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Situações críticas, posicionamento e mediação social

Capítulo 1 – Conflito e crítica: entre a subjetividade e a invocação do social

I. Situações críticas, posicionamento e mediação social

O conflito tem sido tema constante na sociologia. A relevância é tamanha que já se identificou inclusive uma “tradição do conflito” entre as grandes linhagens da produção sociológica (COLLINS, 2009).1 Esta tradição se distinguiria pelo postulado de que a sociedade

consiste em conflito, na luta entre indivíduos e grupos pela imposição de seus interesses e pontos de vista. O conflito seria, portanto, o elemento mobilizador da dinâmica social; onde não está abertamente explicitado, vigorariam formas de dominação. Entre alguns dos representantes desta tradição são arrolados nomes como os de Marx e Engels, Weber, Simmel, Mannheim e os membros da Escola de Frankfurt.

De maneira geral, esses autores retratam o conflito como fenômeno observável no nível das relações entre indivíduos ou grupos, com implicações tangíveis no âmbito das interações. Mesmo para Weber, que sintetizou a ideia de que as relações sociais são informadas pelo

sentido que lhes é atribuído pelos indivíduos, o conflito seria compreendido enquanto expressão

objetivada de tensões decorrentes do pluralismo de interesses e perspectivas entre os indivíduos (WEBER, 1982; 1997). O mesmo se observa na sociologia simmeliana, na qual o conflito é concebido como “relação estrutural endêmica a qualquer forma social”, como uma forma de

1 Em seu esforço de identificação das linhas de desenvolvimento cumulativo na sociologia, a partir das contribuições específicas para o conhecimento na área, Randall Collins distinguiu quatro tradições sociológicas: a tradição do conflito, a tradição racional-utilitarista, a tradição durkheimiana e a tradição microinteracionista. A primeira chama atenção para a dinâmica da ideologia, as condições de mobilização dos grupos de interesse e a economia da cultura; a segunda alerta para a natureza limitada da capacidade humana de processar informações e os paradoxos da racionalidade e da escolha cognitiva; a terceira informa sobre a relação entre as crenças dos indivíduos e as ideias infundidas com o poder moral dos grupos a que pertencem; a quarta, por fim, destaca a construção da percepção sobre a realidade social em meio às experiências cotidianas. Cf. Collins, 2009.

sociação entre identidades cuja relação é pautada pela tensão dinâmica e vital entre discordância e concordância, entre tomada de posição e busca de unidade (SIMMEL, 1983). Embora ambos os autores sinalizem para a faceta moral do conflito, e Simmel em particular confira a ele uma conotação positiva, não avançam na elaboração a respeito de sua dimensão especificamente subjetiva. Este é o mote deste capítulo, que discute também as repercussões do conflito sobre as pessoas e seus posicionamentos.

O conflito como experiência subjetiva

A dimensão subjetiva dos conflitos ganha visibilidade, no entanto, por meio dos estudos em sociologia da conflitualidade e da administração de conflitos, em especial dos estudos abrigados sob o dispute paradigm. Como já referido na introdução, uma das mais profícuas contribuições desses estudos é a indicação de que o conflito social não se restringe a suas manifestações objetivas, sendo, antes, o resultado de uma elaboração subjetiva sobre os fatos que se manifesta “in the minds of the disputants”: “os conflitos são compostos de eventos ou circunstâncias concretas que são relativamente objetivas, mas também de percepções, definições e crenças subjetivas de que um evento ou circunstância é injustificada ou inadequada” (MILLER e SARAT, 1981, p. 55 – tradução minha).

Um passo decisivo na configuração dos conflitos diz respeito à elaboração de determinadas facetas da interação como agressões, o que a literatura tratou como a conversão de experiências lesivas não percebidas enquanto tal (unperceived injurious experiences ou unPIES) em experiências percebidas como lesivas (perceived injurious experiences ou PIEs) (FELSTINER, ABEL e SARAT, 1981). Ou seja, a percepção de que foi agredida em função de uma situação que lhe causou dano, de natureza material ou simbólica, resulta da (re)elaboração que a pessoa faz do vivido, investindo-o de um sentido subjetivamente orientado.2

Embora, como se discutirá nos próximos capítulos, essa elaboração possa ser mediada ou facilitada pela atuação de outros atores (testemunhas do ocorrido, amigos, confidentes, terapeutas, conselheiros, advogados, a opinião pública), a sensação ou impressão de ter sido agredido passa necessariamente pela construção subjetiva do conflito vivido enquanto tal. Essa

