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O Cuidado e suas dimensões: perspectiva da família e da rede

A dimensão do cuidado ganha relevante importância no contexto das situações de crise por se constituir em uma forma de lidar e compreender os quadros instalados no momento da crise. O cuidado se constitui de um conjunto de saberes e práticas que se instituí por novas formas de assistir, compondo-se, assim, em um território interdisciplinar sob o signo da multiplicidade (RINALDI; LIMA, 2006).

Esta multiplicidade implica na necessidade de uma participação ativa de todos os atores sociais no processo de elaboração, escolha e execução do projeto terapêutico que o sujeito se submeterá. Para isso, requer esforço intenso e consistente da equipe de saúde, família e sujeito, na elaboração de um plano terapêutico que gere um novo processo de cuidar (fluxograma).

Figura 7 - Fluxograma demonstrativo de um projeto terapêutico.

Observamos completa desintegração entre equipe de saúde e familiares, angústia de familiares na busca por explicação quanto aos episódios de crise, em um contexto de completo desconhecimento da situação de tratamento.

[...] eu não sei como vai ficar porque os médicos não dizem, um diz que ele não tem nada, outros dizem que tão cedo ele não vai sair (Hera).

Era isso que eu queria saber, que eu já até perguntei para o médico: doutor, por que ela tomando o remédio ela entra em crise? Mas, ninguém me responde e nem eu sei por que...Eu sou consciente que eu dou o remédio...eu...vejo tomando e ela entra em crise...depois que ela entra em crise, ela só fica boa se ela se internar....se for no hospital (Iris).

É possível perceber queo sujeito não é considerado no contexto dos diálogos que conduzem seus diagnósticos, uma vez que não há, nos relatos, comentários que exponham se o sujeito chegou a ser ouvido ou examinado. Infelizmente, ocorre, simplesmente, o sequestro da liberdade do sujeito.

[...] o médico disse para mim [mãe do sujeito]: minha filha faça um quarto lá no fundo do quintal e bote ele lá dentro, a senhora bote grade. E eu disse o senhor vai preso no meu lugar? Porque se eu fizer isso eu vou presa (Atena).

A rede não dispõe de estrutura que recepcione, oriente um processo de acompanhamento nas situações de crise. Acreditamos que a instituição de protocolos e de

FAMÍLIA PROJETO TERAPÊUTICO EQUIPE DE SAÚDE SUJEITO

planos terapêuticos singulares em muito contribuiriam para reduzirem as constantes situações de crise.

O grande desafio do século XXI, com relação ao cuidado em saúde mental, é romper com antigos paradigmas de saber, que ainda são instituídos no momento das assistências profissionais, caso do médico citado que, equivocadamente, propõe assistência baseada em perniciosos métodos de retrocesso das formas de coerção física, próprias do tratamento moral. Torna-se necessário instituir um movimento que estimule a coprodução de cuidado, tendo em vista o processo paulatino de responsabilização de atores e instâncias sociais pelo cuidado no contexto da Reforma Psiquiátrica brasileira, abrangendo familiares e vizinhos de sujeitos psiquiátricos – como também pastores de igrejas locais e mesmo patrões no ambiente de trabalho – têm sido instigados a “participar” da política pública, principalmente no lugar de “cuidadores” e de “suporte social”, embora oficialmente considerados “parceiros” (SILVA, 2009).

Aspecto que vale ressaltar é a confiança em uma entidade superior. A presença de Deus, nesse aspecto não está ligada, apenas, ao exercício espiritual da fé. Na realidade, ao buscar a Deus, em um determinado curso da doença, os sujeitos e suas famílias expressam o desamparo e a ausência de cuidados da rede de atenção, ficando apenas presença da família. Ou seja, o sentimento de não existir a quem recorrer, no plano material, quando as necessidades surgem.

Quando eu estou assim quem cuida de mim? É Deus! Aqui na terra é a família, a família que gosta da gente (Afrodite).

Eu passei dois dias com ele lá [Hospital Mental de Messejana] sabe, foi que graças a Deus abriu uma porta e surgiu uma vaga no São Vicente de Paulo e botei ele lá (Atena).

