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Os Xucuru entre a garantia formal e o reconhecimento social de seus direitos

Capítulo 1 – Conflito e crítica: entre a subjetividade e a invocação do social

III. Os Xucuru entre a garantia formal e o reconhecimento social de seus direitos

Diferentemente do caso de Irene, cujo conflito que motivou a busca por justiça teve origem em um fato específico e escalonou rapidamente à medida que acontecimentos correlatos sobrevieram, até atingir os contornos da denúncia levada ao Sistema Interamericano, o conflito que esteve na base da busca por justiça do Povo Xucuru apresenta configuração mais complexa, alongando-se no tempo e envolvendo múltiplos atores e diferentes dimensões, sendo tarefa difícil isolar analiticamente seus principais aspectos e reconstruir o caminho que conduziu à deflagração do caso que chegou à CIDH em 2002.

Ainda assim, algumas características merecem destaque. Uma delas diz respeito ao fato de que se trata de um conflito coletivo. Os Xucuru historicamente reivindicaram o direito ao território ancestral como uma dimensão central da preservação de sua identidade como povo e da especificidade de seu modo de vida, regido por valores e noções distintos daqueles da sociedade não indígena. Daí decorre outra característica de relevo: a luta pela demarcação do território colocou-se sempre no domínio da afirmação da identidade Xucuru e implicou o estabelecimento das fronteiras étnicas desse povo em relação à sociedade envolvente (FIALHO, 1992), cobrando desta o reconhecimento social, político e jurídico de seu valor.

Nessa luta, os Xucuru enfrentaram conflitos com diferentes grupos sociais, envolvendo não apenas aspectos fundiários, ligados ao domínio e ao uso livre do território para manutenção de suas atividades produtivas, mas também disputas relativas às condições de sua reprodução física e cultural, segundo usos, costumes e tradições próprios, conforme prega o texto constitucional brasileiro. Finalmente, não é demais destacar o fato de que os direitos territoriais dos povos indígenas do Brasil foram há muito formalmente garantidos pelo marco legal, competindo à União demarcar suas terras; isso fez com que o conflito dos Xucuru em torno da concretização desse direito também se estabelecesse dentro das e com as agências do Estado.

Direitos territoriais e conflito étnico

Inserida neste emaranhado contexto, a reivindicação dos Xucuru apoiou-se fundamentalmente nos marcos legais estabelecidos, os quais respaldam a relação que os povos indígenas têm com as terras de ocupação tradicional na noção de direito originário.16 Previsto

16 O fundamento do direito originário dos indígenas às terras que tradicionalmente ocupam é o indigenato. Trata- se de instituto jurídico que reconhece o caráter primário e congênito da posse territorial indígena, como direito

desde os tempos coloniais, esse direito penetrou a legislação do Brasil independente, por meio da Lei de Terras de 1850, e do período republicano, na forma da Lei de Terras dos Índios, de 1928. O Estatuto do Índio, sancionado em 1973 e ainda vigente, estabeleceu a categoria jurídica “terra indígena” e classificou em três grupos as áreas em que vivem os indígenas do país: i) terras indígenas tradicionalmente ocupadas; ii) áreas de domínio das comunidades indígenas (propriedades formalmente adquiridas pelos indígenas); iii) reservas indígenas (áreas doadas por terceiros, adquiridas ou desapropriadas pela União, mas destinadas à posse dos povos indígenas).

Em termos do desenho constitucional, o texto de 1934 foi o primeiro a prever, em seu artigo 129, o reconhecimento da posse indígena sobre as terras ocupadas em caráter permanente, tendo sido acompanhado nos mesmos termos pelas constituições seguintes. A carta de 1967 agregou a essa garantia o reconhecimento do direito dos indígenas ao usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades existentes nas terras de ocupação tradicional, conforme dispôs o artigo 186. Por sua vez, uma Emenda Constitucional de 1969 explicitou ainda mais esses direitos, especialmente ao declarar, no artigo 198, “a nulidade e a extinção dos efeitos jurídicos de qualquer natureza que tenham por objetivo o domínio, a posse ou a ocupação de terras habitadas pelos silvícolas”.

