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Capítulo III – O início da ação planejada

2. O compromisso com o urbano em Santo André

- O artífice.

Eleito prefeito da cidade Santo André no ano de 1988, em meio a toda essa discussão acerca da democratização da gestão das cidades, Celso Augusto Daniel era engenheiro civil formado na década de 1970. Tornou-se engenheiro do Departamento de Trânsito de Santo André em 1974, “defrontando-se com os problemas dos fluxos de carga

e pessoas pela cidade. ...percebia que a organização desses fluxos numa cidade industrial do porte de Santo André exigia uma visão mais ampla sobre a estrutura produtiva e a

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dinâmica da cidade”.26 Ainda cursou filosofia na USP e em 1977 iniciou o curso de pós- graduação em Planejamento Urbano, pela Fundação Getúlio Vargas.

Além de fundamentação teórica e experiência prática, adquirida no departamento de trânsito, Celso construiu seus compromissos com a melhoria das condições de vida da cidade no cotidiano de movimentos populares. Teve participação importante nos movimentos de bairro da cidade e no Centro de Estudos Políticos e Sociais do ABC (CEPS), uma organização voltada para formação política e apoio aos movimentos popular e sindical, e no movimento de usuários de transporte coletivo. Neste último, somando a experiência técnica à liderança comunitária, atuou ativamente para a criação da Associação de Usuários de Transporte Coletivo e Outros Serviços – AUTC. Assim, enquanto construía a luta por serviços de qualidade com custos compatíveis, forjava-se o homem com espírito público e profundo compromisso com a solução dos graves problemas enfrentados no cotidiano da cidade.

Além de prefeito, Celso Daniel sempre procurou ser o idealizador das propostas que considerava necessárias para a efetivação das transformações na cidade de Santo André, sendo, ele mesmo, um dos autores de diversos documentos conceituais que embasaram suas ações na administração pública municipal, como veremos a seguir.

Eleito ainda Deputado Federal, em 1998 e, novamente prefeito da cidade de Santo André por duas vezes, em 1996 e 2000, Celso Daniel veio a falecer violentamente, após seqüestro seguido de assassinato, no início do ano 2001, na cidade de São Paulo.

3. “Um projeto para Santo André”.

As consequências do modelo de desenvolvimento econômico do Brasil sobre a qualidade de vida nas cidades já foram discutidas em diversos fóruns. O modelo de planejamento vigente no país até a década de 1980, que privilegiou o automóvel e a circulação de mercadorias em prejuízo das pessoas, foi sentido de forma contundente na

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Fonte: “Celso Daniel”. Publicação do diretório municipal do Partido dos Trabalhadores, Santo André, 2002.

Como conseqüência houve uma grande separação entre a população, confinada em espaços privados, e o espaço público. Este distanciamento produziu um “rompimento dos

laços de solidariedade e a deterioração da qualidade do ambiente urbano” (Pinheiro,

1991).

Ao iniciar-se, em 1989, uma nova administração na cidade de Santo André, foram apresentadas como diretrizes essenciais a serem desenvolvidas, além da transparência com os recursos públicos, a participação dos moradores na construção da cidade e a profunda preocupação com a inclusão social de setores há muito excluídos dos serviços e infra- estrutura públicos. Estas diretrizes estavam consolidadas e resumidas no slogan escolhido para apresentar a nova administração aos cidadãos: o direito à cidade.

A nova administração municipal buscava transformar sem seguir modelos pré- determinados, negando a um só tempo “a opção capitalista” corrente no país e o “estatismo do socialismo real”27, buscando afirmar a “radicalização democrática”(Daniel, 1989). Para tanto acreditavam na necessidade de construir novos parâmetros de administração pública através da “reelaboração da identidade local”, da inversão de prioridades, da democratização da relação entre comunidade e poder local e de uma reforma administrativa.

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Durante o intervalo de tempo que nos separa daquele momento, o chamado socialismo real estatista da Europa Oriental caiu por terra e, mesmo a crítica ao capitalismo em si se diluiu na busca do estado de bem estar social. Fonte: “Diretrizes que embasam o Programa de Governo da Prefeitura do Município de Santo André. Daniel, Celso, 1989 (Mimeo).

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- A reelaboração da identidade local.

Apesar da dificuldade de compreensão do que seria uma “reelaboração”, no que diz respeito à identidade local, a busca de um novo ponto de vista, o dos excluídos, na percepção da cidade e da sua identidade urbana parece um objetivo coerente com as demais diretrizes propostas naquele momento. Tratava-se, na verdade, de atuar sobre a “dimensão do real”, buscando resgatar componentes que avivassem no imaginário coletivo valores relativos aos direitos de cidadania.

