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4 A CIDADE POSSÍVEL / A CIDADE DA REPRESSÃO: o Corpo de

4.2 Garantir a Regularidade e o Aformoseamento

4.2.1 O comércio na cidade

A determinação do espaço para a realização das atividades comerciais inscrita no Código de Posturas indica a segregação sócioespacial pontuada por Caldeira (2000) e Rolnik (1995), por não se limitar ao aspecto físico, adentrando nas relações sociais que os sujeitos engendram no subsistir cotidiano, definindo padrões de diferenciação social e de separação, que determinam entre outras coisas o local para efetuar as práticas necessárias ao comércio.

No entanto, não se constituiu tarefa fácil para o Corpo de Polícia assegurar essa segregação, conforme revela a análise dos registros de infrações existentes acerca do espaço de comercialização dentro da cidade ludovicense oitocentista. As setenta notificações de infrações à postura nº 13164 não deixam dúvidas quanto ao descompasso entre a idealização desse espaço na cidade e a não concretização do idealizado para ordenar as atividades comerciais no espaço urbano de São Luís.

A tabela a seguir caracteriza os infratores das normas indicadas para o comércio na cidade ideal.

164 Vale ressaltar que nem sempre a quantidade de registros de infrações corresponde à quantidade de infratores,

TABELA 2

INFRATORES DA POSTURA Nº 13165

GÊNERO CONDIÇÃO JURÍDICA

HOMEM MULHER LIVRE166 ESCRAVO

26 (27,66%) 68 (72,34%) 27 (28,73%) 67 (71,27%)

FONTE: CORPO DE POLÍCIA DA PROVÍNCIA DO MARANHÃO. Partes Gerais das Novidades do Dia. [São Luís], 1842-1866.

Uma leitura desses dados, considerando o gênero, indica que a maioria dos infratores foi de mulheres (72,34%). Entretanto, se o parâmetro for a condição jurídica, a ampla maioria dos infratores eram escravos. Em ambos os casos, a explicação pode tomar por base a atividade desenvolvida. Em geral, as ocorrências infracionais incidiam sobre tabuleiras, pois elas podiam circular livremente pelas ruas da cidade, desde que não parassem, senão nas ruas determinadas pela Câmara Municipal.

Dessa forma, pelo não cumprimento do que fora definido para o comércio nas ruas da cidade, “o soldado da 3ª Companhia [...], que se achava de ordens do Juiz de Paz do 4º distrito, conduziu a este quartel às 10 horas do dia, por mandado do fiscal da 1ª freguesia, as pretas Maria, escrava de Joaquim Barboza de Carvalho; Benedicta, de José Maria Faria de Mattos; e Melecina, de Manoel José de Medeiros, por estarem vendendo hortaliças paradas fora dos lugares designados pela Câmara Municipal desta cidade em contravenção da postura nº 13 da mesma Câmara. [...]” (CORPO DE POLÍCIA... Parte Gerais das Novidades do Dia - PGND, 21/01/1842).

Essa ocorrência é um exemplo de inúmeros outros registros em que as mulheres como essas praticavam suas atividades em grupo.

165 Postura nº 13 – As hortaliças, aves, peixes, frutas e outros provimentos serão vendidos livremente pelas ruas

da cidade como a cada um convier; contanto que os vendedores não façam com eles paradas, senão nos lugares designados pela Câmara; nos quais se não poderá erigir telheiro ou barraca, sem licença da mesma; pena de quatro mil réis para os que erigirem telheiro ou barraca, sendo obrigados a demolir tudo à sua custa; e de mil réis para os vendedores, que estiverem assentados fora dos lugares designados (MARANHÃO. Edital..., 1842, p. 3).

166 Esse item refere-se tanto aos livres quanto aos forros, ou seja, aos que foram alforriados, passando assim, à

Por outro registro interessante para análise, foi relatado que “a 13ª Patrulha [...] conduziu presos a este quartel às 11 horas do dia, à requisição do fiscal Luis Canuto de Lemos, a preta Francisca, escrava de Antonio Ferreira da Silva Santos, e o preto de menor idade Agostinho, escravo do alferes Burgos, por estarem vendendo frutas parados fora dos lugares marcados pela Câmara. [...]” (CORPO DE POLÍCIA... PGND, 26/01/1842).

As informações constantes desse registro permitem o questionamento acerca de possíveis relações existentes entre os dois: mãe e filho? Parentes próximos?

O caso da prisão do preto forro Ignácio José Ferreira, ocorrida as 9 ½ horas da manhã, na rua do Sol167, permite uma reflexão sobre relações de solidariedade semelhantes. Ele foi penalizado “por avisar para que se evadissem umas pretas que infringiram a postura nº 13 da Câmara Municipal, fazendo assim que as infratoras se evadissem deixando um tabuleiro com panela. [...]” (CORPO DE POLÍCIA... PGND, 07/01/1844).

