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Capítulo II – O percurso espiritual de Madre Teresa de Calcutá

1. A luz de um Deus presente/próximo

1.3. O chamamento de 1946 e o crescendo de consolações

A partir de 10 de Setembro de 1946, quatro anos depois ter assumido o voto privado, Madre Teresa foi experimentando poderosos encontros místicos que haveriam de a surpreender com uma nova missão para a sua vida. Aquilo que discerniu como tendo sido comunicações explícitas da parte de Jesus implicaria nada menos que abandonar a comunidade do Loreto para dar início a uma nova congregação religiosa.207 Na correspondência que foi mantendo com o bispo de Calcutá, onde expõe os acontecimentos ligados a esta intervenção divina, podemos perceber melhor o que de misterioso ali se passou e a clareza com que Madre Teresa percecionava a proximidade de Jesus e os Seus pedidos:

“Certo dia, ao receber a Sagrada Comunhão, ouvi a mesma voz com grande clareza - «Quero

204 Da Madre Teresa para o Arcebispo Périer, 25 de Janeiro de 1947. B. KOLODIEJCHUK (Ed.), Madre Teresa:

Vem, sê a minha Luz, 75.

205 Quando já experimentava uma grande escuridão espiritual, Madre Teresa reconhece a importância vital que

tinha o voto secreto: “quando por vezes a escuridão é muito negra – e eu estou à beira – de dizer «não a Deus» a recordação dessa promessa retém-me.” (Da Madre Teresa para o Padre Neuner, provavelmente no retiro de Abril de 1961. B. KOLODIEJCHUK (Ed.), Madre Teresa: Vem, sê a minha Luz, 217.)

206 Cf. B. KOLODIEJCHUK (Ed.), Madre Teresa: Vem, sê a minha Luz, 56.

207 Cf. B. KOLODIEJCHUK (Ed.), Madre Teresa: Vem, sê a minha Luz, 57-63; Cf. T. MESSIAS, O Desejo e a

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freiras indianas, Vítimas do Meu amor, que sejam Maria e Marta. Que estejam de tal maneira unidas a Mim, que façam irradiar amor para as almas. Quero freiras Livres, tapadas com a Minha pobreza na Cruz – Quero freiras obedientes, tapadas com a Minha obediência na Cruz. Quero freiras cheias de amor tapadas com a Caridade da Cruz. Vais recusar-te a fazer isto por Mim?» E noutro dia. […] «Tens medo de dar mais um passo pelo teu Esposo – por Mim – pelas almas? […] Tu não morreste pelas almas – é por isso que não te importa o que lhes aconteça. – O teu coração nunca esteve mergulhado em dor como esteve o de Minha Mãe. Ambos nos demos totalmente pelas almas – e tu? Tens medo de perder a tua vocação – de vires a ser secular – de te faltar perseverança. – Não tenhas – a tua vocação é amar e sofrer e salvar almas e, dando este passo, satisfarás o desejo que o Meu Coração tem de ti – É essa a tua vocação.» Tentei convencer Nosso Senhor de que tentaria tornar-me uma freira de

Loreto fervorosamente santa, uma verdadeira Vítima nesta vocação – mas a resposta foi novamente muito clara. «Quero missionárias Irmãs da Caridade indianas- que sejam o fogo

do Meu amor entre os muitos pobres. […] Bem sei que és a pessoa mais incapaz, fraca e pecadora, mas é precisamente por seres isso tudo que Eu quero usar-te, para a Minha Glória! Vais recusar-te?». […] A ideia de comer, dormir – viver como os indianos encheu-me de

medo. […] Pedi a Maria Nossa Mãe que pedisse a Jesus que afastasse tudo isto de mim. Quanto mais rezava – mais clara a voz se tornava dentro do meu coração, de maneira que comecei a rezar para que Ele fizesse comigo tudo o que quisesse. Depois a voz tornou a ser muito clara - «Estás sempre a dizer ‘faz comigo tudo o que quiseres’. E agora eu quero agir –

deixa-Me fazê-lo – Minha pequena Esposa – Minha pequenina. – Não tenhas medo – Eu estarei sempre contigo.”208