No que se refere ao aspecto espacial desta identidade local, inicialmente fora colocada como importante a idéia da identidade municipal como sendo a integração de suas partes. Dessa forma, ações simples como a implantação de serviços urbanos em um novo bairro ou distrito, buscando sua integração ao todo, estariam contribuindo para a construção e o fortalecimento da identidade do município.

Por outro lado, a importância da afirmação desta unidade não significaria a crença na construção de homogeneização do espaço urbano28 e, sim na co-existência e complementaridade de diversas realidades ou identidades “relativas aos vários pedaços da

cidade – territórios da vizinhança (a rua, o bairro) onde os moradores se reconhecem”29

de forma diversa de outros bairros da cidade. Segundo seus idealizadores, Celso Daniel entre eles, os vários “pedaços” da cidade seriam locais onde as relações sociais cotidianas são construídas e era preciso criar políticas públicas para o fortalecimento desta tendência que resultaria em uma maior apropriação da cidade pelos moradores, aprofundando “laços de cidadania”.

Outra questão relevante, no que diz respeito à construção da identidade espacial, trata da definição de normas urbanísticas baseadas em parâmetros da cidade real. Era necessário conquistar os territórios excluídos da legalidade, ou seja, dos direitos de cidadania, muitas vezes tidos como “desvios a serem corrigidos ou, no limite, extirpados”. Substituir uma legislação urbana (zoneamento, parcelamento do solo e edificações) baseada no pressuposto de uma cidade ideal por outra construída a partir da idéia de que a cidade de amanhã é conseqüência da cidade existente hoje, resgatando da clandestinidade

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Ou o “espaço da comunidade”, como descrito por Celso Daniel. 29

para viabilizar a regularização de ocupações ilegais, desregulamentação das normas de edificação e do tipo de uso do solo (desde que não prejudique a vizinhança), coeficiente de aproveitamento único para toda a cidade, permitindo-se a construção de área adicional (o solo criado) mediante o pagamento, pelo proprietário do imóvel, de uma quantia correspondente à valorização imobiliária assim gerada.” (Daniel,

1989).

O combate à apropriação privada dos espaços públicos deveria ser constante. A prioridade dada ao automóvel, no meio urbano, priva a maioria da população de seus espaços de convivência - a rua, a avenida e a praça - que são construídos, equipados e sinalizados para o seu atendimento prioritário.

Finalmente, já naquele momento, a nova administração indicava como importante a questão regional, tendo em vista que várias discussões relativas aos municípios transcendem seus limites físicos e de atribuições. Desta forma, o programa apontava como relevantes os esforços para a construção de instrumentos regionais de ação pública, como o Consórcio Intermunicipal do Grande ABC que seria criado durante este governo.

- A inversão de prioridades.

Inicialmente a discussão da inversão de prioridades remetia-se imediatamente à questão da “captação e do uso dos recursos públicos municipais”, uma vez que se tratava de imediato de uma política de distribuição de renda, arrecadando recursos de determinados setores da sociedade e disponibilizando-os, na forma de realizações, como obras e serviços públicos para outros setores.

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A administração considerava que era necessário esclarecer que inverter prioridades não significaria a eliminação das carências dos cidadãos, mas sim, realizar melhorias, buscar a redistribuição de renda e “inscrever direitos”, contribuindo com a superação de valores excludentes da sociedade.

Da mesma forma, a dicotomia centro-periferia necessitava de uma abordagem cuidadosa. Quando se trata da apropriação diferenciada dos investimentos públicos entre bairros habitados por setores de mais alta renda (melhor servidos de infra-estrutura) e aqueles em que moram os extratos mais pobres da sociedade, a inverção de prioridades buscaria equilibrar os níveis de infra-estrutura e serviços públicos nos diversos pedaços da cidade. No entanto, os centros (maiores ou menores) são, em geral, locais de encontro de toda a população, com acesso democrático e, desta forma, carecem de investimentos para sua valorização como espaços de vivência coletiva, constituindo parte integrante de um processo de inversão de prioridades.

“O desafio de garantir marcas para a inversão de prioridades não

é pequeno, sobretudo porque não há respostas prontas. Coragem política e criatividade são ingredientes indispensáveis ao seu equacionamento. São, também, atributos obrigatórios para administrações que se pretendem transformadoras.” (Daniel,

1989).

