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2. Os Paradoxos da Dependência e do Desenvolvimento

2.4 Da Dependência Industrial à Dependência Financeira

2.4.1 O “Consenso de Washington”

Perry Anderson (1998, p. 9) ensina que o neoliberalismo nasceu logo após a Segunda Guerra Mundial na região da Europa e da América do Norte onde imperava o capitalismo. Seu texto de origem é “O Caminho da Servidão”, de Friedrich Hayek (1994), escrito em 1944, consistente num ataque apaixonado contra qualquer limitação dos mecanismos de mercado por parte do Estado, denunciada como uma ameaça letal à liberdade econômica e política, numa clara oposição ao Estado intervencionista e de bem-estar.

Até a crise econômica de 1973, as bases dessa nova forma de interpretar o capitalismo e combater o keynesianismo e o solidarismo foram singelas. A partir de então, quando o mundo capitalista caiu em profunda e longa recessão, combinando baixas taxas de crescimento e altas taxas de inflação, as idéias neoliberais passaram a ganhar terreno. Hayek e seus companheiros – Milton Friedman, Lionel Robbins, Ludwig Von Mises, Walter Eupken, Walter Lipman, Michael Polanyi, Salvador de Madariaga, entre outros – buscaram demonstrar que o poder excessivo dos sindicatos e o movimento operário tinham destruído os níveis necessários de lucros das empresas e desencadeado processos inflacionários que deflagraram a crise generalizada das economias de mercado. Era preciso, defendiam, manter um Estado firme para combater o poder dos sindicatos, mas parco em todos os gastos sociais e nas intervenções econômicas e a estabilidade monetária deveria ser a meta suprema de qualquer governo. Para tanto, pregavam disciplina orçamentária, com contenção de gastos em bem- estar; restauração da chamada “taxa natural de desemprego”, como forma de quebrar a hegemonia dos sindicatos; reformas fiscais para incentivar agentes econômicos, ou seja, uma nova desigualdade deveria voltar a dinamizar as economias avançadas, retomando o curso normal da acumulação e do livre mercado (ANDERSON, 1998, p. 10-11).

Os países latino-americanos sentiram, especialmente após a primeira crise do petróleo em 1973, o esgotamento das possibilidades de crescimento e suas economias passaram a ser marcadas pelo endividamento e pela falta de recursos do Estado para manter o ritmo de crescimento. A opção daquele momento era o ajustamento, ou seja, a contenção da

demanda interna, para evitar que o choque externo se transformasse em inflação permanente, além de viabilizar o equilíbrio externo. Os recursos a financiamentos externos foram um dos mais intensos de toda a história, o que dependia de um ambiente internacional marcado por liquidez abundante e créditos “fáceis e baratos”, de maneira que a trajetória de crescimento fosse mantida com financiamentos externos (BENECKE; NASCIMENTO, 2003, p. 15).

Esse panorama mudou radicalmente após a segunda crise do petróleo, em 1979, e, mais adiante, com a moratória decretada pelo México, em 1982, redundando em suspensão de novos empréstimos para a região como um todo pelo sistema financeiro internacional. As hiper-desvalorizações das moedas para facilitar exportações geraram inflação; os países não conseguiam atingir superávits comerciais para saldar suas dívidas, o que constituía um sério problema fiscal para os Estados; o período era de redemocratização e, apesar do clamor social, os Estados precisaram conter os gastos. Tudo redundou num abrupto estancamento do crescimento econômico, criando um clima de instabilidade constante e crescente.

Iniciaram-se, então, nos círculos internacionais, debates para se traçar soluções para a região. Uma delas foi realizada em 1989 em Washington, numa conferência do

Institute for International Economics, a partir da qual o economista inglês John Williamson42

cunhou a expressão “Consenso de Washington”, decorrente de um artigo em que faz uma série de propostas orientadoras para uma nova ação dos Estados latino-americanos, no que tange a ajustes fiscais e reformas orientadas para o mercado, idéias tipicamente neoliberais43, que já haviam sido colocadas em prática pelo governo de Margareth Thatcher, na Inglaterra, a partir de 1979, e pelo governo de Ronald Reagan, nos Estados Unidos, a partir de 1980 (BENECKE; NASCIMENTO, 2003, p. 17).

