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O sentido da vida cotidiana

No documento 2012Franciele Gallina (páginas 109-112)

3 DINÂMICAS DO SER

3.2 O ser que transforma

3.2.2 O sentido da vida cotidiana

A questão do sentido da vida cotidiana, assim como do sentido da existência, está inteiramente ligada a todos os temas tratados nesta pesquisa e às atividades desenvolvidas no decorrer dos encontros. Em relação a todo esse emaranhado de teorias e práticas, de viver o conhecimento e conhecer a própria vida, destaco como elemento latente de meu trabalho o vínculo evidente entre educação e saúde. Nesse sentido, encontrei em Martins (2009), assim como na antropologia essencial de Jean-Yves Leloup (1998), inúmeras referências a essa afinidade. Ambos os autores resgatam em seu discurso a antropologia desenvolvida pelos terapeutas de Alexandria, que compreendem o ser humano sem dissociar seu corpo físico (soma) e sua mente (psique). Para os terapeutas do deserto, assim como eram conhecidos, a essas duas dimensões acrescenta-se mais uma, denominada pneuma, traduzida pela cultura judaico-cristã de espírito (espíritus), que é o sopro da vida, o espírito de Deus doador da vida. O pneuma perpassa todas as dimensões humanas e, desse modo, constitui o ser vivo presente no mundo.

O pneuma não nega nem reprime as outras dimensões, ele leva-as a um verdadeiro equilíbrio existencial, consequentemente à harmonia do homem, pois harmoniza o ser. O pneuma equilibra os instintos do soma, fazendo-se conhecer melhor e a ter autocontrole; assim acontece também com a

psique, pois o pneuma faz com que o homem não seja vítima e objeto das

suas próprias paixões e estados psicológicos patológicos; ele leva a pessoa a conhecer mais sua psique, sua alma e a ser sujeito das suas paixões, dominando-as e sabendo lidar melhor com elas para seu bem e o bem do outro (MARTINS, 2009, p. 90).

A antropologia dos terapeutas de Alexandria mostra que a cultura é parte importante no processo de dar sentido à vida, pois, conhecendo o universo, o homem/mulher desenvolve maior autoconhecimento, aprende a lidar melhor consigo e com os outros, constituindo sua autonomia e identidade. Afrodite demonstra, nos seguintes versos, ter entendido essa relação: “[...] Somos origem e semelhança de Deus,/ Temos plantados em nós.../ Grandes poderes [...]!”. A participante refere-se ao nosso poder autotransformador, aquele que descobrimos ao nos conhecermos, ao harmonizarmos corpo (soma) e mente (psique).

Outro aspecto digno de destaque nesse cenário é a importância de prestar atenção na saúde, também considerada pelos terapeutas do deserto, tendo em vista que esta pesquisa está ligada à integração harmoniosa de todas as dimensões do ser humano. Essa mesma visão é sugerida por Heidegger, quando afirma: “A minha saúde depende do sentido que eu dou a minha vida. Posso estar doente, posso sofrer, mas [se] minha vida tem sentido, eu posso transformar este sofrimento” (2002, p. 325).

Assim como Heidegger, Martins (2009) considera que as emoções e sentimentos negativos causadores de sofrimento também contribuem para o sentido maior dado à existência. Na sequência do poema de Afrodite, compreendemos melhor a frase acima: “Temos que sentir e agradecer pelas coisas boas,/ Também pelas ruins,/ Porque fazem parte da evolução espiritual”.

Essa é, igualmente, a teoria defendida por Leloup (1998), lembrando que quem ainda não encontrou sentido para sua vida, uma educação integral, como a desenvolvida na oficina, permite uma abertura à busca de significado e sua manutenção. Tal reflexão é fundamental para essa busca, na medida em que o ser é um ser de cuidado em todos seus aspectos, o que, aliás, o faz livre para conduzir a sua vida. Na trilha desses pensamentos, continuo a citar Afrodite, que mais uma vez em suas palavras demonstra o significado dos processos educativos estéticos em sua trajetória: “[...] Nestes encontros semanais,/ Conhecemos um pouco de um mundo maravilhoso,/ Que está ao nosso redor./ E que está à disposição de todos/ E isso é maravilhoso e gratificante”.

