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O Contexto Teórico e Metodológico: A Contribuição da Corrente Humanística

No documento Geografia e Música: diálogos (páginas 104-111)

A partir da década de 1970, acompanhando um movimento geral de crítica ao pensamento ocidental, que rebate nas ciências sociais, em particular na Geografia (CLAVAL, 2014), assistimos ao surgimento da chamada corrente humanística nesta disciplina. O termo “humanística” foi difundido a partir de 1967, no texto “China”, de Yi-Fu Tuan que, junto com outros autores, como Relph, Buttimer e Lowental, trabalharam no sentido de introduzir, pionei- ramente, a perspectiva humanística na análise de fenômenos espaciais. Entre outros aspectos, a Geografia Humanística é marcada pela crítica às geografias de cunho lógico-positivista, que enquadram o mundo em teses e teorias “fechadas”, onde os homens são analisados como mais um elemento da equação ou teorema, ou segundo as palavras de Mello:

Posicionando-se contra testes hipotéticos, teorias e leis, a geografia humanística é crítica e radical por não perfilar com aqueles que excluem de suas pesquisas os sentimentos, valores,

enfim, as experiências dos homens que criam, atuam e vivem no espaço, o que se contrapõem aos positivistas, que falam de um mundo sem homens ou contados aos montes como gado, ou meramente transformados em números (MELLO, 1990, p. 22-23).

Dessa forma, a Geografia Humanística é antes de tudo uma geografia que liberta, pois empossa o homem, no sentido lato da palavra, que planeja, sonha e conhece o espaço transformado em lugar, como principal produtor e produto de seu próprio meio, estudando dessa maneira o mundo habitado e efetivamente vivido por povos, comunidades e sociedades, ponto de vista corroborado por Mello (1990), quando esse, recorrendo aos precursores desse campo do saber geográfico, sublinha:

O mundo simples e ‘certinho’ dos positivistas difere do(s) mundo(s) vivido(s) analisados pelos humanísticos, atento aos valores e ambivalências dos seres humanos, que não são máquinas. Nos estudos humanísticos há uma troca constante entre pesquisado e pesquisador, estes diferentes dos sábios fechados em suas redomas de conhecimentos (e teorias), imerso e inserido nas experiências investigadas, adotando uma filosofia crítica e refletida, com vistas a aclarar a consciência espacial dos seres humanos (MELLO, 1990, p. 22-23).

A corrente humanística se baseia em alguns pressu- postos das filosofias do significado como a fenomenologia, o existencialismo, o idealismo e a hermenêutica para analisar a relação/introjeção/pertencimento dos indivíduos e seus

meios ambientes. Alguns trabalhos desenvolvidos no bojo desse paradigma trabalham com mais intensidade um ou outro pressuposto filosófico. Entretanto, a valorização do homem visando compreender e interpretar seus sentimentos e entendimentos do espaço e, até mesmo, como a simbologia e o significado dos lugares podem afetar a organização espacial, são traços comuns compartilhados dentro da produção geográfica humanística, conferindo a esses escritos um eixo central de reflexão e análise (MELLO, 1990).

A fenomenologia é a filosofia presente em um maior número de estudos humanísticos em geografia. Muitos autores, a partir de pontos de vistas diferentes, contribuíram de maneira diversa para a constituição de um horizonte fenomenológico. O termo foi criado, em 1764, por J. H. Lambert e, a partir daí, recebeu significações diferentes, notadamente àquelas dadas pelos alemães Immanuel Kant (1724-1804) e Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) e, sobretudo, por Edmund Husserl (1859-1938) (GOMES, 2003).

A fenomenologia é um arcabouço filosófico que busca compreender os fenômenos como eles são em sua essência, partindo da investigação dos atos da consciência sobre o mundo vivido de cada indivíduo ou grupo social (MATTOS, 1988, p. 48).

Sendo assim, o método fenomenológico “envolve a procura do pesquisador no sentido de identificar como as pessoas estruturam seu ambiente de um modo inteiramente subjetivo e integrado a ele” (MATTOS, 1988, p. 48).