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De forma sintética, são dez os pontos destacados por Williamson: (1) restrições ao consumo e incentivo à poupança, para diminuir a dependência de recursos externos; (2) rígido controle dos gastos públicos, de forma a evitar a formação de déficits que provoquem inflação; (3) maior direcionamento dos recursos públicos para setores sociais, como ensino básico e profissionalizante; (4) criação de mecanismos que propiciem um controle mais efetivo da economia, para evitar distorções; (5) aumento da supervisão dos sistemas bancários, visando evitar excessiva especulação financeira; (6) abertura comercial, para propiciar estímulo à competitividade pelas empresas locais; (7) liberdade cambial, de forma a se evitar artificialismos na cotação da moeda; (8) aumento da competitividade, através da modernização das indústrias, para inserção na economia globalizada; (9) respeito à propriedade intelectual, para atrair investimentos externos e (10) confiabilidade das instituições, visando garantir a manutenção de regras estáveis no mercado. No entanto, Benecke e Nascimento (2003, p. 19) destacam que as chamadas “reformas da segunda geração” defendidas por Williamson não foram implementadas, o que impediu a redução das desigualdades sociais.

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Emir Sader (1998, p. 35) comenta que o neoliberalismo na América Latina é filho da crise fiscal do Estado e seu surgimento foi delimitado pelo esgotamento do Estado de bem-estar social e, principalmente, da industrialização substitutiva das importações, ao estilo da CEPAL. A crise da dívida apenas acentuou os traços dessa crise de direção do processo de acumulação de capital, desdobrada ao longo da “década perdida”.

O documento se transformou, efetivamente, na Cartilha do Consenso de Washington, decorrente das conclusões da reunião ocorrida na cidade que leva o mesmo nome, em 1989, que contou com a participação do Fundo Monetário Internacional, do Banco Mundial, do Banco Interamericano de Desenvolvimento e de representantes dos países da América Latina. A doutrina que dele decorre marca a postura “de dependência externa virtualmente total” (BATISTA, 1994, p. 12). Seus postulados foram amplamente difundidos, seja pelos meios de comunicação, seja no meio acadêmico, influenciando políticos e economistas, currículos e universidades, dada a necessidade de sua imediata e inquestionável penetração, que não deveria promover o debate, mas o “consenso” na América Latina.

A cartilha buscou reduzir significativamente o papel e a responsabilidade do Estado-nação, como se ele não tivesse condições políticas, econômicas e administrativas de exercer um atributo da soberania: fazer política monetária e fiscal. Atribuiu, ao contrário, importância de destaque aos Organismos Financeiros Internacionais, que deveriam desempenhar a função modernizadora do liberalismo econômico e político. A economia de mercado deveria sobrepujar a democracia, subordinando, se necessário, o político ao econômico, e a modernização da América Latina deveria se fazer assim, prioritariamente, por um processo de reformas econômicas. Paulo Nogueira Batista (1994, p. 14) destaca que “a democracia não seria um meio para se chegar ao desenvolvimento econômico e social mais (sic) um subproduto do neoliberalismo econômico”, de maneira que para o Consenso de Washington, a seqüência preferível pareceria ser, em última análise, capitalismo liberal primeiro, democracia depois.