A descrição que Madre Teresa faz dos diálogos que experimentava com Jesus, essa Voz que dizia escutar, não deixa de impressionar pela nitidez e certeza com que o sentia. Ao longo da carta vai mesmo descrevendo aquilo que escutava com expressões como “clareza”, “muito clara” ou “mais clara”. Outro dado altamente relevante é o facto de haver uma pergunta recorrente da parte de Jesus: “Vais recusar-te?” É como se Jesus fizesse eco do voto secreto, assumido há quatro anos atrás por Madre Teresa. Como é natural, a insistência daquela pergunta teve um efeito particularmente impulsionador no seu interior. Deus tinha-a levado tão a sério nesse seu compromisso que agora a desafiava para algo mais: “Dia após dia, hora após hora, Ele faz-me a mesma pergunta: «Vais recusar-te a fazer isto por

208 Da Madre Teresa ao Arcebispo Périer, 13 de Janeiro de 1947. B. KOLODIEJCHUK (Ed.), Madre Teresa:

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Mim?»”209 Aquela que se tinha comprometido a nada recusar a Deus, compreendia que Ele a escutara e punha-a agora à prova.

É fundamental, para o desenrolar da nossa investigação, atender ao que Jesus aponta como sendo a raiz da nova vocação de Teresa. Efetivamente, tudo aquilo que esta religiosa virá a experimentar, exterior ou interiormente, tem também de ser visto à luz deste carisma que Deus propõe. Jesus pede-lhe pessoas que sejam “vítimas do Meu amor” e diz-lhe que “a tua vocação é amar e sofrer e salvar almas.” Jesus quer Irmãs “que sejam fogo do Meu amor entre os muito pobres […] que ofereçam a sua vida como vítimas do Meu amor.”210 Se assim é, significa que a dimensão vitimal é o centro do que Jesus realmente deseja. Madre Teresa ainda tenta convencer Jesus a permanecer no Loreto como “verdadeira vítima” em vez de largar a congregação. Essa tentativa, ainda que não aceite, demonstra claramente que a decisão de viver como “vítima” era algo já assumido por si. Mais uma vez, observamos uma profunda ligação ao voto secreto de 1942. Ou não terá sido ele, na lógica de uma resposta adequada à experiência de se sentir infinitamente amada por Deus, uma verdadeira entrega vitimal? A este propósito penso ser pertinente o que refere Teresa Messias:

“Parece-me claro que a palavra vítima não expressa em Teresa de Calcutá qualquer tipo de apetência dolorista, constituindo antes o modo apropriado de exercer a reciprocidade face ao amor de Jesus. É um chamamento à “des-limitação” do desejo, a viver a resposta de amor a Deus, em Cristo, sem limites nem condições, baseada na confiança total. Só a experiência de um amor total permite uma resposta que arrisca a confiança total.”211

Durante este período, até ao momento de abandonar o Loreto para iniciar a nova

209 Da Madre Teresa ao Arcebispo Périer, 30 de Março de 1947. B. KOLODIEJCHUK (Ed.), Madre Teresa:

Vem, sê a minha Luz, 82.

210 Da Madre Teresa ao Arcebispo Périer, 13 de Janeiro de 1947. B. KOLODIEJCHUK (Ed.), Madre Teresa:

Vem, sê a minha Luz, 65-66.

211 T. MESSIAS, O Desejo e a sua Transformação no Seguimento de Jesus – Uma Leitura dos Escritos de

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missão, Madre Teresa foi experimentando uma série locuções e visões212 e, acima de tudo, uma intensa união com Deus. Ainda assim, por muito certa que estivesse destes fenómenos como sendo de origem divina, Madre Teresa nunca lhes conferiu grande importância ou viu nelas a razão da sua entrega amorosa. É a própria que admite que não foi por causa das vozes ou visões “que a minha vida se alterou. Elas ajudaram-me a ter mais confiança e a aproximar- me mais de Deus. Fizeram aumentar o meu desejo de ser cada vez mais a Sua menina pequenina. […] O meu desejo de me imolar é tão forte com o era antes de elas virem.”213 O seu diretor espiritual, o Padre Van Exem, referindo-se à vida espiritual de Madre Teresa durante estes acontecimentos, descreve o seguinte:

“Eu sabia que Nosso Senhor tinha elevado aquela freira a um estado superior de oração; talvez não tenha havido propriamente o êxtase, mas o estado imediatamente anterior ao êxtase214 fora

atingido. O estado de êxtase pode ser atingido muito cedo, dado que a união com Nosso Senhor tem sido permanente, e de tal maneira profunda e violenta, que o arrebatamento não parece estar muito longe.”215

Esta perceção de que estaria a experimentar níveis superiores de oração e comunhão com Deus é reconhecido pela própria Madre Teresa. Anos mais tarde, recordando o período de tempo em que esteve instalada em Asansol216, refere: “[…] ali foi como se Nosso Senhor

212 Numa carta dirigida ao Arcebispo Périer, no final de 1947, Madre Teresa acaba por revelar a experiência de

três visões. A primeira foi a de uma grande multidão de gente muito pobre que erguiam as suas mãos e pediam a Madre Teresa para os salvar e levar-lhes Jesus. A segunda visão consistiu na mesma multidão e de Nossa Senhora, que estando virada para eles pedia a Madre Teresa para cuidar deles, para lhes levar Jesus, para lhes ensinar o Rosário em família, assegurando que ela e o Seu Filho estariam sempre perto. Durante a terceira visão, tinha diante de si a mesma multidão, Jesus na Cruz, Nossa Senhora ao lado da Cruz e com a sua mão esquerda pousada no ombro esquerdo de Madre Teresa e a outra apertando o seu braço direito. Ouviu, então, Nosso Senhor relembrar-lhe que Ele, a Sua Mãe e aquela multidão lhe tinham pedido para avançar na nova missão. No final ainda lhe lançou a pergunta que a fazia estremecer por dentro, se ela iria recusar tal pedido. (Cf. B. KOLODIEJCHUK (Ed.), Madre Teresa: Vem, sê a minha Luz, 111-112.)

213 Da Madre Teresa para o Padre Van Exem, 19 de Outubro de 1947. B. KOLODIEJCHUK (Ed.), Madre

Teresa: Vem, sê a minha Luz, 101-102.

214 “No contexto da vida espiritual, o êxtase é um fenómeno místico em que a mente se fixa em Deus ou em

algum tema religioso, ao mesmo tempo que é interrompida a normal atividade dos sentidos; a experiência pode ser acompanhada por uma alegria intensa e por visões.” (B. KOLODIEJCHUK (Ed.), Madre Teresa: Vem, sê a

minha Luz, nota do editor i, 97.)

215 Do Padre Van Exem para o Arcebispo Périer, 8 de Agosto de 1947. B. KOLODIEJCHUK (Ed.), Madre

Teresa: Vem, sê a minha Luz, 97.

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Se me tivesse entregado – por inteiro. A doçura e a consolação e a união daqueles 6 meses – passaram depressa de mais.”217 E noutra ocasião recordava assim este período prévio à nova missão: “Havia tanta união – amor – fé – confiança – oração – sacrifício.”218 Não há dúvida que Madre Teresa vivia momentos de grande luz na sua relação com Deus. É até provável que tenha chegado a experimentar o estado místico do êxtase. A clarividência com que Teresa sentia a proximidade de Deus era tal que, quando olhamos para aquilo que teve de passar posteriormente, torna-se ainda mais avassalador. O mesmo Deus que aqui, amorosamente Se lhe entregava totalmente, anos mais tarde, aparentará tê-la abandonado por completo e não mais desejá-la.

É novamente o seu diretor espiritual que desvenda a intensidade do que se passava por esta altura na vida de Madre Teresa: “A atração pelo Santíssimo Sacramento era por vezes tão intensa. […] Noite após noite, o sono desaparecia – só para passar aquelas horas ansiando pela chegada d’Ele.”219 O desejo de se unir ao Seu Amado adquiria traços de tanto fervor que eram quase impossíveis de conter. S. João da Cruz descreve bem o estado de alguém que é alvo de uma proximidade tão invulgar da parte de Deus: “O efeito […] que fazem na alma é a quietude, a iluminação, a alegria à maneira de glória, suavidade, limpidez e amor, humildade, e inclinação ou elevação do espírito em Deus.”220