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Capítulo 2 – Da denúncia à causa: novos atores e a política do conflito

II. O clamor de Irene ecoa muito além de Sobral

Irene grita por justiça

Conforme discutido no capítulo anterior, a morte de Damião nas dependências da Casa de Repouso Guararapes (CRG), com fortes indícios de que fora submetido a maus-tratos e negligência por parte dos membros do corpo técnico do hospital, foi o motor inicial ou o fato gerador do conflito vivido por Irene, mas não o único combustível a incensá-lo. O atestado de óbito indicando que a morte de seu irmão decorria de causa natural contribuiu decisivamente para o escalonamento do conflito e a decisão de fazer algo a respeito, transformando a morte de seu irmão no estopim de sua luta por justiça.

Além disso, o fato de o hospital pertencer a um primo do prefeito da cidade acendeu os alertas críticos de Irene. Aos seus olhos (e de algumas das pessoas que a aconselharam), esse era um indicativo de que interesses político-familiares poderiam determinar o rumo do caso e minar qualquer perspectiva de responsabilização. E, embora a necropsia realizada em Fortaleza, a pedido da família, tenha sido inconclusiva, deixando Irene sem elementos materiais para comprovar a tese de que Damião havia morrido de causa não natural, ela conhecia o problema sistemático da violência praticada em instituições de saúde mental, de um modo geral, e na CRG, em particular, e sentia que não podia ficar passiva diante dos acontecimentos.

Porém, um elemento parece ter sido determinante no rumo que a atuação de Irene tomou desde o início: o fato de que a polícia da cidade se mostrou “desinteressada” em investigar prontamente o ocorrido, a despeito do que foi narrado por sua mãe e seu marido. Com efeito, a

9 Nesse sentido, são emblemáticas as palavras de Boltanski e Thévenot: “ao enfatizar o processo de justificação, queremos levar a sério a questão da legitimidade do acordo, mais do que recorrer a uma explicação exclusivamente formatada em termos de contingência, dissimulação ou força” (Boltanski e Thévenot, 1999, p. 364 – tradução minha).

polícia foi a primeira alternativa de ação cogitada por Irene, logo após receber a notícia da morte de Damião, mas o fato de a autoridade policial não ter adotado qualquer linha de atuação contrária à tese de morte natural, reforçada pelo fato de que o perito legista era o mesmo diretor clínico da CRG (que inclusive assinara o atestado), evidenciava para Irene a concretude das barreiras que poderiam se interpor à apuração das circunstâncias da morte de seu irmão.

Assim, apesar dos riscos envolvidos ao desafiar pessoas inseridas nas redes do poder local, e mesmo tendo sido frequentemente desencorajada com palavras como “isso não dá em nada, porque houve muitos outros casos [...] eles abafam, e continua, e não vai dar em nada [...]”,10 Irene passou a “gritar por justiça”. Contra a inércia do órgão que representava a porta

de entrada para o sistema de justiça e frente à certeza quanto à natureza criminosa da morte de Damião, ela optou por denunciar publicamente o ocorrido, enviando cartas-denúncia a diferentes órgãos e entidades de atuação regional, nacional e internacional. Seu objetivo era tornar os fatos públicos, divulgando não apenas as condições envolvidas na morte de seu irmão, mas também o evidente empenho dos envolvidos em deixar a situação impune. Conforme declarou:

Eu estava atirando para todos os lados. [...] Mandei denúncia para todos os lugares [...] Foi assim que eu consegui achar aliados. Eu saí espalhando para todo lado! [...] Onde eu podia chegar, eu ia pedindo ajuda. Eu estava desesperada por justiça [...] Não é só o caso do meu irmão. Quantos casos já aconteceram no Guararapes e ficaram no anonimato? (Irene Ximenes – declaração em entrevista concedida à autora).

Ao repetir sua denúncia inúmeras vezes, para diferentes destinatários, Irene também fazia com que a morte de Damião permanecesse como um fato atual, vivo, capaz de despertar a indignação e a solidariedade das pessoas em diferentes âmbitos. Esse era um meio de construir simbolicamente “um tempo de urgência” para o caso (BARREIRA, 2001), em face das dificuldades anunciadas, aumentando, assim, a pressão sobre os órgãos competentes.

