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CAPÍTULO I – AS CONDIÇÕES HISTÓRICAS DOS PROJETOS DE EDUCAÇÃO

1.5 O conceito da Educação Integral na organização da escola moderna

Foi no século XVIII, mais precisamente com a Revolução Francesa e a constituição efetiva da escola pública, que a educação integral ganha mais enfoque, desta vez concretizada sob a perspectiva jacobina29 de formação do homem completo – o que "significava abarcar o ser físico, o ser moral e o ser intelectual de cada aluno" (BOTO, 1996, p. 159).

Nesta conjuntura, há dois pontos que precisam ser ressaltados: o primeiro, de que o período constitui a instituição pública de ensino – a escola – como lócus privilegiado desse trabalho educativo; o segundo, de que é evidente que essa completude contém elementos propostos anteriormente, desde a paideia, mas também descarta, ou pelo menos olvida outros que o pensamento anarquista30, construído ao longo dos séculos 18, 19 e 20, vai trazer à tona e tornar relevantes como, por exemplo, a dimensão estética dessa formação completa (GALLO, 2002).

29 Receberam a denominação de jacobinos pois reuniam-se inicialmente no Convento de São

Tiago dos dominicanos (do nome Tiago em latim: Jacobus e do francês Saint-Jacques). Seus membros defendiam mudanças mais radicais que os girondinos: eram contrários à Monarquia e queriam implantar uma República. Esse grupo era apoiado por um dos setores mais populares da França - os sans-cullotes- e, juntos, lutaram por outras mudanças sociais depois da revolução. Sentavam-se à esquerda do salão de reuniões.

30 O termo anarquismo tem origem na palavra grega anarkhia, que significa "ausência de governo". Representa o estado da sociedade ideal em que o bem comum resultaria da coerente conjugação dos interesses de cada um.

Evidenciando mais a reflexão sobre a concepção de educação integral trazida pelo pensamento revolucionário francês, os jacobinos instituem a escola primária pública para todas as crianças, no mesmo caminho do projeto de Lepeletier (1760-1793)31, que propunha "uma educação comum, radicada na formação integral", e que consistia, fundamentalmente, na aquisição e no desenvolvimento das faculdades físicas, intelectuais e morais de cada indivíduo (Boto, 1996, p. 183-185). Propunham, como meta, a consolidação de uma educação nacional que seria alcançada mediante o entrelaçamento daquelas faculdades.

No século XIX, a educação integral surge fomentada pela ideia de emancipação humana, que propunha, por meio dos movimentos sociais em suas diversas correntes, o fim da exploração e do domínio capitalista imposto ao homem. Nesse contexto, coube a Paul Robin (1837-1912), também militante do movimento, estruturar uma prática pedagógica com base na concepção de educação integral, como observa Gallo (2002). Por isso hoje Robin é conhecido como o pedagogo e pedagogista francês, representante da vertente conhecida como Pedagogia Libertária, criador do ensino integral.

Gallo (2002, p.13) ainda aponta que, em diferentes correntes ideológicas do século XIX, a emancipação do homem se manifestou sob múltiplas formas:

O positivismo viu nas conquistas científicas e tecnológicas a possibilidade desta emancipação; o socialismo, em seus diversos matizes, a localizou numa revolução social que pusesse fim à exploração e dominação capitalistas. No contexto dessa emancipação humana do jugo de todas as imposições, seja a da natureza, sejam aquelas decorrentes da dominação do homem pelo homem, surgiu o conceito de uma

educação integral (grifos do autor).

Diante do exposto, a vertente que mais se aproxima do ideal de Educação Integral que defendemos em nossa pesquisa é a vertente anarquista, também incorporada pelos socialistas, visto que ao longo da era moderna será a que mais se preocupa com a formação plena do sujeito. Em 1868, na cidade de Bruxelas, a educação integral foi tema de uma moção escrita pelo próprio Paul Robin (1837-1912), e aprovada por Karl Marx (1818-1883), no I Congresso Internacional dos Trabalhadores, conhecido como Primeira Internacional, que passou a ser a proposta oficial do marxismo. Embora, oficialmente assumida pelos marxistas, a concepção de educação integral surgiu e foi estruturada em sua prática pedagógica, por um anarquista com bases e objetivos libertários para a educação, conforme destaca Ghiraldelli (1990).

