• Nenhum resultado encontrado

O cuidado do outro e do universo

No documento 2012Franciele Gallina (páginas 97-100)

3 DINÂMICAS DO SER

3.1 O ser que sente e cuida

3.1.2 O cuidado do outro e do universo

O ser humano quando nasce é recebido pelo universo. Inicialmente, a mãe é responsável por cuidá-lo, garantindo-lhe segurança e proporcionando-lhe recursos necessários para sua sobrevivência de maneira amorosa, embora muitos não tenham acesso a essa afetividade. Mais tarde, o sujeito vai formando alianças que vão além da unidade familiar, constrói e estabelece relações com o outro e com o universo, sendo a comunidade e ele próprio responsáveis pelo cuidado do ser e do mundo que habita.

Naturalmente, o homem/mulher procura construir um abrigo para proteção de seu ser. Como destaca Martins (2009), é assim que o homem começa a “dominar” a natureza. Habitando um ambiente que lhe é hostil, mas não o destrói, ele busca dar sentido às coisas e a sua própria vida, desenvolve suas capacidades técnicas e cognitivas e as põe em ação na construção de seu lugar no mundo. Nessa teia de relações, seu primeiro instinto é cuidar do outro unido ao cuidado de si mesmo e, não podendo viver em estado de isolamento, procura fazer parte de um grupo.

O homem é também um ser para o outro, pois está em relação direta com os seres da mesma espécie dentro do mesmo mundo e com as mesmas capacidades. Nessa relação acontecerá primordialmente a construção do

ethos. O ethos varia muito entre os grupos culturais porque cada um,

influenciado pelo seu ser no mundo no sentido dado às coisas, estabelece relações próprias, portanto a morada segura do ser terá variações de acordo com as relações interpessoais e com as coisas no sentido dado a elas (MARTINS, 2009, p. 88).

O que posso entender, então, é que o homem/mulher é um ser capaz de escolher cuidar de si e do outro. Porém, pode escolher fugir dessa responsabilidade, perdendo o sentido de ser no mundo, podendo ver o outro e a natureza somente como objetos. Penso que este seja o cenário atual no qual estamos construindo nossa história. Num mundo moderno, capitalista e consumista, movido pelo desejo e interesse material, a preocupação com o cuidado do ser – de si, do outro e do universo – perdeu a importância e tornou-se, como afirma Martins, um tirar proveito ao máximo de tudo. E essa é uma atitude egoísta que coloca em jogo a própria vida e o sentido de nossa existência.

O homem sente-se isolado no cosmos porque, já não estando envolvido com a natureza, perdeu sua “identificação emocional inconsciente” com os fenômenos naturais. E os fenômenos naturais, por sua vez, perderam aos poucos as suas implicações simbólicas. O trovão já não é a voz de um deus irado, nem um raio seu projétil vingador. Nenhum rio abriga mais um espírito, nenhuma árvore é o princípio de vida do homem, serpente alguma encarna a sabedoria e nenhuma caverna é habitada por demônios. Pedras, plantas e animais já não têm vozes para falar ao homem e o homem não se dirige mais a eles na presunção de que possam entendê-lo. Acabou-se o contato com a natureza e com ele foi-se também a profunda energia emocional que esta conexão simbólica alimentava (JUNG, 2002, p. 95).

O ser humano interfere na natureza e vai construindo seu lugar no mundo. Interage com os outros e com o cosmos, desde que começou a dominar objetos e construir instrumentos. Isso representou, sem dúvida, uma evolução para a humanidade, porém o modo como o homem/mulher vem utilizando tais instrumentos tem sido um problema, haja vista que ele domina e explora seu próprio habitat. Nessa sua orgulhosa pretensão, não se dá conta de que é vítima, já que não aprendeu a dominar nem a si mesmo. Faz da natureza sua escrava, e esta, como não é submissa ou muda, vem respondendo ao que com ela foi feito durante séculos. Como bem recorda Jung: “De maneira lenta, mas fatal, atraímos o desastre” (2002, p. 101). O homem parece ter esquecido o que Afrodite nos lembra com grande propriedade em seu poema: “[...] Na natureza se encontram os segredos