Entretanto, foi em 1988 que os direitos indígenas ganharam novo status constitucional, tornando-se objeto de um capítulo específico da nova Constituição Federal (Capítulo VIII, “Dos Índios”). Nesse contexto, ampliou-se consideravelmente o regime territorial indígena, com o detalhamento dos diversos aspectos da questão, incluindo o aproveitamento dos recursos naturais encontrados nos territórios. O texto constitucional manteve o instituto da posse

permanente da terra (e não de propriedade, que segue sendo da União), mas definiu o que são

“terras ocupadas pelos índios” e explicitou o fundamento histórico do direito indígena à terra (CUNHA, 2018). O artigo 231 assim determina:

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente

anterior à constituição do Estado, a quem cabe tão somente demarcar e declarar os limites dos territórios. José Afonso da Silva, consagrado constitucionalista brasileiro, registra que um alvará de 1º de abril de 1680, confirmado pela Lei de 6 de junho de 1755, firmou o instituto, estabelecendo que, nas terras outorgadas a particulares, seria sempre reservado o direito dos índios, primários e naturais senhores delas (SILVA, 2014, p. 873).

ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.17

§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

§ 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se à sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.

§ 3º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando- lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.

§ 4º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.

§ 5º É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, “ad referendum” do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco. § 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé.

§ 7º Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º.

A nova carta constitucional também inovou ao afirmar, em seu artigo 232, o direito dos indígenas de propor, sob a proteção do Ministério Público, ações judiciais para defender seus direitos e interesses, o que até então não lhes era reconhecido.18 Conforme enuncia o texto

constitucional:

17 Em 2009, durante o julgamento da ação popular que questionou a demarcação contínua da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, o Supremo Tribunal Federal aplicou a chamada “tese do marco temporal de ocupação indígena”, segundo o qual a expressão “terra que tradicionalmente ocupam”, constante do caput do artigo 231 da Constituição Federal, deveria ser lida como “terras que tradicionalmente ocupam na data de 5 de outubro de 1988”. Desde então, o debate jurídico sobre o impacto da referida tese tem sido intenso, e muitos analistas apontam que esta vem sendo interpretada como restritiva ao direito territorial indígena. Cf. Alcântara et al., 2018.

18 No regime tutelar vigente do início do século XX até 1988, toda atuação jurídica e/ou judicial em defesa dos direitos dos povos indígenas era tida como competência exclusiva do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), até 1967, quando foi extinto, ou da Fundação Nacional do Índio (Funai), a partir de então. Assim, não se reconhecia aos indígenas capacidade jurídica.

Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.

Nesse sentido, os princípios estabelecidos na Constituição Federal de 1988 passaram a funcionar como um importante suporte para a mobilização indígena pelo reconhecimento de seus territórios. Ademais, o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCTs) estabeleceu, em seu artigo 67, que a União deveria concluir a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir de outubro de 1988. Apesar desse prazo não ter sido cumprido, funcionou como instrumento de pressão dos povos indígenas na defesa de seus direitos. Assim é que 41,7% das terras indígenas do país foram homologadas entre o fim do governo de José Sarney e o de Fernando Collor, em 1992 (Cimi, 2019).19

Devo registrar que o novo texto constitucional suplantou, mas não revogou, o Estatuto do Índio, o que implica na vigência de uma legislação tutelar e assimilacionista sob um marco assegurador de direitos. É a norma infraconstitucional que detalha o regime territorial, estabelecendo que a demarcação das terras indígenas deve seguir um processo administrativo instituído por iniciativa e sob orientação da Fundação Nacional do Índio (Funai) e cujo formato deve obedecer à regulamentação específica. Ou seja, o regime territorial indígena é regulado simultaneamente pelos dispositivos presentes na Constituição de 1988, no Estatuto do Índio e no decreto que rege o procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas (TI), sob a égide da primeira.20