As tentativas de burla do que era institucionalizado, ampliava ainda mais os conflitos ocorridos entre as autoridades e os munícipes pela necessidade do cumprimento que estava determinado para esse tipo de comércio na cidade ludovicense. Nesse sentido enquadra-se o caso do furriel168 que prendeu, na rua de Santana, “a preta Ignacia, escrava de Raimundo Gabriel Vianna por infringir a postura nº 13 da Câmara Municipal, insultar ao mesmo furriel e na ocasião de ser conduzida à presença do [...] Chefe de Polícia, afiançou 280 réis ao mencionado furriel a fim de a soltar. [...]” (CORPO DE POLÍCIA... PGND, 06/07/1849).

A organização do comércio na cidade implicava numa relação de poder entre o Estado e os responsáveis por essa atividade. Um comunicado na imprensa local mostra a concorrência comercial que havia em virtude da tentativa de organização do comércio de aves

167 Atual Rua Nina Rodrigues, embora seja mais conhecida como Rua do Sol, trata-se de “via das mais

importantes, desde os primeiros anos da colonização, um dos três caminhos grandes por onde se prolongou a cidade. Praticamente em continuação com a rua de Nazaré, começa na praça João Lisboa e termina na rua do Veado (Celso Maragalhães) (LIMA, 2002, p. 165).

e frutas na cidade pela Câmara Municipal; demonstra também o apetite de comerciantes mais bem aquinhoados pelo controle do comércio varejista, pressionando a Assembléia Legislativa Provincial a revogar posturas benéficas aos pequenos comerciantes estabelecidos na praça do Açougue Velho. Assim diz Um Comerciante:

COMUNICADOS

Achando-se na Assembléia Legislativa Provincial a postura que [a] Câmara Municipal organizou para regular a venda de frutas e aves vinda do interior da província, cuja postura sendo pelo Governo provisoriamente aprovada acha-se em execução.

Julgamos inconveniente por a patriótica Assembléia ao alcance da utilidade que resulta de semelhante medida, visto constar que alguém há no seio da representação provincial, grandemente interessado pela revogação da postura, para satisfazer os caprichos da Companhia Confiança, que pretendeu impor a sua vontade a compra para que esta revogasse tal postura. Publicamos, pois, a resposta que a Câmara deu ao governo em vista da insolente representação assinada pelos membros da Diretoria da referida Companhia.

Pela entrega da resposta se convencerá a Assembléia, que a companhia pretende monopolizar também o pequeno comércio de frutas e aves, que atualmente está sendo feito na praça do Açougue Velho, onde já se conta mais de cincoenta barracas, feitas com grande dispêndio por pessoas acostumadas a semelhante gênero de vida, mas que a companhia os quer excluir por serem nacionais. Um comerciante (COMUNICADOS, 21/05/1859, p. 1).

A possibilidade de a Companhia Confiança monopolizar o comércio de aves e frutas na cidade preocupava aqueles que viviam desse tipo de comércio, por isso tentava, através da imprensa sensibilizar, os deputados, pois temiam a revogação da postura pela Assembléia Legislativa em face da influência que a referida companhia exercia naquela casa legislativa. Essa constatação fez com que Um Comerciante voltasse à carga, no mesmo jornal, concitando os deputados a não cederem aos interesses da companhia sob pena de contrariarem o interesse público. Por isso,

AOS SENHORES DEPUTADOS

Consta que a Companhia Maranhense conta e já se gaba de que a Assembléia Provincial não há de aprovar a postura da Câmara, que transferiu o desembarque e a vendagem de frutas para a praça do novo mercado, que para isso tem boas razões visto que se acha na mesma Assembléia um deputado, sobrinho de um dos interessados deste negócio, que promete arrastar os Srs. Deputados do interior a votarem contra. O público aguarda a decisão deste negócio e estamos a espera do cavalheirismo dos nobres Deputados que a votação a respeito seja nominal, a fim de saber qual deles tem de acarretar com a responsabilidade do prejuízo que

semelhante idéia lhe sobrevirá. Maranhão, 12 de maio de 1859. Um comerciante (AOS SENHORES DEPUTADOS, 21/05/1859, p. 2).

A insistência de Um Comerciante representando seus pares infelizmente não levou ao resultado desejado pelos que viviam desse tipo de negócio na cidade, o que implica numa relação de forças pendente para os interesses dos grandes comerciantes. Ao final,

Na sessão de 11 do corrente da Assembléia Legislativa Provincial passou em 3ª discussão a resolução que revoga a postura da Câmara Municipal da Capital que determinou o desembarque de frutas e aves perto da praça do novo mercado. Foram satisfeitos os desejos da Companhia Confiança, da qual é presidente o Sr. Joaquim Marques Rodrigues! (NA SESSÃO..., 14/06/1859, p. 6).

A regulação do comércio de peixe pelo Código de Posturas de 1842 para ocorrer em lugares determinados, na prática, também foi alvo de muitas infrações. No período estudado foi constatado um total de vinte e três infrações à postura nº 112, conforme a tabela abaixo:

TABELA 3

INFRATORES DA POSTURA Nº 112169

GÊNERO CONDIÇÃO JURÍDICA

HOMEM MULHER LIVRE ESCRAVO

23 (100%) 00 (0 %) 17 (73,9%) 06 (26,1%)

FONTE: CORPO DE POLÍCIA DA PROVÍNCIA DO MARANHÃO. Partes Gerais das Novidades do Dia. [São Luís], 1842-1866.