31Louis Michel Leppelletier de Saint Fargeau foi um político francês eleito em 1789 como presidente do Parlamento de Paris e deputado da nobreza aos Estados Gerais, elaborou, assim como Condorcet, um Plano Nacional de Educação, transformando-o em projeto que foi votado no ano de 1793. Em seu plano, o sistema nacional de educação é concebido como peça chave para o desenvolvimento do novo regime político e social.Pela educação formar-se-ia o homem novo, liberto das sujeições da antiga ordem e da fortuna de nascimento

Segundo Gallo (2002), Paul Robin, após assumir a direção do Orfanato Prévost em Cempuis, na França, no período de 1880 a 1894, desenvolveu uma experiência de educação integral, em virtude da qual novos conceitos foram construídos. Dentre eles, destaca-se que a educação integral é um processo de formação humana permanente, sem término, concebendo o homem em constante construção e reconstrução. Sob esse ponto de vista, educação integral é correlata de formação integral. Sobre isso, Bakunin (1814-1876), o revolucionário e anarquista russo, escreve:

[...] para que os homens sejam morais, isto é, homens completos no sentido mais lato do termo, são necessárias três coisas: um nascimento higiênico, uma instrução racional e integral, acompanhada de uma educação baseada no respeito pelo trabalho, pela razão, pela igualdade e pela liberdade, e um meio social em que cada indivíduo, gozando de plena liberdade, seja realmente, de direito e de fato, igual a todos os outros (BAKUNIN, 1979, p. 50).

Os anarquistas do século XIX tinham clareza de que tal formação nunca estaria completa, pois também a profissão, seja ela qual for, é mutável, dinâmica. Na perspectiva emancipatória, a educação integral propunha a integração do trabalho manual e do trabalho intelectual numa verdadeira superação dessa dicotomia. Sua realização prática no mundo da produção significava a superação da alienação, dando ao trabalhador a consciência da realização de seu trabalho, assim Bakunin descreve:

[...] estamos convencidos de que no homem vivo e completo cada uma destas duas atividades, muscular e nervosa, deve ser igualmente desenvolvida e que, longe de se anularem mutuamente, cada uma delas deve apoiar alargar e reforçar a outra: a ciência do sábio se tornará mais fecunda, mais útil e mais vasta quando o sábio deixar de ignorar o trabalho manual, e o trabalho do operário instruído será mais produtivo que o do operário ignorante. Donde se conclui que, no próprio interesse tanto do trabalho como da ciência, é necessário que não haja mais operários nem sábios, mas apenas homens (BAKUNIN, 1979, p. 38).

Nessa trajetória, é possível perceber que, no desenvolvimento de uma educação integral, em uma concepção emancipatória, o processo educativo é parte de uma proposta maior de sociedade comprometida com os princípios humanistas e democráticos. A conscientização de si e da realidade são elementos constituidores da transformação. Esse processo de conscientização e de libertação, numa ação dialógica entre educando e educadores, deve contribuir para uma sociedade mais justa e democrática. É com esse espírito democrático, conforme afirma Gallo (2002) que, na concepção anarquista, a prática da educação integral desenha-se como articulação de três instâncias básicas: a educação intelectual, a educação física – que se subdivide em esportiva, manual e profissional – e a educação moral. A educação

integral, nesse contexto, concebia a escola como uma comunidade que deveria estruturar-se, segundo os valores da igualdade, liberdade e solidariedade.

Para os anarquistas, não basta o saber pelo saber; o fundamental é o saber compreendido dialeticamente em toda sua dimensão. Isso requer uma prática pedagógica globalmente compreensiva do ser humano em sua integralidade, em suas múltiplas relações, dimensões e saberes, reconhecendo-o em sua singularidade e universalidade. Dessa forma, uma sociedade socialista libertário-anarquista seria, então, a realização do homem completo, livre e senhor de suas habilidades, conforme afirma Gallo (2002).

