• Nenhum resultado encontrado

A partir do século XVIII, principalmente com a contribuição de Immanuel Kant (1724-1804), surgem novas perspectivas para fundamentar eticamente o conceito de dignidade humana e consequentemente a noção de pessoa humana. Segundo Kant, a dignidade humana encontra-se na capacidade de autonomia, ou seja, no fato de ser o homem a única criatura capaz de se submeter livremente às leis morais que são reconhecidas como procedentes da razão prática.68

Norberto Bobbio, em sua célebre obra “A era dos direitos”, nos ensina a respeito de Kant:

67 PICO DELLA MIRANDOLA, Giovanni. Discurso sobre a dignidade do homem. Trad. Maria de Lurdes Sirgado Ganho. Lisboa: Edições 70, 2001, p. 56.

68 SOARES, André Marcelo M. Um breve apontamento sobre o conceito de dignidade da pessoa humana. Disponível em: http://goo.gl/AdUzhN. Acesso em 02/11/2015.

40

Definindo o direito natural como o direito que todo homem tem de obedecer apenas à lei de que ele mesmo é legislador, Kant dava uma definição da liberdade como autonomia, como poder de legislar para si mesmo. De resto, no início da Metafísica dos costumes, escrita na mesma época, afirmava solenemente, de modo apodítico – como se a afirmação não pudesse ser submetida à discussão –, que, uma vez entendido o direito como faculdade moral de obrigar outros, o homem tem direitos inatos e adquiridos, e o único direito inato, ou seja, transmitido ao homem pela natureza e não por uma autoridade constituída, é a liberdade, isto é, a independência em face de qualquer constrangimento imposto pela vontade do outro, ou mais uma vez, a liberdade como autonomia.69

Assim, o homem é o único ser que existe como um fim em si mesmo, e não como meio a se atingir algo. Afirmava Kant:

O homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário dessa ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros serem racionais, ele tem sempre de ser considerado simultaneamente como o fim.70

O homem, portanto, é um fim em si mesmo, é uma pessoa. Por meio dessa ideia, Kant atribuía um valor relativo às coisas, em contraposição ao valor absoluto da dignidade humana, iniciando, assim, um novo período no conceito de pessoa, ou seja, o homem é o único ser no mundo dotado de vontade, isto é, de capacidade de agir livremente, sem ser conduzido pela invencibilidade do instinto.

Luís Roberto Barroso, refletindo acerca da influência do pensamento kantiano na construção do conceito de liberdade e dignidade da pessoa, nos ensina:

Os dois outros conceitos imprescindíveis são os de autonomia e dignidade. A autonomia expressa a vontade livre, a capacidade do indivíduo de se autodeterminar, em conformidade com a representação de certas leis. Note-se bem aqui, todavia, a singularidade da filosofia kantiana: a lei referida não é uma imposição externa (heterônoma), mas a que cada indivíduo dá a si mesmo. O indivíduo é compreendido como um ser moral, no qual o dever deve suplantar os instintos e os interesses. A moralidade, a conduta ética consiste em não se afastar do imperativo categórico, isto é, não praticar ações senão de acordo com uma máxima que possa desejar seja uma lei universal. A dignidade, na visão kantiana,

69 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. 21. tiragem. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p. 49.

70 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Paulo Quintela 2. ed. São Paulo: Coleção Os Pensadores, Abril, 1984, p. 134.

41

tem por fundamento a autonomia. Em um mundo no qual todos pautem a sua conduta pelo imperativo categórico – no reino dos fins, tudo tem um preço ou uma dignidade. As coisas que têm preço podem ser substituídas por outras equivalentes. Mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e não pode ser substituída por outra equivalente, ela tem dignidade. Tal é a situação singular da pessoa humana. Portanto, as coisas têm preço, mas as pessoas têm dignidade. Como consectário desse raciocínio, é possível formular uma outra enunciação do imperativo categórico: toda pessoa, todo ser racional existe como um fim em si mesmo, e não como meio para o uso arbitrário pela vontade alheia. 71

Com isso, é a partir dos fundamentos da liberdade e dignidade em Kant que se assenta todo o valor axiológico, bem como toda a ética de modo geral, ou seja, o mundo das normas, as quais, contrariamente ao que sucede com as leis naturais, apresentam-se sempre como preceitos suscetíveis de consciente violação. Assim, fundado na liberdade, o individualismo emerge como embasamento dos direitos humanos, sendo ele parte integrante da lógica da modernidade que concebe a liberdade como a faculdade de autodeterminação de todo ser humano.72

De fato, o pensamento de Kant a respeito do conceito de pessoa humana e sua dignidade influenciaram diretamente os pensadores da modernidade – a partir do ano de 1776 – principalmente no que diz respeito à construção dos direitos inatos à pessoa humana, entre eles os direitos humanos.

Duas são as ideias centrais que nortearam o direito após Kant, quais sejam: as teorias contratualistas e a laicidade do direito natural. Essas ideias estão claramente presentes nas temáticas da liberdade, autonomia e individualismo encontradas nas primeiras declarações de direitos na América do Norte, como na Declaração de Direitos do Povo da Virgínia (1776), na Constituição Americana (1787) e também na Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789).

O século XVIII trouxe uma nova visão a respeito do ser humano, seus direitos e dignidade frente à autoridade estatal. De fato, a partir do pensamento de Kant e das

71 BARROSO, Luís Roberto. A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo: Natureza Jurídica, Conteúdos Mínimos e Critérios de Aplicação. Versão provisória para debate público. Mimeografado, dezembro de 2010. Disponível em: http://goo.gl/XE2C24. Acesso em 05/11/2015.

72 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 37.

42

Declarações e Constituições acima citados, um tempo novo a respeito da teoria dos direitos humanos e fundamentais, foi sendo construído.

Após este período histórico, a compreensão da pessoa passou a se relacionar com o fato de o homem ser a única criatura que dirige a sua vida em função de suas preferências valorativas. Ou seja, o homem como sendo o legislador e sujeito universal, uma vez que aprecia os valores éticos e submete-se voluntariamente a essas normas valorativas.

Porém, mesmo formando um sistema correspondente à hierarquia de valores, prevalente no meio social, essa hierarquia nem sempre coincide com aquilo que prevê as leis. Por isso, mesmo com o avanço do conceito de pessoa e de sua dignidade, bem como dos direitos inerentes a ela, sempre houve certa tensão entre a consciência jurídica da coletividade e as normas pelo Estado.73

Houve, por fim, outras etapas na construção dos direitos humanos após a era da “autonomia” e das declarações, mas, sem dúvida, a partir deste momento histórico é que os direitos humanos começaram a ser identificados como “valores” indispensáveis para a convivência humana.

Documentos relacionados