Embora estivesse buscando todo o tipo de apoio que pudesse encontrar, é possível observar que Irene e sua família direcionaram denúncias para três destinatários principais: órgãos da administração pública, entidades da sociedade e organismos internacionais. Assim, poucos dias após a morte de Damião, no dia 13 de outubro, D. Albertina apresentou denúncia contra a CRG à Coordenação Municipal de Controle, Avaliação e Auditoria da Secretaria de

Saúde e Assistência Social de Sobral,11 gestora dos recursos do SUS descentralizados ao

município e do convênio com o hospital. De sua parte, Irene enviou por e-mail cartas-denúncia a outros órgãos e autoridades com competência na área de saúde, a saber: a Coordenação de Saúde Mental da Secretaria de Saúde do Estado do Ceará, os Conselhos Nacional e Estadual de Saúde, a Ouvidoria do Estado do Ceará, o Governador do Estado, o Ministro da Saúde e até o Presidente da República. No âmbito da justiça, foram remetidas cartas-denúncia para a Secretaria de Segurança Pública e Defesa da Cidadania do Ceará, a Procuradoria Geral do Estado, o Ministério Público Estadual, a Procuradoria da República e o Ministro da Justiça. Quanto aos órgãos de defesa dos direitos humanos, cartas-denúncia foram remetidas para a Comissão Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Ceará (CDHC/ALEC) e a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados.

No que se refere às entidades da sociedade, denúncias foram remetidas aos Conselhos Federal e Regional de Medicina, ao Conselho Regional de Enfermagem, ao Conselho Federal de Psicologia, à Coordenação do Movimento dos Trabalhadores do Ceará em Defesa da Reforma Psiquiátrica e ao Fórum pela Saúde Pública. Irene ainda enviou denúncias a vários políticos, entre deputados estaduais, deputados federais e senadores. No que se refere a órgãos e entidades atuantes no plano internacional, Irene remeteu cartas-denúncia para a Anistia Internacional e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da OEA.

A maior parte das cartas de Irene restou sem resposta. Do total de 389 deputados federais contatados, por exemplo, apenas seis lhe responderam, um “retorno quase nulo”.12 No entanto,

algumas medidas foram tomadas na sequência de suas denúncias, cabendo destacar as mais relevantes:

• a Secretaria Municipal de Saúde e Assistência Social de Sobral, por meio de seu sistema de controle e avaliação, instaurou, em 18/10/1999, Comissão de Inquérito Administrativo da Saúde para apurar, no prazo de 60 dias, a causa do óbito de Damião, a qualidade da assistência que lhe foi prestada e as condições de funcionamento da CRG, entre outros aspectos.13 Nesse período, a vigilância sanitária e o sistema de auditoria municipais

11 Dossiê do Caso Damião Ximenes Vs. Brasil, pp. 174-175 (denúncia, constante dos anexos da Demanda da CIDH).

12 Declaração de Irene em entrevista concedida à autora.

13 Dossiê do Caso Damião Ximenes Vs. Brasil, pp. 1.009 (portaria municipal, constante dos anexos do Escrito de solicitações, argumentos e provas dos representantes).

realizaram visitas de inspeção e supervisão da CRG, tendo sido realizada ainda uma avaliação dos serviços psiquiátricos prestados pelo hospital;14

• o Grupo de Acompanhamento e Avaliação da Assistência Psiquiátrica Hospitalar – GAPH/CE, vinculado à Comissão Estadual de Saúde Mental, da Secretaria Estadual de Saúde do Ceará, realizou visita à CRG, em 05/11/1999. Além de inspecionar as dependências do hospital, o grupo ouviu internos, tendo constatado ausência de gerenciamento e de condições de funcionamento da CRG. Assim, seu relatório sugeriu, em razão da posição estratégica do hospital, a sua intervenção, ou o seu descredenciamento pelo SUS. No que se refere à morte de Damião, foram relatadas evidências de maus-tratos e assistência precária;15

• o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos (CEDH) e a Ouvidoria do Estado do Ceará também acionaram os diversos órgãos estaduais para encaminhamento do caso. Adicionalmente, o CEDH realizou reunião ordinária descentralizada em Sobral, em 8/11/1999, durante a qual o caso Damião Ximenes foi extensamente discutido entre os conselheiros e seus convidados, entre os quais havia familiares de vítimas de violência na CRG (Irene e D. Albertina estavam presentes) e várias autoridades municipais, como o secretário municipal de saúde e o promotor de justiça;

• o representante do Ministério Público (MP), ao tomar conhecimento do caso durante a reunião do CEDH, apresentou requisição imediata à autoridade policial para instauração de procedimento investigatório, o que ocorreu em 9/11/1999;16

