de monumentos arquitetônicos realizados até então. Porém, não deixou de indicar que o trabalho estava incompleto, pois estava voltado sobretudo para os bens culturais materiais. Então, Aloísio Magalhães sugere a ampliação, revitalização e dinamização do Instituto a fim de cobrir uma gama maior de bens culturais, incluindo os saberes do povo brasileiro.

O que se percebe é que o conceito de bem cultural extrapola a dimensão elitista, de “o belo e o velho”, e entra numa faixa mais importante da compreensão como manifestação geral de uma cultura. O gesto, o hábito, a maneira de ser da nossa comunidade se constituem no nosso patrimônio cultural. Evidentemente que as excelências, as sínteses maravilhosas, que são expressas nos objetos de arte, no prédio extraordinário de pedra e cal, são pontos de representações de uma cultura. Mas em verdade esta cultura é um todo, é um amálgama muito mais amplo e rico, cujo extrato

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“Quais são os valores permanentes de uma nação? Quais são verdadeiramente esses pontos de referência nos quais podemos nos apoiar, podemos nos sustentar porque não há dúvida de sua validade, porque não podem ser questionados, não podem ser postos em dúvida? Só os bens culturais. Só o acervo do nosso processo criativo, aquilo que construímos na área da cultura, na área da reflexão, que deve tomar aí o seu sentido mais amplo – costumes, hábitos, maneiras de ser. Tudo aquilo que foi sendo cristalizado nesse processo, que ao longo desse processo histórico se pode identificar como valor permanente da nação brasileira. Estes são os nossos bens, e é sobre eles que temos que construir um projeto projetivo. O mais são imensas e fantásticas variáveis que todos desconhecem como resolver: a variável econômica e mesmo a variável política. Tentamos descobrir caminhos, tentamos achar o deus, tentamos abrir a mão a uma reflexão mais nova. Estamos num processo nítido de querer encontrar nossa identidade política. Como se encontrará? Onde se encontrará? Não há outro caminho a não ser o conhecimento, a identificação, a consciência coletiva, a mais ampla possível, dos nossos bens e nossos valores culturais” (Magalhães, 1985: 41-2).

81 dá o perfil e a identidade de uma nação. Só seremos uma nação verdadeiramente harmoniosa na medida em que o nosso processo global de desenvolvimento esteja atento aos indicadores oriundos do patrimônio cultural, que deve ser considerado como fator integrante do processo de desenvolvimento da nação (Magalhães, 1985: 63-4).

É possível apreender então a reviravolta conceitual proposta por Aloísio na direção do Iphan. Aqui a compreensão de nação perpassa a necessidade do reconhecimento de uma identidade “autêntica” que só pode ser visibilizada tendo como foco a cultura como um todo, articulando as contribuições presentes nos bens culturais pertencentes a quaisquer esferas da sociedade, reconhecendo a pluralidade cultural do Brasil.

Em 1980 é aprovado o estatuto da Fundação Nacional Pró-Memória (FNPM) e Aloísio Magalhães é nomeado presidente. Posteriormente a FNPM foi incorporada ao Iphan. Sua concepção projetiva de bem cultural, isto é, a compreensão de bem cultural como propulsor do êxito da nação também considerava que a partir de elementos autênticos “culturas pobres e jovens” como o Brasil poderiam se resguardar das investidas exploratórias dos países ricos. Ademais, reconhecendo seus valores intrínsecos a população seria capaz de ver-se de fato como nação e assim ser motivada a contribuir para o desenvolvimento do país.

“A comunidade é a melhor guardiã de seu patrimônio”, um dos lemas de Aloísio Magalhães, é uma esclarecedora legenda daqueles bens que tombou em sua gestão no Iphan: o Terreiro Casa Branca do Engenho Velho, em Salvador, Bahia51

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O tombamento do Terreiro da Casa Branca foi um caso altamente polêmico no período e constitui-se em um marco emblemático para as políticas patrimoniais federais. Demanda de movimentos negros, intelectuais e políticos, a demanda foi conformada não para a mera proteção física do Terreiro, mas como uma luta pela inclusão da memória afro-brasileira no panteão do patrimônio nacional. As discussões foram tão acirradas que, num caso inusitado, o tombamento não foi aprovado por unanimidade (três votos a favor, um voto contra, duas abstenções e um pedido de adiamento). Para conhecer com mais detalhes as implicações do tombamento do Terreiro da Casa Branca, cf. Velho (2006).

; a Serra da Barriga, local onde foi construído o Quilombo dos Palmares; e a região de Monte Santo, local que abrigou Canudos. Com isso, vemos que esta compreensão de identidade nacional que permeia a noção de patrimônio possui fundamentos mais abrangentes do que aquela presente na gestão de Rodrigo Melo Franco de Andrade.

82 Os trabalhos propostos por Aloísio Magalhães produziram uma série de documentos, relatórios, ensaios de referenciamento e algumas publicações. Entretanto, sua atuação não chegou a criar uma legislação específica que abarcasse os bens culturais em sua totalidade e que pudesse expressar o seu pensamento. Sua morte repentina interrompeu a continuidade de uma orientação mais participativa e democrática do tratamento do patrimônio cultural. Novamente, assistiu-se a um retrocesso na política de preservação praticada pelo Iphan e as práticas retomaram o olhar exclusivista aos monumentos.

No documento O samba de roda na gira do patrimônio (páginas 76-80)