Uma vez aprovada a nova carta constitucional, povos indígenas dos vários cantos do país mobilizaram-se para fazer valer seus direitos. Não foi diferente com o Povo Xucuru do Ororubá. De fato, a reivindicação dos Xucuru era antiga, mas até o fim dos anos 1980 não havia logrado sucesso. Na década de 1950, por exemplo, a comunidade fora oficialmente reconhecida

19 O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) estima em 1.296 as terras indígenas existentes atualmente no Brasil. Destas, 30,9% já foram demarcadas e estão devidamente registradas, 23,1% encontram-se em alguma das etapas do procedimento demarcatório, 5,0% enquadram-se em outras categorias que não a de terra tradicional (reservas indígenas, terras dominais e áreas interditadas pela Funai, conforme prevê o Estatuto do Índio) e 40,9% são casos em que ainda não houve qualquer providência do Estado no sentido da demarcação. Disponível em: <https://cimi.org.br/terras-indigenas/>. Acessado em: agosto de 2019. À exceção do total de terras indígenas no país, os demais dados do Cimi não são muito distantes daqueles da Funai. Segundo a entidade federal, há 440 TIs regularizadas no Brasil e cerca de 240 em outras fases do processo demarcatório. Disponível em: <http://www.funai.gov.br/index.php/indios-no-brasil/terras-indigenas>. Acessado em: agosto de 2019.

20 Atualmente, o processo administrativo de demarcação é regulamentado pelo o Decreto nº 1.775, que está em vigor desde janeiro de 1996.

pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI), tendo sido implantado na região um posto do órgão tutelar, mas isso não surtiu efeito em termos da garantia do território.

Seu caso se insere no difícil problema do reconhecimento da presença histórica e contínua de indígenas no Nordeste brasileiro. Embora a Região Nordeste reúna 25,5% dos índios do país, concentrando a segunda maior população indígena depois da Amazônia (IBGE, 2012), essa presença é correntemente invisibilizada nas percepções de senso comum. Em grande medida, a visão prevalente ainda hoje no país sobre o indígena é a que se constrói a partir de uma imagem (romantizada) dos índios amazônicos, como silvícolas isolados da sociedade envolvente. Dessa maneira, os índios do Nordeste não seriam índios “de fato”. João Pacheco de Oliveira (1998a) compara as situações desses povos com os indígenas amazônicos nos seguintes termos:

Dadas as características e a cronologia da expansão das fronteiras na Amazônia, os povos indígenas detêm parte significativa de seus territórios e nichos ecológicos, enquanto no Nordeste tais áreas foram incorporadas por fluxos colonizadores anteriores, não diferindo muito as suas posses atuais do padrão camponês e estando entremeadas à população regional. [...] Essa desproporção dá aos problemas e mobilizações dos povos indígenas na Amazônia uma importante dimensão ambiental e geopolítica, enquanto no Nordeste as questões se mantêm primordialmente nas esferas fundiária e de intervenção assistencial. Se, na Amazônia, a mais grave ameaça é a invasão dos territórios indígenas e a degradação de seus recursos ambientais, no caso do Nordeste, o desafio à ação indigenista é restabelecer os territórios indígenas, promovendo a retirada dos não índios das áreas indígenas, desnaturalizando a ‘mistura’ como única via de sobrevivência e cidadania (PACHECO DE OLIVEIRA, 1998a, p. 53).