2 Embora não seja objeto de discussão nesta tese, a percepção das agressões, assim como os demais passos no processo de equacionamento de conflitos, está relacionada às características dos atores. Ou seja, a possibilidade de alguém perceber determinadas experiências como lesivas, responsabilizar outrem pelo dano sofrido e demandar reparação não só depende de traços de personalidade como está altamente correlacionada às condições sociais que favorecem ou inibem a reivindicação de direitos, seja ou não por vias institucionais (FELSTINER, ABEL e SARAT, 1981; GALANTER, 1983).

construção, no entanto, não se estabelece em termos definitivos, mas é marcada pela instabilidade e pela redefinição constante ao longo da história do conflito (FELSTINER, ABEL e SARAT, 1981). Em muitos casos, inclusive, pode ser que não supere essa manifestação subjetiva e as pessoas sequer cheguem a formular uma queixa ou tomar outra providência exteriorizada em relação aos fatos, recolhendo-se em seu sofrimento, deprimindo-se ou tentando esquecer o ocorrido (BOLTANSKI e CLAVERIE, 2007).

É importante frisar que a dimensão subjetiva do conflito a que faço referência não diz respeito a idiossincrasias ou outros aspectos do solipsismo intrapsíquico. O conflito aqui referido é caracterizado pela marca distintiva da intersubjetividade, da tensão que surge no âmbito de inter-relações reguladas pelo social. Nesse sentido, a dimensão subjetiva aqui indicada remete à percepção pelo sujeito de que o sentido conferido pelo outro à interação consigo embute a violação de determinadas obrigações pertinentes aos contextos interativos.3

Em outras palavras, remete à apreensão de que certas práticas ou atitudes, que se projetam com pretensão de legitimidade na esfera das relações recíprocas, revelam a não valorização da pessoa enquanto partícipe plena da interação social, agredindo o que pode ser resumido como seus interesses, direitos ou sua dignidade (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2004), enquanto aglutinações típicas de valores amplamente compartilhados no mundo contemporâneo.

Um componente importante da abordagem que proponho acerca do conflito remete à concepção da coordenação social como fundada no eixo acordo-crítica, tal como desenvolvida por Boltanski e colaboradores (BOLTANSKI, 2016, 2012; BOLTANSKI e THÉVENOT, 2006, 1999). Segundo esses autores, assim como a concordância e o consenso, a controvérsia, o impasse e a ruptura são eventos rotineiros na dinâmica social, os quais se ligam à ordem em um contínuo de ação. Assim, as pessoas transitam o tempo todo entre esses diferentes registros, ora empregando sua competência prática, típica do regime do acordo, ora acionando sua competência reflexiva, característica do regime de crítica. Isso significa dizer que não se exige

3 Em seu diálogo crítico com Honneth e sua “luta social movida por sentimentos morais de injustiça”, François Dubet (2007) insiste neste aspecto, pontuando que a experiência do desprezo e do não reconhecimento não pode substituir uma teoria da justiça. Embora eu não considere que a tese de Honneth resvale nesse tipo de problema, as observações de Dubet têm grande importância, pois apontam que uma experiência que causa sofrimento não é necessariamente injusta, e nem todas as reivindicações por reconhecimento são justas e legítimas: “mesmo se considerarmos que o sofrimento provocado pelo não reconhecimento ou pelo desprezo é vivido como injusto, isto não diz nada dos critérios de justiça que permitem julgá-lo” (DUBET, 2007, p. 25 – tradução minha). Nesse sentido, uma teoria de justiça deve necessariamente estar sustentada em fundamentos que ultrapassem qualquer perspectiva particularista ou subjetivista.

dos atores sociais a mesma consciência reflexiva o tempo todo; ao contrário, essa exigência se estabelece conforme as diferentes situações.