Cabe à fenomenologia, por exemplo, o pioneirismo na adoção de dimensões como os laços de vizinhança, a preferência por determinados pontos de uma cidade, a afeição a um lugar

(topofilia), bem como o ódio a certos espaços (topofobia), o medo a outros (agorafobia), a afeição a ambientes fechados (claustrofilia), a morte dos lugares (topocídio), a restauração de outros (toporeabilitação), afora a topoindiferença, (TUAN, 1980), bem como as experiências cotidianas na abordagem geográfica, além de extrapolar o embate clássico fomentador da reflexão filosófica, ou seja, a relação sujeito – objeto, pois entende que o ser e o fenômeno não podem ser concebidos de maneira dissociada (MELLO, 1990). Da filosofia fenomenológica de Husserl, a Geografia Humanística traduziu a noção de mundo vivido para lugar ou lar. Trata-se de um todo inseparável composto pelo meio-ambiente, pessoas, amigos, conhecidos, “canções que a minha mãe me ensinou” e as relações cotidianas (SCHUTZ, 1979 apud MELLO, 1991). O mundo vivido de cada um já existia antes do nascimento da pessoa, que vivencia e interpreta o “seu” mundo vivido, a partir de valores e estoques de experiências próprios e de outros indivíduos, que lhe transmitem conhecimentos do passado e do presente, e que permitem antecipar, de certa maneira, o futuro. O intermundo é o mundo comum a diferentes pessoas: cenário, objeto das ações e das interações dos seres humanos. O mundo vivido continuamente experienciado é modificado pelas ações do homem, que também modifica as suas ações. Já o estoque de experiências, forjado no dia-a-dia pela cultura informal e a educação formal, é um enriquecimento cotidiano prático e teórico, que fornece ao homem elementos para agir e pensar. Mas esse conhecimento, fruto da natureza humana, não é homogêneo e sim incoerente, parcial, contraditório e/ou ambíguo. Isso posto, vale repetir, o conhecimento do mundo é recebido pela cultura (formal e informal) e completada pela experiência pessoal, o que gera intimidade e afetividade pelo lugar vivido (MELLO, 1991).

A hermenêutica, outra filosofia do significado utilizada pelos geógrafos humanísticos, tem sua origem na Antiguidade, inspirada

na mitologia grega de Hermes, deus da comunicação, encarregado de trazer as mensagens do Olimpo (GOMES, 2003). A constituição de um método hermenêutico moderno começa com o alemão Johann Gottfried Herder (1744–1803), estabelecendo uma inteligibilidade circunscrita às condições espaço-temporais (GOMES, 2003), sendo seguido por outros filósofos como Wilhem Dilthey (1833-1911). Baseada na noção de experiência vivida (um complexo de atos), qualquer coisa para ser entendida precisa de um quadro de referência (MELLO, 1991). Também conhecida como filosofia interpretativa, a hermenêutica busca, em linhas gerais, compreender e interpretar as contradições e ambivalências da consciência dos indivíduos e/ou grupos sociais com relação ao seu meio ambiente natural ou socialmente produzido. Desta forma, para Dilthey:

É pelo processo de compreensão que a vida é esclarecida sobre ela mesma em suas profundezas e, por outro lado, nós só compre- endemos a nós mesmos e compreendemos os outros seres na medida em que transferimos o conteúdo de nossa vida para toda forma de expressão de uma vida, seja ela nossa ou estranha a nós. Assim, o conjunto da experiência vivida, da expressão e da compreensão é em todo o lugar o método científico, pelo qual a humanidade existe para nós enquanto objeto das ciências do espírito (ou sociais) (GOMES, 2003, p. 113).