Nessa trilha, os estudos históricos e antropológicos mais recentes têm mostrado que o fato de os povos indígenas residentes no Nordeste conviverem muito proximamente com as sociedades não indígenas, relacionando-se com elas tanto no que tange às atividades econômicas, quanto no que respeita à vida sociocultural mais ampla, não afeta necessariamente sua condição identitária. Assim, contra a representação hegemônica do desaparecimento desses povos com a extinção das aldeias coloniais no século XIX, consolida-se a tese de uma sobrevivência vinculada a relações interétnicas que, a despeito das mestiçagens e da baixa distintividade dos “índios misturados” (PACHECO DE OLIVEIRA, 1998a), não apagaram a identidade indígena.

Os Xucuru são um exemplo evidente das consequências práticas de uma situação em que a identidade étnica não é reconhecida pela sociedade abrangente. Sua presença na região do agreste pernambucano antecede a empresa colonial e está documentada desde a formação,

em 1661, de uma missão oratoriana e do Aldeamento do Ararobá de Nossa Senhora das Montanhas, na área onde hoje fica a cidade de Pesqueira. Foi em torno da missão e do aldeamento que se constituiu, no século XVIII, a Vila de Cimbres, que chegou a ser sede de comarca no século XIX e, posteriormente, foi sucedida pelo município atual, Pesqueira.21

A despeito desses fatos incontestes, a presença dos Xucuru foi se apagando simbolicamente. Com a extinção oficial do aldeamento em 1879, não apenas chegou ao fim a tutela governamental sobre os índios, como as terras foram entregues à Câmara de Regência local, para redistribuição a título de venda ou cessão a terceiros (FIALHO, 1992). Como sucedeu com os demais povos indígenas do Nordeste, os Xucuru foram crescentemente expulsos de suas terras e apenas uma parte deles permaneceu na área, constituindo núcleos distintos de “remanescentes” que passaram a trabalhar em seus sítios ou nas propriedades rurais que se formaram sobre o antigo aldeamento.

Enquanto isso, parte significativa migrou para o núcleo urbano que se constituía, onde se dispersou e foi paulatinamente “assimilada” à população local. Assim, seu grau de interação e “mistura” com a sociedade envolvente, de um lado, bem como sua relativa desconcentração no território tradicional, com algumas poucas famílias permanecendo nas terras do antigo aldeamento, de outro, contribuíram para a consolidação da percepção de que eram poucos os “remanescentes” Xucuru e de que a posse das áreas que ficaram sob seu domínio contemplava adequadamente sua demanda por terra.

Vânia Fialho (1992) relata a situação dos Xucuru no início dos anos 1990, quando realizou estudos na região.22 De maneira geral, a população de Pesqueira se referia aos

indígenas por meio da expressão genérica “caboclos”, equiparando-os aos demais trabalhadores rurais e negando a existência de uma identidade étnica diferenciada. A autora destaca, por exemplo, a maneira irônica por meio da qual um dos secretários municipais de Pesqueira se referiu à época à figura do Cacique Xicão, afirmando que até motorista de táxi já havia sido e “agora resolveu ser índio” (FIALHO, 1992, p. 75).

21 Dossiê do Caso Povo Indígena Xucuru e seus membros Vs. Brasil, pp. 335-336 (denúncia, constante dos anexos da Demanda).

22 Fialho atuou como antropóloga perita da Funai na fase inicial do processo administrativo de demarcação da Terra Indígena Xucuru, em 1989, sendo responsável pela coordenação do grupo técnico que realizou os estudos de identificação e delimitação do território. Esse trabalho e outros estudos desenvolvidos posteriormente com os Xucuru fomentaram sua dissertação de mestrado, fonte primordial de pesquisa para esta tese. Cf. Fialho, 1992.

Do lado dos Xucuru, a condição indígena tampouco era pacífica. Enquanto um grupo se mobilizava em torno da afirmação da identidade étnica e da garantia dos direitos sobre as terras tradicionais, outros não se diziam índios ou operavam com as categorias de distinção “caboclos” e “índios mais puros”. Assim, um dos entrevistados por Fialho declarou:

[...] aqui não tem índio puro, índio de sangue índio, tem não, é misturado porque você vê uma pessoa às vezes branco galego, é descendente de índio [...] e portanto que a nossa aldeia daqui é toda misturada, num tem índio puro, índio puro só tem lá pelo Amazonas, nos mundo de lá, e a raça que num se misturaram. [...] nem todo mundo aqui tirou carteira de índio, índia, não qué sê índio... (FIALHO, 1992, p. 151-152).