Segundo Bakunin (1979), a educação e a instrução são de fundamental importância para a conquista da liberdade. É por intermédio da educação – seja a institucional, realizada nas escolas, ou a informal, praticada pela família e pela sociedade como um todo – que as pessoas entram em contato com toda a cultura já produzida pela humanidade. Para ele, a realização do homem completo, senhor de si, pode se efetivar por meio da apropriação do saber, que contribui para que os homens desenvolvam livremente todas as suas faculdades, fazendo valer as concepções dos projetos pedagógicos, que veem na liberdade o princípio básico da convivência social. Em documento escrito em 1863, só reproduzido em “Life of Bakunin”, obra poligrafada por Max Nettlau, Bakunin afirma:

A razão, a verdade, a justiça, o respeito humano, a consciência da dignidade pessoal, solidária, inseparável do respeito humano de todos; o amor a liberdade para si mesmo e para os demais, o culto do trabalho como base e condição do direito, o desprezo pela demagogia, a mentira, a injustiça, a covardia, a preguiça, tais deveriam ser as bases fundamentais da educação pública. Deve antes de tudo, formar homens, depois trabalhadores especializados e cidadãos, e na medida que avance a idade das crianças, a autoridade será cada vez mais substituída pela liberdade, de modo que os adolescentes, ao chegar a maior idade e sendo emancipados de acordo com a norma geral, podem haver esquecido como em sua infância haviam sido criados e educados de outro modo que pela liberdade (BAKUNIN, 1863 apud LEVEL, 1976, p. 2).

Bakunin insiste muito particularmente na educação, no sentido de formar “primeiro homens, depois trabalhadores especializados”:

Para ser perfeita, a educação haverá de ser mais individualizada do que é agora. Individualizada no sentido da liberdade, e unicamente mediante o respeito da liberdade, inclusive as crianças, deverão ter por objetivo, não o adestramento do caráter, da inteligência e do coração, mas sim seu despertar a uma atividade independente e livre, nem outro culto, quer dizer outra moralidade, outro objetivo que o respeito da liberdade de cada um e de todos, a simples justiça, não jurídica mas sim humana, a simples razão, não teológica, nem metafísica, senão cientifica, e o trabalho tanto físico como intelectual, como base obrigatória para todos de toda dignidade, de toda liberdade, de todo direito (BAKUNIN, 1863 apud LEVEL, 1976, p. 2).

Em relação ao objetivo maior da educação, prossegue Bakunin: “Tal educação estendida em benefício de todos, tanto as mulheres como os homens, em novas condições econômicas e sociais, fariam desaparecer muitas supostas diferenças naturais” (IBID).

Bakunin expôs estas ideias, discutindo estes problemas há mais de um século, no ano de 1869, em um jornal lido por trabalhadores manuais e, não esqueçamos, em uma série de artigos intitulados “O ensino integral”.

Em decorrência desse movimento que marcava o cenário internacional, no Brasil, a concepção de educação integral, vista sob essa ótica da educação na modernidade, chegou com os imigrantes europeus no final do século XIX. Abordaremos essa parte da pesquisa em um capítulo especifico sobre a educação integral no Brasil.

Essas breves observações apresentadas, neste capítulo, apenas tateiam o vasto terreno da educação tanto na modernidade como na história da humanidade, da mesma forma como o faz no campo vasto da história da educação e da pedagogia. Até aqui, procurou-se fazer um retrospecto histórico das bases e dos fundamentos clássicos da tradição educacional no ocidente. Por força das circunstâncias, procedeu-se a um corte histórico que parte da educação na Grécia Antiga e estende-se, até a Modernidade, focalizando a educação sob a perspectiva da integralidade e suas possíveis afirmações, interpretações ou rupturas. No próximo capítulo, buscaremos descrever e explorar as mesmas caracterizações sobre os Projetos de Educação Integral e de organização de Escolas de Tempo Integral presentes na história da organização escolar do Brasil.

CAPÍTULO II - A LUTA PELA EDUCAÇÃO INTEGRAL E PELA ORGANIZAÇÃO