- Democratização da relação entre comunidade e poder local.

Uma das premissas básicas do novo governo tratava-se da “radicalização democrática” e, no que se refere à democratização da relação entre comunidade e poder público, a disposição era de que fosse substituído o modelo baseado no clientelismo que buscava a legitimação do poder político através da “concessão” de direitos a determinadas pessoas, impondo o poder de escolha ao concedente o que, em conjunto com o monopólio das informações detidas pelo poder público e da utilização de linguagens inacessíveis a maior parte da população (“códigos e pareceres jurídicos, contabilidade orçamentária...”), aprofundavam o controle da prefeitura sobre a comunidade.

costume.

Além disso, tratava-se de buscar a distribuição do poder de decisão, sem abrir mão da parcela que cabe ao executivo, instituindo um novo direito ao cidadão, “o direito de participar”. A participação democrática, combinada com a democracia representativa, sginificava, necessariamente, limitação do poder por parte de quem sempre o deteve e o aprofundamento de formas de controle do estado (no caso, no âmbito municipal) pela comunidade.

Disseminar espaços de decisão, descentralizando o poder político, de diversas formas e em diferentes escalas seria uma das premissas do processo de participação popular na prefeitura. Desta forma, foram criados canais de participação da comunidade na gestão de unidades de equipamentos sociais, como escolas e postos de saúde. Também no acompanhamento pontual de obras e serviços públicos a vizinhança tinha espaço para discutir e até mesmo em discussões mais abrangentes de planejamento de curto, médio e longo prazo, como o orçamento participativo ou o processo de discussão do plano diretor da cidade, a sociedade foi chamada a dar sua contribuição. Tal participação foi garantida ainda, nos conselhos municipais de gestão de políticas setoriais que também passariam por intensas discussões acerca de formato, composição e atribuições.

“Uma coisa é certa: o caminho a percorrer é longo, mas

obrigatório. A inscrição de direitos e a participação popular só florescerão se cultivadas no terreno fértil da socialização das informações.” (Daniel, 1989).

Um pressuposto básico para a democratização das relações e a efetiva distribuição de poder de decisão é a disponibilização das informações que a prefeitura detinha. Assim, os novos processos de participação ganhavam qualidade e consistência, se consolidando

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como política pública, buscando dar o passo seguinte ao de diretriz de um determinado governo.

- Reforma administrativa.

Buscava-se discutir a reforma do estado, no âmbito local, tentando escapar da tendência corrente de defesa do “Estado mínimo”. Na verdade, a proposta colocada pelo novo governo centrava-se no binômio democracia e eficiência. Inicialmente, os valores democráticos deveriam estar num plano superior, em que, se deveria resgatar a justiça social e os direitos de cidadania, questão complexa dado que a estrutura do aparelho administrativo herdou a cultura clientelista e práticas pouco democráticas apesar de muitos servidores não compatilharem com esses conceitos. Num segundo plano, mas com importante papel, seriam tratados os valores da eficiência, uma vez que o desperdício de recursos públicos não estaria em consonância com o atendimento democrático das necessidades da população.

Também a lógica setorial da administração pública deveria ser superada, tendo no horizonte a viabilização de ações combinadas de diversas áreas. A busca de formas de organização do trabalho baseadas em estruturas matriciais e na possibilidade do estabelecimento de forças-tarefa seria importante para que processos integrais de exclusão social não fossem tratados por múltiplas iniciativas de múltiplas origens dentro da mesma administração. Também impunha-se a criação de novas estruturas que viabilizassem as novas atribuições que eram colocadas ao poder público além da adequação dos setores existentes, fossem áreas fim ou áreas meio (de suporte, como: aquisição de materiais, suporte jurídico ou financeiro, etc.).

Outra questão colocada como de grande relevância tratava de medidas de descentralização territorial que poderiam ser fundamentais tanto no que diz respeito à necessidade de ampliação da eficiência no uso dos recursos públicos, quanto no papel que poderia desempenhar no processo de democratização do aparelho administrativo, levando- o para mais perto dos cidadãos e, contemplando ainda, o resgate da identidade dos pedaços da cidade.

concursos públicos idôneos, implantação de cargos e salários, a reformulação dos estatutos – o geral e os específicos – dos servidores e um plano de carreira, construídas em conjunto com os servidores de forma cuidadosa, “para evitar que o peso do corporativismo distorça

seus resultados” (Daniel, 1989), seriam significativas para que fosse atingido o conjunto

das diretrizes inicialmente pensadas.