mais sutis/ Os das energias que estruturam o cosmos e o homem”. Nesse sentido, o ser na natureza sobrevive, mas também nela aprende o caminho para dentro de si e do outro, unificando aquilo que se é com o lugar onde se está. Para a participante, esse encontro do ser na sua morada não é uma utopia e deixa isso claro em suas palavras: “[...] Se estivermos atentos, somos capazes de captar energias/ Das florestas, cachoeiras, rochas, templos antigos e pessoas./ Todas as formas de vida,/ Desde o mineral ao vegetal,/ E essa conexão vai além do material...”. Afrodite acredita que na natureza há algo a aprendermos, algo que faz parte de nossa essência, algo que as rochas, as plantas, os animais já sabem: estar em silêncio e estar em contato, também a importância de sermos nós mesmos, de estarmos unificados e simplesmente descansarmos no ser.

Empreguei o termo “utopia” acima, porque nos dias atuais o cuidado de si, do outro e do universo parece muito distante da realidade. Contudo, nela percebo uma possibilidade de movimento do ser humano em busca de seu equilíbrio biopsicoespiritual. Com essa mesma visão, Martins nos mostra a capacidade que a utopia tem de fazer o homem evoluir: “Cada vez que dou um passo para perto da utopia, ela se afasta dois, quando dou dois ou três, ela se afasta dez. Então, para que serve a utopia? Para isso: fazer andar” (2009, p. 96).

Diante disso, questiono-me: para onde andar, uma vez que o homem/mulher parece estar perdido em um complexo labirinto de um mundo cheio de problemas? A educação, nesse momento de complexidade e incertezas, precisa estar atenta às possibilidades que respondam a suas necessidades, lançando-se aos desafios que se apresentam, articulando caminhos para que o ser possa entender o sentido e o significado de sua vida neste planeta.

Na natureza, o ser humano tem sofrido diante da violência do mundo mecanicista, encontrando dificuldade em lidar com seus próprios sentimentos, faltando-lhe amor ao próximo e a si mesmo. O amor impele o homem/mulher ao cuidado do ser, porém até mesmo esse sentimento vem sendo instrumentalizado, perdendo seu sentido. Na busca desenfreada pelo prazer, o sujeito, de forma utilitarista e descartável, apoderou-se dele para usar o outro, equiparando-o a um objeto. Enquanto este lhe proporciona prazer, permanece próximo; quando se satisfez, procura outro. Fromm, no livro A arte de amar, escreve com muita clareza sobre o significado do amor que aqui tento expressar:

O amor não é, primacialmente, uma relação para com uma pessoa específica; é uma atitude, uma relação de caráter, que determina a relação de alguém para com o mundo como um todo, e não para com um “objeto” de amor. Se uma pessoa ama apenas a uma outra pessoa e é indiferente ao resto de seus semelhantes, seu amor não é amor, mas um afeto simbiótico, ou um egoísmo ampliado. Contudo, a maioria crê que o amor é constituído pelo objeto e não pela faculdade (FROMM, 1995, p. 50).

O amor é fundamental para a harmonia do ser, e não podemos falar nesse tema sem pensar em cuidado. Afinal, este passa a ser critério para qualquer atitude referente ao mundo, às relações sociais e pessoais, pois reconhece os limites do outro e da natureza. Pensando sobre isso e buscando uma relação com as vivências desenvolvidas na oficina, entendo que nossos encontros foram pautados pelo respeito mútuo, tendo o amor sido um agente transformador na caminhada rumo ao autoconhecimento. Podemos compreender essa frase na socialização de Deméter e Perssefone, quando dizem que estão mudando, vendo as pessoas que estão ao seu lado como são, respeitando os seus limites e os limites delas mesmas. O mesmo é válido para as situações em que todas as participantes abraçam-se e despedem-se com uma frase que se consolidou no decorrer da oficina: “Amo você!”.

Se a vida humana precisa ser cuidada, podemos buscar vivê-la de forma solidária, respeitosa e justa entre os humanos e nossa casa comum, para que o Eu possa se expressar e o ser encontrar sua plenitude no plano terreno, passando a conviver consigo e com todas as consciências do universo. Por isso, penso que seja urgente e necessária uma educação que contemple o sensível, que esteja diretamente ligada à estética, que apresente novas formas de ser e estar no planeta. Para isso, entretanto, precisamos considerar o humano em todas as suas dimensões, sem esquecer seus sentimentos e suas emoções.

No documento 2012Franciele Gallina (páginas 97-100)