Odete Maria de Oliveira (2005, p. 209-210) ensina que as reformas econômicas liberalizantes anunciadas pelo Consenso de Washington buscavam fazer crer que “os problemas e as crises do desenvolvimento econômico latino-americano não tinham raízes em ingerências externas”, mas “encontravam-se exatamente nas formas equivocadas de suas políticas nacionalistas [...] as quais adotavam modelo de desenhos autoritários e fechados”. A solução seria, então, a abertura dos mercados (de comércio e de capitais) para que investidores americanos e europeus pudessem defender as indústrias mediante aplicação de políticas neoliberais. A autora conceitua o Consenso de Washington como o conjunto de “princípios voltados ao sucesso do mercado livre, elaborado pelo governo dos Estados Unidos e pelas instituições financeiras por ele comandadas, postos em execução de diversas formas por essas instituições”, especialmente pelo Fundo Monetário Internacional que o adotou

plenamente nas recomendações constantes das reformas “sugeridas” aos Estados solicitantes de assistência financeira.

Os propósitos da cartilha têm funções bem definidas de pregar o mais amplo liberalismo de mercados (“mínimo de governo e máximo de iniciativa”), e abrangem dez áreas fundamentais – também defendidas pelo próprio FMI – tal como afirma Paulo Nogueira Batista (1994, p. 26-39): (1) disciplina fiscal; (2) priorização dos gastos públicos; (3) reforma tributária; (4) liberalização financeira; (5) regime cambial; (6) liberalização comercial; (7) investimento direto estrangeiro; (8) privatização; (9) desregulação e (10) propriedade intelectual, que, juntos, convergem para dois objetivos básicos, quais sejam, a drástica redução do Estado e o máximo de abertura à importação de bens e serviços e à entrada de capitais de risco.

Sob o falso manto da responsabilidade fiscal, o Estado deveria buscar um equilíbrio tão baixo entre receitas e despesas, que praticamente inviabiliza suas funções essenciais de incentivador do desenvolvimento, de promotor do pleno emprego e da justiça social. Em verdade, os desideratos sociais eram vistos como mera decorrência da liberalização econômica. O Estado deveria ser reduzido, supostamente para torná-lo mais eficiente, daí a defesa das privatizações, que assegurariam aos Tesouros recursos não inflacionários e não tributários, mas indispensáveis ao equilíbrio das contas governamentais. Por outro lado, as propostas washingtonianas de política tributária eram conservadoras, no sentido de que não deveria ser utilizada como instrumento de política econômica ou social. A distribuição tributária deveria ser a mais ampla possível, com especial ênfase aos impostos indiretos, que, sabidamente, pesam sobremaneira sobre o bolso dos menos abastados, dificultando, se não tornando impossível, a redistribuição de riqueza, fator de distanciamento entre ricos e pobres, mas atraente para setores empresariais.

Os desacertos do Consenso de Washington são notáveis, e isso decorre de diversos fatores. Suas avaliações e prescrições deveriam aplicar-se uniformemente a todos os países latino-americanos, sem se levar em consideração seus respectivos graus de estágio de desenvolvimento, dimensão ou problemas concretos enfrentados, de maneira que o diagnóstico e a terapêutica seriam idênticos para o Brasil e o Uruguai, por exemplo, em que pese suas distintas realidades nos mais diversos âmbitos (BATISTA, 1994, p. 40). Não se reservou qualquer espaço para políticas sociais, como educação, saúde, distribuição de renda, combate à desigualdade e à pobreza e proteção ao meio-ambiente, já que se partiu do pressuposto de que tais problemas seriam “resolvidos” como uma conseqüência natural da

liberalização econômica,44 “emergindo espontaneamente do livre jogo das forças de oferta e procura do mercado, o qual se auto-regularia sem rigidez e – por si só – todas essas questões secundárias não fariam parte das metas das reformas pregadas pelo Consenso de Washington” (OLIVEIRA, 2005, p. 213-214).

A adoção de tal cartilha, enfim, apenas fez produzir e reproduzir a dependência, totalmente embutida na América Latina, e, especialmente, no Brasil, em que ainda há a preservação dos privilégios das elites, que satisfazem seu afã de modernização, colocando o desenvolvimento – efetiva melhoria das condições de vida da população – como um projeto social subjacente (FURTADO, 2004, p. 484).