Como se vê, essa postura foi infringida exclusivamente por homens e na sua maioria por livres. Os casos seguintes são ilustrativos dessa constatação. Além disso, indicam os lugares marcados para a venda do pescado em zonas periféricas de São Luís como as praias do Caju, Madre de Deus e Santo Antonio.

169

Postura nº 112 – Fica desde já proibido aos pescadores vender peixe, sem que primeiro o tenha desembarcado em lugar enxuto. O Arrais, que ao contrário praticar incorrerá pela primeira vez na multa de quatro mil réis, e pela reincidência na de oito mil réis e três dias de prisão (MARANHÃO. Edital..., 1842. p. 18).

[...] O soldado da 3ª Companhia [...], que se achava de sentinela na praia da Madre de Deus, prendeu as 2 horas da tarde na mesma praia, o pardo livre Antonio Joaquim, por (não querer vender peixe em terra) infringir a postura nº 112 da Câmara Municipal. [...] (CORPO DE POLÍCIA... PGND, 07/11/1844).

[...] A 3ª Patrulha [...] conduziu preso às 9 horas da manhã da praia da Madre de Deus, por mandado do sentinela da mesma praia, o pescador Benedicto dos Santos, por infringir a Postura nº 112 da Câmara Municipal. [...] (CORPO DE POLÍCIA... PGND, 08/10/1845).

[...] O soldado da 2ª Companhia [...], que se achava de sentinela na praia do Caju, prendeu às 8 horas da noite na mesma praia o cafuzo livre Aleixo dos Santos, por infringir a postura nº 112 da Câmara Municipal. [...] (CORPO DE POLÍCIA... PGND, 04/04/1846).

[...] O soldado da 1ª Companhia [...] que se achava de sentinela na praia de Santo Antonio prendeu na mesma praia às 6 ½ horas da tarde, o cafuzo Manoel Marianno por infringir a postura nº 112 da Câmara Municipal. [...] (CORPO DE POLÍCIA... PGND, 02/07/1851).

Ainda refletindo sobre o comércio, embora fosse idealizado que a sua realização se desse com pesos e medidas aferidos legalmente, na cidade possível foi flagrado, conforme tabela abaixo, um homem livre comercializando em seu estabelecimento com pesos e medidas falsificados, conforme tabela abaixo.

TABELA 4

INFRATORES DA POSTURA Nº 106170

GÊNERO CONDIÇÃO JURÍDICA

HOMEM MULHER LIVRE ESCRAVO

01 (100%) 00 (0 %) 01 (100%) 00 (0%)

FONTE: CORPO DE POLÍCIA DA PROVÍNCIA DO MARANHÃO. Partes Gerais das Novidades do Dia. [São Luís], 1842-1866.

Seu caso foi registrado pelo “soldado da 4ª Companhia [...] que se achava de sentinela na Fonte do Ribeirão, [quando] deu parte que o taberneiro Serafim de tal, morador naquele lugar, infringiu a postura nº 106 da Câmara Municipal. [...]” (CORPO DE POLÍCIA... PGND, 04/03/1846).

170 Postura nº 106 – Todo aquele que não obstante a aferição dos pesos e medidas, que as constitui legais,

falsificar tanto estas como aquelas sobre gêneros secos ou molhados, na ação de os vender, de sorte que pela quantidade deles exatamente se não verifique o peso ou medida por que foram vendidos sofrerá a multa de dez mil réis e quatro dias de prisão (MARANHÃO. Edital..., 1842. p. 17).

O mesmo era estabelecido para o comércio pelas ruas da cidade, entretanto, conforme tabela abaixo, somente constatei nos registros a infração cometida por dois escravos.

TABELA 5

INFRATORES DA POSTURA Nº 71171

GÊNERO CONDIÇÃO JURÍDICA

HOMEM MULHER LIVRE ESCRAVO

02 (100%) 00 (0 %) 00 (0%) 02 (100%)

FONTE: CORPO DE POLÍCIA DA PROVÍNCIA DO MARANHÃO. Partes Gerais das Novidades do Dia. [São Luís], 1842-1866.

Essas infrações foram cometidas por dois escravos a serviço de seus senhores:

[...] o soldado da 2ª Companhia [...] prendeu às 2 ½ horas da tarde no beco da praia do Preso, o preto Ellias, escravo de Raimundo Gabriel Gomes de Farias Bauguim, por infringir a postura nº 71 da Câmara Municipal.[...] (NOVIDADES DO DIA, 11/02/1848).

[...] O Guarda Nacional destacado [...] que se achava de guarda na Alfândega conduziu preso ao quartel as [corroído] horas da tarde da praia Grande, por requisição do fiscal da 1ª Freguesia, João Gomes Claro, o preto Nicolao, escravo de José Cle[corroído]do de Sousa, por infringir a postura nº 71 da Câmara [corroído]. [...] (NOVIDADES DO DIA, 12/03/1850).