Fortemente influenciado pelo pragmatismo, o esquema interpretativo proposto por Boltanski e seus colaboradores elege como foco de atenção as situações que se apresentam para os atores na relação com os demais atores e os objetos sociais. Em termos pragmáticos, uma situação é a ação presente em seu desenrolar (BARTHE et al., 2016). Nesse sentido, uma situação corresponde a um recorte do fluxo do tempo, que, do ponto de vista dos atores sociais, se destaca em razão do impacto que exerce sobre si. O modelo supõe que os atores apresentam uma espécie de senso situacional constantemente ativado, capaz de distinguir diferentes formas de experiência do mundo social, conforme exijam mais ou menos adequação, mais ou menos criatividade. Boltanski e Thévenot concebem a questão nos seguintes termos:

[...] baseamo-nos na hipótese de que a mesma pessoa, no mesmo dia e no mesmo espaço social, tem que empregar diferentes recursos para avaliar, incluindo a referência a diferentes tipos de grandeza, quando alternam de uma situação a outra. [...] Situações próximas umas das outras em termos de tempo e espaço são justificadas de acordo com princípios diferentes. E as mesmas pessoas têm que se mover entre essas situações (BOLTANSKI e THÉVENOT, 1999, p. 369 – tradução minha).

Conforme a abordagem situacional, o que permite falar de ordem, equilíbrio, cultura etc. é o empenho coletivo para estabelecer e manter o acordo, inclusive por meio da normalização de incongruências e tensões manifestas no curso das interações. É importante destacar, portanto, que o acordo é concebido como algo sempre contingente, que se estabelece nas próprias situações de interação. Isso faz do esforço contínuo para estabelecer acordos mais ou menos duráveis algo essencial à coordenação social, o que permite a apreensão de um sentido de realidade social. Por este prisma, a realidade se projeta como construto fundamental da vida em sociedade, que a estabiliza normativamente ao secretar valores socialmente compartilhados (BOLTANSKI, 2016).

Coerente com a visão pragmatista, Boltanski defende uma concepção de normatividade social que não se apresenta nem como incorporada pelos atores, via processos socializadores, nem como dimensão que se impõe externamente a eles, via dominação. Para o autor, as normas sociais são essencialmente aquilo que é apreendido pelos atores como “the whatness of what is”, permitindo-lhes distinguir o “normal” do “não normal” (BOLTANSKI, 2016). Nesse sentido, as normas são um repositório de referências às quais os atores recorrem

pragmaticamente no curso de suas interações, de modo a poderem posicionar-se frente às situações que se apresentam continuamente.

Contudo, na concepção de Boltanski, a normatividade social só tem eficácia como referencial para a ação porque opera por meio de seres sociais “sem corpo”, desencarnados e desimplicados das situações. Esses seres são as instituições, as quais são definidas da seguinte maneira:

Uma instituição é um ser sem corpo a quem é delegada a tarefa de estabelecer the

whatness of what is. É, portanto, prioritariamente em suas funções semânticas que a

instituição deve ser considerada (como faz John Searle). Para as instituições cabe a tarefa de dizer e confirmar o que importa. Esta operação abarca o estabelecimento de tipos, que devem ser fixados e memorizados de uma maneira ou de outra (na memória dos anciãos, nos códigos legais escritos, nas narrativas, nos contos, nos exemplos, nas imagens, nos rituais etc.) e muitas vezes armazenados em definições, de modo a estarem disponíveis quando for necessário qualificar, em uma situação de incerteza, estados de coisas que são objeto de usos e interpretações ambíguas ou contraditórias (BOLTANSKI, 2016, p. 75 – tradução minha).

Conforme esse entendimento, as instituições são entes sociais que fixam e prescrevem definições, o que fazem por meio de operações de qualificação de pessoas e objetos e do estabelecimento de seus formatos e usos adequados (BOLTANSKI, 2016). Assim, as instituições operam principalmente por meio de conceitos, convenções, códigos, princípios, padrões, regras de adequação, entre outros elementos. Ao fazê-lo, estabelecem não apenas a definição dos entes sociais, mas também o seu valor e a regulação de seu emprego nos contextos de interação. Ao mesmo tempo, fornecem descrições para o que acontece e pode vir a acontecer por meio de relações de causalidade entre entes e forças (BOLTANSKI, 2016). Por meio dessas operações, as instituições atuam no sentido de fixar “o que importa”, promovendo, assim, a “construção da realidade” (BOLTANSKI, 2016).

Fica evidente, portanto, que, ao estabelecerem “o que importa”, as instituições reforçam a relação entre o “estado das coisas” e as “formas simbólicas”, definindo os contornos normativos da realidade tal como os atores a tomam ordinariamente (BOLTANSKI, 2008, 2016). Nesse sentido, as instituições coincidem com a ordem, com a realidade que se sustenta de maneira coerente, o que converte seu caráter de construto social em necessidade imperiosa. Assim, o que está dado em condições normais é suposto como aquilo que deve ser. O contrário também é verdadeiro: aquilo que não é normal, não deveria ser e por isso as engrenagens institucionais da vida social insistem em absorver e dissolver as incongruências, normalizando-

as. A confirmação da realidade da realidade expressa a função semântica fundamental das instituições (BOLTANSKI, 2016, 2012).

