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O surgimento da indústria cultural e as consequências da modernidade

No documento Geografia e Música: diálogos (páginas 139-144)

Durante o século XX, a amplificação elétrica e eletrônica causaram grande impacto no registro dos sons, de forma a se tornarem sensivelmente mais similares ao original. A partir disso, formas de apreciação musical aumentaram na proporção que mais gravações de músicas eram realizadas. O comércio crescente de equipamentos de reprodução, de gravação de músicas, bem como demais equipamentos estruturaram a indústria fonográfica que cresceu de maneira mais significativa principalmente na segunda metade do século XX.

As técnicas de manipulação do áudio permitiram inovações na estética musical, bem como em recursos de correção das imperfeições ao longo do processo de gravação. Foram criados desde equipamentos de redução de ruído até técnicas de correção de afinação, as quais passaram a ser utilizadas

extensivamente na pós-produção5. Toda essa sofisticação técnica

viabiliza resultados estéticos muito próximos ao de uma sala de concerto. É chegado um ponto que equipamentos de gravação e reprodução, juntamente com os recursos de gravação multicanal e de pós-produção, superam os limites de registro do som, o

As novas gravações soaram tão melhores que as velhas causando um aumento na expectativa dos amantes da música. Ouvintes que compraram equipamentos sofisticados para ouvir o melhor da música clássica agora veem (ou, mais precisamente, escutam) aquilo que o antigo sonho de trazer música de primeira classe para dentro dos lares exatamente como foi tocada – ideia articulada anteriormente por Thomas Edison – agora era possível. Audiófilos se tornaram defensores por maior e maior fidelidade (MILLARD, 1995, p. 209, tradução nossa7).

Um novo público consumidor aparece: o audiófilo, um especialista em equipamentos de áudio que supostamente reproduzem um som de alta fidelidade. O audiófilo é frequen- temente confundido com outro personagem: o melômano ou o “amante da música”, assíduo conhecedor de música. O audiófilo é na verdade um fetichista que coleciona fonogramas com o selo

hi-fi8, investe grandes importâncias em equipamentos de som de

características técnicas que supostamente permitem a reprodução mais fiel possível do som gravado. As tecnologias para a audiofilia:

foram vistas como símbolos do progresso de uma era e cultuadas como emblemas de modernidade. [...] Os aparelhos fonográficos serviram para exaltar o mito de uma sociedade cuja medida de avanço era dada pelo progresso do conhecimento técnico-científico. Quanto mais complexas essas tecnologias, mais encantadoras e quanto mais desafiadores fossem seus modos de funcionamento, maior o seu poder de sedução (IAZZETTA, 2009, p. 113-114).

Para Adorno (1938, p. 287), “a apreciação musical se rebaixa ao ‘fetichismo’ – particularmente um fascínio materialista vulgar

com o material técnico da música”9. Tal aspecto fetichista não se

aplica apenas aos equipamentos de som, mas também a qualquer objeto relacionado à música: ao culto a um instrumento musical de uma marca comercial famosa ou o ingresso de um show de uma banda. Não é possível mais considerar como apreciação, mas como acultuação de produtos disfarçados como objetos de valor simbólico. Adorno vai mais além sobre o que considera como apreciação quando relaciona com o conceito de formação do gosto musical, do juízo de valor e de liberdade de escolha:

O conceito de gosto se torna fora de moda por si mesmo. Gostar de um trabalho é quase o mesmo que reconhecê-lo. Os juízos de valor são fictícios para o ouvinte que se vê encurralado por uma padronização de gostos musicais. O direito de liberdade de escolha não pode ser mais exercido. As pessoas aprenderam a ouvir sem escutar (ADORNO, 1938, p. 271, tradução nossa10).

A segunda metade do século XX foi marcada por uma mudança paradoxal na apreciação musical: o mercado fonográfico cresceu e passou a exercer uma importância inédita na história da música. Ele passou a ser o foco central do público que compõe e aprecia música. Os discos, principal tipo de mídia utilizada nas gravações de música nesse período, se tornaram sinônimos de música. O principal motivo pelo qual a indústria se estabeleceu como elo foi financeiro: a indústria fonográfica acumulou uma grande quantidade de riqueza e, em parceria com os veículos de comunicação de massa, passou a financiar a maior parte da produção musical e, com isso, estabeleceu-se

como principal mediadora, afixando-se como eixo nos processos de criação, produção e consumo.