• a Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Ceará (CDHC/ALEC) acionou diversos órgãos e entidades, cobrando a adoção das medidas cabíveis. Além disso, promoveu, em 10/11/1999, em Sobral, uma audiência pública para discutir o atendimento em saúde mental no Ceará, da qual participaram 24 entidades, além de deputados estaduais, médicos psiquiatras, operadores jurídicos e familiares de usuários

14 Dossiê do Caso Damião Ximenes Vs. Brasil, pp. 1.551-1.553 (termo de inspeção, constante dos anexos da Contestação do Estado brasileiro). É importante registrar que Irene coletou, por iniciativa própria, depoimentos de familiares de pessoas que estiveram internadas na CRG para encaminhar à Comissão de Sindicância, conforme declarou Irene em entrevista. Por meio deste estratagema, colheu vários relatos de violência e abuso sexual praticados dentro da CRG contra seus pacientes internos. Posteriormente, ainda fez circular um abaixo-assinado pedindo a interdição da CRG.

15 Dossiê do Caso Damião Ximenes Vs. Brasil, pp. 119-155 (relatório de visita, constante dos anexos da Demanda da CIDH).

dos serviços de saúde mental.17 Durante a sessão, Irene voltou a denunciar o ocorrido com

seu irmão e, ao fim da audiência, os participantes elaboraram um documento a favor da intervenção na CRG;

• o Conselho Regional de Enfermagem do Ceará (Coren/CE) realizou visita à CRG, em 18/11/1999, com o propósito de averiguar a denúncia recebida do CDHC/ALEC;

• mediante denúncia protocolada pessoalmente por Irene, em 31/01/2000, o Conselho Regional de Medicina do Ceará (CRM/CE) instaurou processo ético-profissional para apurar a conduta e a responsabilidade do diretor clínico da CRG.

A sindicância municipal se estendeu até 18/02/2000 e constatou que a CRG de fato não funcionava em conformidade com a legislação sanitária pertinente, tendo inclusive identificado evidências de tortura, maus-tratos e abuso sexual dos internos. Embora não tenha atestado que a morte de Damião decorreu de violência perpetrada por pacientes ou funcionários do hospital, o relatório final sugeriu o descredenciamento do hospital. 18

Com base nas recomendações desse relatório, o Conselho Municipal de Saúde deliberou pela intervenção na CRG, decisão que foi seguida pela Secretaria Municipal de Saúde e Assistência Social, que, em 2/03/2000, decretou a intervenção técnica e administrativa por um período inicial de 90 dias.19 Nesse ínterim, uma nova visita do GAPH/CE, realizada em

12/05/2000, para verificar as condições técnico-administrativas operacionais após a intervenção, indicou algumas correções a serem implementadas e sugeriu, entre outras coisas, a prorrogação da intervenção pelo tempo que se fizesse necessário, o afastamento dos funcionários envolvidos em episódios de violência e a reformulação do projeto terapêutico do hospital-dia. A despeito das ações implantadas pela junta interventora,20 em 10/07/2000 a CRG

foi definitivamente descredenciada como prestadora de serviços psiquiátricos hospitalares para o SUS.21

17 Dossiê do Caso Damião Ximenes Vs. Brasil, pp. 1.017-1.027 (matérias jornalísticas e ofício da CDHC/ALEC, constantes dos anexos do Escrito de solicitações, argumentos e provas dos representantes).

18 Dossiê do Caso Damião Ximenes Vs. Brasil, pp. 185-212 (relatório de sindicância, constante dos anexos da Demanda da CIDH).

19 Dossiê do Caso Damião Ximenes Vs. Brasil, pp. 1.421-1.426 (portaria municipal, constante dos anexos da Contestação do Estado brasileiro).

20 Dossiê do Caso Damião Ximenes Vs. Brasil, pp. 01175-01183 (relatório de intervenção, constante dos anexos do Escrito de solicitações, argumentos e provas dos representantes).

21 Dossiê do Caso Damião Ximenes Vs. Brasil, pp. 01225-01227 (portaria municipal, constante dos anexos da Demanda da CIDH).