Para Boltanski, as instituições são entidades que ganham vida no curso da própria atividade social, ao serem constantemente acionadas pelos atores. Assim, esses construtos precisam ser reforçados intersubjetivamente na medida em que as pessoas apontem sua realidade umas paras as outras, de maneira contínua, invocando o social em suas interações. Nesse sentido, os atores em situação seriam “as agências principais da performance do social” (BOLTANKI, 2016, p. 24 – tradução minha). A robustez da realidade se evidenciaria, assim, na ausência de incongruências publicamente manifestas quanto à sua representação institucional. Dessa maneira, a realidade instituída é percebida como ordem, como “aquilo que parece se sustentar de maneira coerente” (BOLTANKI, 2016, p. 51 – tradução minha); ou seja, o arranjo das coisas no mundo é simplesmente presumido ou taken for granted (SCHÜTZ, 1979).

Nesse sentido, a ordem, ou a realidade, pode ser correlacionada às circunstâncias em que os atores sociais são capazes de fazer valer os entendimentos de fundo (background

understandings) que conformam os fatos naturais da vida em sociedade ou os fundamentos

socialmente sancionados de inferência e ação que utilizam em sua vida cotidiana e assumem que os outros usam da mesma maneira, como sugere a etnometodologia de Harold Garfinkel (2012).4 Retomo as contribuições de Garfinkel, uma referência também importante para

Boltanski, para ressaltar que a apreensão dos fatos naturais da vida em sociedade, enquanto conjunto de referentes para conduzir a ação, não é um empreendimento de ordem apenas cognitiva. É também moral, pois remete, de um lado, à necessária conformidade das ações com

4 Garfinkel, cujos estudos em etnometodologia também foram fortemente influenciados pela fenomenologia de Schütz, tal como os pragmatistas, afirma que “para os membros de uma sociedade, o conhecimento de senso comum dos fatos da vida social é o conhecimento institucionalizado do mundo real” (GARFINKEL, 2012, p. 53 – tradução minha). Assim, o regime do acordo seria aquele da eficácia das expectativas de senso comum, as quais são intersubjetivamente partilhadas e socialmente reproduzidas como fatos naturais da vida em sociedade (GARFINKEL, 2012, p. 53). Estes apontamentos ecoam fortemente na sociologia de Boltanski. Nesse sentido, é importante notar que, se ele parte de uma premissa pragmática, seu modelo teórico opera uma inflexão considerável: enquanto o pragmatismo clássico se orienta pela compreensão não normativa da lógica da ação, Boltanski adiciona um elemento normativo à sua abordagem ao conceber a ação humana no mundo como ação moral, que invariavelmente manifesta um juízo valorativo a respeito do estado de coisas envolvido nas situações. Essa questão ficaria mais explícita nas situações críticas, nas quais os atores devem necessariamente se posicionar sobre os elementos envolvidos e seus arranjos; porém, também está presente nas situações práticas ou no regime de rotina, onde o referenciamento da ação se faz por meio dos hábitos, das disposições e de outros estados mentais mais ou menos estáveis e que se mostram eficazes nas interações sociais, assim como na operação dos diversos dispositivos que operam sem enfrentar questionamentos ou resistências, indicando o acordo dos atores sociais com a ordem. Cf. Boltanski, 2016, 2012, 2006.

as expectativas da vida cotidiana e, de outro, à condição para a autoestima dos atores sociais como membros de boa-fé de uma coletividade (GARFINKEL, 2012). Ou seja, a confiança no social normalizado (via valores, normas, leis, costumes etc.) e instituído como realidade carrega a vivência individual do sentido de afiliação à sociedade como empresa moral, traduzindo-se em autoestima e na apreciação positiva de seus conhecimentos, opiniões e valores.

Essa dimensão de confiança externa e interna na relação que os indivíduos mantêm com a realidade social é um componente central na dinâmica do conflito e de sua repercussão sobre o sujeito. Isso porque, quando uma situação não encontra eco nos fatos naturais da vida social e ocorre uma quebra das expectativas contextualizadas das pessoas, seu ambiente referencial é apreendido como sem sentido, com o que “sua convicção de que a autoridade moral da sociedade familiar obriga essa ocorrência é minada” (GARFINKEL, 2012, p. 54 – tradução minha), comprometendo sua confiança na própria realidade.