No Brasil, é notável que na metade do século XX o crescimento dos espaços de apreciação musical como teatros não acompanhou, tanto em número quanto em tamanho, o crescimento populacional urbano (BRASIL, 2010). Parte disso se deve a uma maior segmentação das indústrias de entretenimento e fonográfica, juntamente com a indústria das telecomunicações, que se tornaram mais significativas que a indústria de espetáculos musicais, das apresentações de concertos e da apreciação musical sociável. Outra questão é econômica: diferente das apresentações musicais, o custo de produção dos fonogramas é independente da quantidade de público consumidor, pois a maior parte do custo de produção ocorre apenas uma vez e é copiado por máquinas a partir de matrizes, logo o lucro pode ser muito maior e depender apenas do sucesso de vendas.

Durante esse período da música em especial, a razão

instrumental da lógica capitalista de produção e consumo de

bens (sendo os hits o principal produto das grandes radiodi- fusoras) fora consolidada. Para Adorno (2009), este tipo de modelo musical apresenta problemas. O primeiro e, talvez o mais importante, é a impossibilidade de uma livre composição, uma vez que a música enquanto produto precisa, em primeiro lugar, atender a uma demanda de mercado. O segundo problema está relacionado à criação dos gêneros musicais.

Os gêneros classificativos da música passaram a se tornar mais presentes e significativos no cotidiano dos ouvintes. Mais do que um catálogo, a delimitação de gêneros e, portanto, dos espaços em que esses gêneros sejam ouvidos com suas sociabilidades próprias, era a afirmação de diferentes grupos. Ora esses grupos eram sujeitos às pretensões de mercado da produção musical, ora era um grupo amador que, aos poucos, assimilou e difundiu as normas do mercado musical.

De acordo com Acosta (1982, p. 14-15, grifos do autor, tradução nossa) há uma relação entre estratos musicais e a taxonomia promovida pelo mercado:

primeiramente a música começou a ser estere- otipada em gêneros de acordo com a sua função e depois esses gêneros foram se tornando a única expressão de uma ou outra classe social .

Dessa forma “os gêneros musicais estão de alguma forma associados ao gosto de cada estrato social”(PAIXÃO, 2011, p. 25). Assim como nos demais mercados de massa, a indústria fonográfica segmenta seu mercado em classes de consumidores com supostas preferências estéticas, definindo perfis de consumidores, de forma a estereotipar um sistema de diferentes demandas de mercado por setores da sociedade.

Quando classificada pela indústria fonográfica, a questão dos gêneros de música está relacionada (pragmaticamente) à necessidade de separar os produtos musicais nas gôndolas das lojas que comercializam música gravada. Essa taxonomia do mercado fonográfico nem sempre respeita os critérios de classificação definida por pesquisas da musicologia sistemática. Os critérios da taxonomia de gêneros musicais estão norteados pelo marketing e não pela música em si.

Por esse motivo, a indústria cultural tem um duplo papel: em primeiro lugar, o de discretizar o gosto dos ouvintes, facilitando futuras estratégias de mercado a partir de subdivisões já organizadas pelo mercado ou que chegaram até ele. Em segundo lugar, o papel de difusão de novas obras (álbuns, bandas, até mesmo novos gêneros) através das gravadoras que, por sua vez, estão constantemente em busca de novos hits.

A reprodução de música em equipamentos de som até a década de 1980 predominava com uso de caixas acústicas

que emitiam o som para um determinado espaço físico. Várias pessoas podiam compartilhar seu uso de maneira social. Esses equipamentos se tornaram muito populares em situações como festas e comemorações, pois barateavam os custos dispensando a contratação de serviços de músicos. Até mesmo os meios de telecomunicação como rádio e televisão que transmitiam música ao vivo ou gravada proporcionavam um aspecto socializante. O telespectador pode até ouvir o rádio ou assistir televisão em seu quarto sozinho, mesmo assim permanece a sensação social, pois se trata de um veículo comum para outras pessoas que podem participar da mesma forma e ao mesmo tempo.

A partir da disponibilidade do rádio e de novas mídias de armazenamento, a experiência de apreciação musical pode, então, ser realizada de forma individual, seja através das estações ou através dos álbuns. Contudo, ainda não há uma mediação individualizada entre ouvinte e músicos. As gravadoras exercem essa relação através da mídia e das formas simbólicas, estas mais ou menos previsíveis ao público. Da mesma forma, os espaços de apreciação coletiva seguiram a mesma lógica: a previsibilidade dos gêneros tocados

no setlist12 é um fator importante para a manutenção das práticas

sociais estabelecidas pelos hábitos de cada grupo de ouvintes.

Parte III - Século XXI: A individualização e

No documento Geografia e Música: diálogos (páginas 139-144)