No âmbito da ação penal, o inquérito instaurado no início de novembro de 1999 seguiu um tortuoso caminho. Após a fase inicial de oitivas (incluindo Irene e D. Albertina, os supostos envolvidos na morte de Damião, as testemunhas dos fatos e parentes de ex-internos), em 25/02/2000 foi concluída a investigação policial.22 Em 27/03/2000, o promotor de justiça de

Sobral ofereceu denúncia contra o dono da CRG, uma enfermeira, um auxiliar de enfermagem e um auxiliar de pátio. A denúncia do MP, além de não incluir o diretor clínico da CRG e os demais profissionais de enfermagem supostamente envolvidos na morte de Damião, enquadrou os fatos como delito de maus-tratos resultando em morte (tipificado no artigo 136, parágrafo 2º do Código Penal Brasileiro), e não como homicídio culposo.

A instrução penal na Justiça teve início, mas, mediante denúncia de Irene, apoiada pela CDHC/ALEC e pelos resultados dos procedimentos investigativos de natureza administrativa, que apontaram conivência do diretor clínico da CRG com as agressões e abusos praticados por funcionários do hospital, o Centro de Apoio Operacional dos Grupos Socialmente Discriminados, da Procuradoria Geral de Justiça do estado, oficiou o promotor de Sobral, em 25/05/2000, recomendando o aditamento da denúncia criminal para incluir outras pessoas, entre as quais dois médicos, um dos quais o diretor clínico.

Conquanto Irene e sua família tenham se mobilizado para que o aditamento da denúncia acontecesse (o que incluiu até mesmo a nomeação de D. Albertina como assistente do MP na ação penal), a medida só aconteceu três anos depois, em 2003. A esta altura, todos os depoentes já tinham sido ouvidos, o corpo de Damião já havia sido submetido a prova pericial por meio de exumação e a instrução processual havia finalizado (em 9/12/2002). Em 24/09/2003, ao apresentar suas alegações finais, o MP por fim solicitou o aditamento da denúncia, para incluir o diretor clínico da CRG e um enfermeiro. Contudo, o processo judicial foi dado como concluso para sentença em novembro daquele, sem que o juiz houvesse se manifestado a propósito do

22 Outra atitude de Irene ainda teve importância em termos da repercussão do caso no âmbito policial. Em janeiro de 2000, ela flagrou omissão de provas no inquérito, o que resultava na ausência de alguns dos depoimentos feitos à autoridade policial e não encaminhados ao MP (Dossiê do Caso Damião Ximenes Vs. Brasil, pp. 01084-01085; carta, constante dos anexos do Escrito de solicitações, argumentos e provas dos representantes). Além de pressionar o delegado, que então juntou as peças ao inquérito, ela denunciou o episódio ao então Dep. João Alfredo. O fato foi comunicado pelo deputado a outras autoridades e, em abril de 2000, o MPE requisitou à Secretaria de Segurança Pública e Defesa da Cidadania do Estado do Ceará a instauração de procedimento disciplinar para apurar a conduta do delegado responsável pelas investigações (Dossiê do Caso Damião Ximenes Vs. Brasil, pp. 01221-01222; ofício, constante dos anexos do Escrito de solicitações, argumentos e provas dos representantes).

pedido de aditamento. Isso só viria a acontecer sete meses depois, em junho de 2004. Com isso, teve início uma nova etapa de instrução processual.23

Em novembro de 2005, mais de um ano e cinco meses depois de recebido o pedido de aditamento da denúncia, finaliza-se a oitiva dos dois novos acusados, das testemunhas da defesa e das cinco novas testemunhas da acusação. Assim, a ação estava apta a ser julgada. A esta altura, contudo, o caso já havia sido remetido à Corte Interamericana e se anunciava para os meses seguintes a deliberação do Tribunal internacional a respeito do caso. A ação penal na Justiça brasileira ficou, em termos práticos, suspensa, aguardando esse encaminhamento.

Quanto à ação de indenização proposta, em 6/07/2000, por D. Albertina, em desfavor da CRG, de seu proprietário e de seu diretor clínico, o caminho também foi tumultuado. Após uma tentativa de conciliação malsucedida, em 2001, e um longo período sem qualquer movimentação, em agosto de 2003 a vara cível suspendeu a tramitação da ação, condicionando seu prosseguimento ao julgamento da ação penal. Até o proferimento da sentença do caso pela Corte Interamericana, nenhuma novidade havia sido registrada em relação ao encaminhamento da ação de reparação cível.