A compreensão foi, então, promovida ao nível de instrumento epistemológico passando a ser um novo polo da produção do saber originário do pensamento artístico e religioso, manifestando-se mais tarde nas ciências, principalmente nas ciências sociais. Compreender é alcançar uma significação,

explicar o obscuro, revelar uma essência. Os fatos são expressivos por serem portadores de um sentido. Ainda segundo Dilthey, compreender seria também o ato de encontrar nos fatos a intenção dos outros, de se colocar em comunicação com eles. A compreensão seria sempre sintética, cujo objeto não pode ser decomposto em elementos mais simples, e deve ser guiada pela intuição e pelo sentimento, sem descartar a subjetividade, de tal maneira que a compreensão possa alcançar imediatamente as totalidades sem recorrer à razão (GOMES, 2003).

Por sua vez, a corrente idealista defende a posição de que os fenômenos geográficos podem ser analisados e interpretados através de um conjunto de ideias, criadas através de um conhecimento acumulado na experiência do mundo, seja ao nível do indivíduo ou da coletividade. Uma primeira meta dos geógrafos idealistas é elucidar o significado da atividade humana em seu contexto cultural, tendo em vista que os eventos e fenômenos do mundo adquirem significância e significado para os indivíduos e grupos em termos de ideias e teorias (MELLO, 1991). No discurso idealista, a necessidade da teoria no sentido lógico-positivista, é negada, contudo, sem abandonar uma análise descritiva e analítica. O homem é um ser teorizante. Tais teorias são formuladas a partir da observação de certos dados da realidade sócioespacial. Dessa forma, o trabalho do geógrafo segundo Leonard Guelke, um dos expoentes da corrente idealista, é repensar os pensamentos daqueles que está investigando, procurando compreender como o indivíduo reage e age aos estímulos da realidade. O geógrafo idealista condena a descrição do mundo em termos de leis e teorias prontas, até porque a filosofia idealista capacita o pesquisador a explicar as ações humanas, de uma maneira crítica, sem o emprego de teorias. De acordo com Guelke, o homem “é um animal teorético cujas ações são baseadas no entendimento teorético de sua situação” (MELLO, 1991, p. 41).

Ainda na galeria de filosofias do significado, mobilizadas entre os geógrafos da corrente humanística encontramos, igualmente, o existencialismo, surgido como corrente filosófica após a Segunda Guerra Mundial e semelhante, em vários pontos, com a fenomenologia, o que conduz alguns geógrafos a uma dificuldade em separá-los. A diferença básica se remete à primazia da essência na fenomenologia – a atribuição de significados resultado da existência da consciência – enquanto para os existencialistas o ser, vem antes da essência, ou o homem faz a si mesmo (MELLO, 1991). As primeiras reflexões de caráter existenciais têm como figura central o pensador dinamarquês Sören Kierkegaard (1813-1855). Essa vertente filosófica defende a qualidade e o significado do indivíduo supervalorizado no mundo vivido:

o homem singular vale mais que a espécie” e a aversão a leis empíricas e métodos universais, ficando a cargo dos “atos livres dos agentes humanos sua geografia existencial” (MELLO, 1990, p. 39).

A primeira tarefa do método existencial, dessa forma, seria redescobrir a cada pegada um símbolo, no caso particular, no qual algum sujeito é considerado. Esses símbolos particulares conduzirão a símbolos coletivos. Cada “geografia existencial” é criada pelos atos livres dos agentes humanos. Seus valores advêm da própria existência e das relações entre os indivíduos e o mundo da coletividade (MELLO, 1991).

Em suma, a introdução das filosofias do significado no interior da disciplina há mais de trinta anos acrescentou “uma dimensão capital” (CLAVAL, 2014, p. 124) para a Geografia, mas, até então, relativamente negligenciada: “elas mostram o significado da experiência vivida na maneira pela qual os homens constroem o espaço no qual se desenvolvem” (CLAVAL, 2014, p. 124).

Além disso, as filosofias do significado promoveram também dentro da corrente humanística uma (re)teorização de duas categorias geográficas fundamentais: a de lugar e espaço.

No documento Geografia e Música: diálogos (páginas 104-111)