Na verdade, como afirma Boltanski, as pessoas confiam nas instituições sabendo que elas são ficções e que seu único aspecto real são as pessoas que as representam (BOLTANSKI, 2016, p. 85). Ou seja, ao mesmo tempo que têm o poder de estabelecer the whatness of what is, as instituições são frágeis precisamente por causa de seu caráter instituído, artificial, arbitrário. Assim, “a crença e a desconfiança nas instituições formam um par indissolúvel” (BOLTANSKI, 2016, p. 85 – tradução minha). O que caracteriza as situações práticas é precisamente o fato de os atores sociais operarem como se esta não fosse uma questão, e adotarem uma atitude de tolerância frente à diversidade de usos e interpretações das instituições, fechando os olhos para incoerências não significativas (BOLTANSKI, 2008, p. 22).

O fato de que as instituições são uma construção evidencia ainda que elas se erguem sobre um universo de possibilidades mais amplo, de fundo, o qual não está integrado em uma ordem. Boltanski recorre a Wittgenstein para elaborar o conceito de mundo como “tudo o que acontece”, o “fluxo incessante da vida” (BOLTANSKI, 2008, 2016), em contraposição à realidade social. Como se trata de um fluxo, o mundo e os entes que o compõem (aí incluídos pessoas e objetos) estão em constante mudança e não podem ser controlados ou antecipados. É deste contexto de fundo que podem surgir eventos e experiências não previstos nos padrões da

determinados aspectos do mundo, que se cristalizam simbolicamente, conferindo-lhe certa rigidez.5

Como alega Boltanski, o mundo pressiona a realidade porque é imanente e está sujeito ao incessante fluxo da vida, sem que as experiências que aí ocorrem necessariamente ganhem o registro do discurso ou da ação. Ocorre que, em determinadas situações, a defasagem entre a

realidade e o mundo, a qual está abrigada no próprio seio das instituições, se evidencia,

configurando o que o autor denomina, seguindo a trilha da linguística, como contradição

hermenêutica:

Esta contradição hermenêutica está constantemente na consciência dos atores ou, ao menos, nos seus recantos, e pode ser ressuscitada sempre que um incidente, como uma disputa ou um simples desajuste entre os elementos de um contexto, acorde a dúvida sobre o conteúdo da realidade (BOLTANSKI, 2016, p. 83 – tradução minha).

É justamente em face da contradição hermenêutica que uma crise pode emergir e, com ela, o conflito. Uma situação inesperada que foge ao “curso da normalidade” e frente à qual a pessoa não sabe como reagir de imediato, pois não consegue estabelecer correspondência com modelos institucionais dados, é vivida como uma quebra de expectativa, que pode ensejar a sensação de crise. Retomando Garfinkel, essa sensação tende a ser mais forte quanto mais intensa for a adesão do ator às referências que se mostram falhas, ou “quando ‘os fatos naturais da vida’ são negados como uma representação de suas circunstâncias reais” (GARFINKEL, 2012, p. 54 – tradução minha). A reação a esse cenário é a perplexidade, a insegurança, a dúvida, a quebra de confiança nos entendimentos de fundo, o que pode repercutir no sujeito como um “conflito interno” (GARFINKEL, 2012, p. 55).

Com base nesses insumos teóricos, é possível compreender o conflito como uma contingência em face das contradições da vida social cujo efeito incide, antes, “dentro” das pessoas. O súbito confronto entre expectativas fundamentadas e situações que contrariam essas expectativas se projeta como uma interrogação que o sujeito dirige a si mesmo acerca de seu entendimento sobre como as coisas acontecem. Em outras palavras, o choque de expectativas subjacente à experiência do conflito produz uma sensação de estranhamento, de incoerência ou perda de sentido (BOLTANSKI, 2016, 2012), que levanta questões acerca do conhecimento

5 Conforme Boltanski, existe uma tensão permanente entre a realidade e o mundo, pois a primeira opera como um dispositivo de redução do segundo, sempre tentando apreender sua integralidade para enfrentar a ameaça constante e se manter, absorvendo a crítica e alterando seus próprios contornos. Contudo, o mundo não se deixa apreender