Sem dúvida, o sentimento de gratificação experimentado pela participante agrega sentido e significado à vida humana. Afinal, organismo e meio, sujeito e mundo vão mudando juntos, num movimento de transformação que tem sua

validade numa conexão com o cotidiano, pois nele nos movemos de um caminho explicativo para outro, de um lado para outro em uma dinâmica de percepções.

Conforme Maturana (2001), os seres vivos não podem distinguir ilusão de percepção na experiência, sendo essa uma condição que o constitui. No entanto, quando se diz que um observador ou sujeito não pode fazer essa distinção, assume- se que é a operação desse sujeito que define a semelhança. O autor utiliza-se de dois conceitos para explicar essa incapacidade de distinção: o erro e a mentira. Segundo ele, quando se diz a uma pessoa “você mente”, o que se diz, de fato, é “no momento em que disse o que disse, eu tinha todos os motivos para pensar que o que dizia era válido”; quer dizer, “não sabia que o que dizia não era válido, mas o sei

a posteriori19”, “sei em referência a outras experiências distintas daquela sob a qual eu fazia tal afirmação”. Quando alguém se equivoca na experiência, não se equivoca, mas, quando alguém mente, mente na experiência. Para o autor, isso é muito interessante, pois o equívoco é sempre a posteriori: “Nós não podemos distinguir, na experiência, entre verdade e erro. O erro é um comentário a posteriori sobre uma experiência que se vive como válida. Se não a viveu como válida, é uma mentira” (2001, p. 25). Além disso,

A distinção entre erro e mentira está relacionada com o fato de que na vida cotidiana sabemos que esta certeza sobre o acesso a uma realidade independente é questionável. Mas acreditamos que é questionável, porque o corpo nos limita, porque o nosso corpo é um instrumento ruim. Nossos órgãos sensoriais são um instrumento ruim, que não nos permite ter acesso à realidade como ela é, e construímos instrumentos acreditando que eles nos darão acesso à realidade como ela é (MATURANA, 2001, p. 44).

A explanação de Maturana convida-nos a desenvolver e aprimorar nossos sentidos, para que possamos nos aproximar da realidade tal como ela é, sem a necessidade de criar instrumentos. Foi pensando sob essa perspectiva que reservei a parte final de cada encontro para a socialização, permitindo a cada participante expor suas percepções sobre as vivências desenvolvidas na oficina. Mesma finalidade teve o poema escrito ao final de todos os encontros e que respondeu à pergunta-chave: “o que significou a oficina de processos educativos estéticos para mim?”. A ideia era que as participantes pudessem comentar, a posteriori, se a experiência vivenciada fora válida e se a viveram como válida ou não.

19

Deméter, em sua autocompreensão, diante do espelho, comentou em alto e bom tom: “Vejo-me com os olhos bem abertos, não é tão triste a realidade”. Seu comentário está diretamente associado às palavras de Maturana (2001) sobre nosso corpo e nossos órgãos sensoriais, não de forma limitada, como cita o autor, mas de forma aprimorada naturalmente, em que a realidade da experiência vivida agregue sentido à existência humana.

No último encontro, pude sentir o que significou para essas mulheres participar da oficina, quando Héstia expressou em nome do grupo a gratidão por estarem se sentindo vivas, por terem aprendido a olhar para dentro e para fora de si de uma maneira diferente, agradecendo, também, pelas amizades construídas e pelo sentimento de amor fraternal que se constituiu. Com base nesses relatos, relacionados às teorias de diversos autores, observo que a vida humana precisa ser cuidada e que a educação tem papel fundamental na constituição e manutenção como realização do sentido existencial, num universo harmônico.

Diante disso, é preciso lembrar a concepção de homem/mulher direcionada à visão de ser humano na forma integral proposta por Leloup (1998), Maturana (2001), Martins (2009) e pelos terapeutas de Alexandria (LELOUP; BOFF, 2000). Nessa perspectiva, a existência é permeada pelo sopro vital, que liberta o sujeito das amarras da unidimensionalidade, cura-lhe as enfermidades, educa seus sentidos, permitindo-lhe ser conhecedor de si e da vida, oferecendo sentido à realidade, à existência. Destaco, enfim, que, na busca do sentido da vida, encontramos uma abertura à transcendência por meio da consciência de si, do outro e do universo.

No documento 2012Franciele Gallina (páginas 109-112)