Nesse contexto de baixa distintividade, a própria Funai, encarregada da assistência aos indígenas, tinha dificuldade em “delimitar o universo que deveria atingir e definir seu objetivo de trabalho” (FIALHO, 1992, p. 2); seus funcionários, de maneira geral, comungavam de uma visão estereotipada sobre os índios, e alguns não acreditavam na legitimidade da identidade indígena naquela área, afirmando que ali não existiam mais índios. Um deles assim tratou da questão em declaração a um jornal da região:

Há muito folclore na problemática indígena. Não é como se imagina. Muitos deles não têm sangue das matas, chegando ao ridículo de usar cocares e enfeites comprados, porque eles não sabem fazer, nem dispõem de penas de ema por lá (FIALHO, 1992, p. 115).

Chamo atenção ainda para o fato de que o apagamento progressivo da presença dos Xucuru na região se inseria em uma história de conflitos fundiários em torno da área do antigo aldeamento indígena, nas montanhas da Serra do Ororubá (FIALHO, 1992; SILVA, 2008; MAGALHÃES, 2012). Esse conflito vinha de longa data e estava relacionado não apenas ao objetivo dos fazendeiros de expandir suas propriedades em uma região dominada por latifúndios, mas também ao interesse de se beneficiarem da fertilidade e do clima mais ameno das terras serranas, condições especialmente favoráveis para as atividades agropecuárias numa região caraterizada pelo clima predominantemente seco e com falta de chuvas (SILVA, 2008). A expulsão dos índios ou, no mínimo, a restrição de suas terras era, portanto, um objetivo partilhado por várias gerações de fazendeiros e oligarcas da região.

Mobilização política e posicionamento crítico dos Xucuru

O cenário histórico de invisibilização da identidade étnica dos “índios do Nordeste” foi rompido no contexto de sua mobilização política ao longo dos 1980, associada à perspectiva da redemocratização da ordem política e da elaboração de uma nova Constituição para o país. Às

reivindicações historicamente conhecidas, somaram-se mobilizações de povos indígenas que não eram sequer reconhecidos pelo órgão indigenista, nem estavam descritos na literatura etnológica; estudiosos chamam atenção, ainda, para uma espécie de “reinvenção” de etnias já reconhecidas, especialmente no Nordeste do país (PACHECO DE OLIVEIRA, 1998a).23

Naquele contexto, as reivindicações indígenas pela regularização dos territórios foram discursivamente associadas à garantia de sua sobrevivência econômica, social e cultural, assumindo um distintivo caráter de “afirmação da identidade étnica”:

[...] pleiteava-se o reconhecimento da identidade indígena para todos os grupos, independentemente, do seu ‘estágio de aculturação’. As comunidades indígenas do Nordeste, neste momento, tiveram um lugar de destaque, e a situação levou-os a entrar em contato com lideranças indígenas de todo o Brasil. Para a garantia da sobrevivência dos povos indígenas, fazia-se necessário que as terras fossem regularizadas (FIALHO, 1992, p. 90).

A mobilização dos Xucuru pelo direito territorial se inseriu nesse movimento mais amplo, sendo que “até o início da década de 1980, o povo era considerado pacífico e não reivindicava a demarcação de suas terras”.24 Posteriormente, algumas de suas lideranças

chegaram inclusive a se destacar na articulação nacional em prol dos direitos indígenas durante os debates constituintes (FIALHO, 1992; OLIVEIRA, 2006).

Outros dois elementos tiveram papel catalisador nesse movimento. O primeiro foi o início da atuação do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) junto à comunidade, a partir de