A denúncia de Irene

As medidas inicialmente adotadas pelos diferentes órgãos e entidades acionados por Irene e sua família vieram, em alguma medida, responder a sua denúncia. Nesse sentido, o relato dos fatos envolvidos na morte de Damião, indicando as pessoas imputadas como responsáveis e apresentando sua demanda de justiça, produziram o esperado efeito de convocar setores da opinião pública a adotar algum posicionamento a respeito. Assim, revisito a seguir algumas das passagens da denúncia pública de Irene, com o objetivo de analisar a delimitação discursiva que ela promoveu dos fatos e, ao mesmo tempo, as manobras argumentativas que adotou para definir o escopo do caso. Embora o conteúdo das muitas cartas remetidas por Irene tenha variado um pouco, seu teor geral era sempre o mesmo. Tomo como referência uma das

23 Dada a demora do caso na instância judicial, é interessante destacar o teor de uma das manifestações do juiz da 3ª Vara da Comarca de Sobral nos autos do processo. Em despacho proferido ao redesignar audiência em razão da ausência dos advogados dos réus na data inicialmente definida, o juiz pontua que a demora do trâmite processual se devia, entre outras coisas, à “complexidade dos fatos” e às sucessivas manifestações nos autos de entidades ligadas aos direitos humanos”: “A complexidade dos fatos, o elevado número de acusados e, sobretudo, as sucessivas manifestações nos autos de entidades ligadas aos direitos humanos têm retardado a solução da controvérsia. Os expedientes necessários à correta tramitação do processo sequer têm sido realizados como deveriam” (Dossiê do Caso Damião Ximenes Vs. Brasil, pp. 02254-02255, despacho, constante dos anexos da Contestação do Estado brasileiro).

versões do documento, aparentemente uma variante mais elaborada, e não a que foi remetida logo de início a alguns dos órgãos e entidades listados anteriormente.24

A primeira coisa a observar é que Irene, na condição de denunciante, escreve o texto em seu próprio nome, em linguagem comum, sem emprego de termos jurídicos ou referência a qualquer apoio institucional. Em linhas gerais, ela aposta na força do discurso em primeira pessoa e em seu poder de provocar a empatia em seus destinatários; ainda assim, inicia sua carta-denúncia de maneira eloquente:

CLAMO JUSTIÇA! JUSTIÇA!!!

Quero que toda a imprensa, que todos os órgãos e entidades que defendem os direitos humanos, que todos aqueles que têm coração humano e são a favor da justiça, tomem conhecimento desta denúncia e ajudem-me a fazer justiça na morte de meu irmão. Meu irmão Damião foi morto segunda-feira, dia quatro de outubro de 1999, em Sobral, Ceará, na Casa de Repouso Guararapes, digo melhor, Casa de Tortura (PEREIRA, 2001, p. 130).

Como indicaram Boltanski e seus colaboradores (BOLTANSKI et al., 1984), quando as pessoas apresentam denúncias na ausência de apoio institucional, tendem a exagerar as manobras linguísticas. Irene, por exemplo, usa letras maiúsculas na abertura da carta, e fala em “clamor por justiça”, correndo o risco de ter sua denúncia desacreditada desde logo. Chama atenção o destaque que confere à palavra justiça, repetida em seu vocativo de abertura e acompanhada de seguidos pontos de exclamação. Como que para contrabalançar o tom emocional, Irene enuncia a justiça como seu objetivo maior, posicionando sua demanda em um patamar de universalidade que a desvincula de sua situação singular (e do laço próximo que mantinha com a vítima, apresentada em seguida) e ampliando suas chances de ser recebida como potencialmente meritória da atenção pública. Adicionalmente, ao repetir o termo e os sinais de pontuação, ela dramatiza o objetivo central de sua carta, performatizando em meio

24 Em razão da baixa qualidade da imagem digitalizada da carta constante do dossiê do caso no Sistema Interamericano, a versão considerada aqui é a que foi publicada no livro A instituição sinistra (Cf. Pereira, 2001, pp. 130-133). Com pequeníssimas variações, esta carta compõe o arquivo formado originalmente pela CDHC/ALEC e remetido ao Sistema Interamericano pelos representantes da peticionária (Dossiê do Caso Damião

Ximenes Vs. Brasil, pp. 01028-01029, constante dos anexos do Escrito de Solicitações, argumentos e provas dos

representantes), embora, pelo que pude observar, não se trate da carta efetivamente protocolada na comissão, na data de 28/10/1999 (id., pp. 974-975), nem da versão protocolada junto à CIDH, em 22/11/1999 (id., pp. 892-894). Aparentemente, a versão da carta em análise, foi protocolada, entre outros órgãos e entidades, no Instituto Philippe