[...]eu creio que Deus vai transformar aquela vida, ele pode curar, ele tem todo o poder de curar e libertar...porque Deus tem o poder. Nós não podemos nada, mas ele pode, porque ele é o médico dos médicos (Atena).

Por outro lado, o abandono do tratamento, aparentemente como um ato consciente do indivíduo com transtorno mental, pode representar ausência do cuidado da família. Ao passo que, geralmente, essa ausência pode ser uma fuga do sofrimento vivenciado. Assim, o sofrimento passa a não ser acolhido e se configura como fatalidade. A fuga dessa fatalidade é representada pelo não cuidado da família.

Porém, o processo de cuidar não pode ser rompido pela decisão tomada pelo sujeito. Faz-se necessária intervenção por parte de algum dos integrantes da cadeia cuidadora.

O ato de cuidar envolve muitas implicações. É imprescindível o compromisso familiar e profissional nesse processo para que sejam garantidas ao sujeito em sofrimento mental as intervenções necessárias, seja de ordem institucional (consulta, medicação, terapia etc.), intersetorial (habitação, trabalho, esporte, cultura e etc.) ou familiar (atenção à pessoa, escuta, carinho etc.).

Ela fez tratamento no CAPS [...] agora não. Ela resolveu abandonar o tratamento... minha mãe deixou a casa, não conseguiu mais lidar com a situação – e ela já é uma pessoa de idade aí minha própria irmã – que tem o problema – resolveu não tomar mais nenhum medicamento [...] Ela fazia o acompanhamento, mas resolveu desistir por conta própria [...] (Orfeu).

[...] porque das vezes [que] foram medica-la eu não fui[...] (Hestia).

O processo de assistência se dá, principalmente, em dois espaços institucionais: o SAMU e o hospital psiquiátrico. Percebemos que o processo do cuidado ocorre nesses serviços devido a desestrutura da rede substitutiva existente em Fortaleza, conforme já discutido anteriormente. Ou seja, o espaço hospital psiquiátrico, embora muito condenado por seus múltiplos problemas na assistência ao usuário do serviço, tem-se mantido como porta de entrada para os casos de crise psíquica porque não há outro mecanismo de assistência ao sujeito com necessidades de cuidados em saúde mental.

Portanto, o fluxo seguido pela família foi chamar o SAMU para que este possa conduzir o sujeito ao hospital psiquiátrico. Todos esses fatos apresentam a ausência de uma rede extra-hospitalar capaz de fornecer respostas às necessidades de saúde dos usuários do serviço de saúde pública.

Ainda que os familiares saibam que o hospital não é o espaço ideal para cuidar do seu ente em sofrimento mental, eles recorrem a esse serviço, se submetem ao caos e, ainda, defendem a unidade hospitalar. Tudo isso porque não há outro espaço no qual os familiares possam recorrer no momento de profundo sofrimento dos seus entes, como são as crises. O hospital é percebido como local ideal para um processo de contenção emergencial.

A Secretaria Municipal de Saúde de Fortaleza implantou suporte de assistência à situação de crise, abrindo um CAPS tipo III, no final do ano de 2012. No entanto, restringiu a assistência disponibilizada pelo aparato a sua rede de CAPS. Desta forma, a única maneira de adentrar neste novo serviço é estar em situação de crise em um CAPS da rede de Fortaleza, assim, a demanda oriunda das ambulâncias do SAMU continua sem opção extra-hospitalar para conduzir seu sujeito.

Estes CAPS não eram para existir não, era para existir hospitais, abrir estes hospitais que estão todos fechados, abrir para colocar este pessoal para dá sossego a gente, porque a gente não tem sossego não [...](Atena).

A internação involuntária, do tipo que ocorre sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro foi instituída pela Lei 10.216 como forma de o indivíduo em sofrimento ter um responsável por si e, assim, não ser abandonado e esquecido nos hospitais (BRASIL, 2010). Esta lei institui os direitos do sujeito mental e define as formas de internação do indivíduo quando as formas de assistência extra-hospitalar estiverem esgotadas.

Mesmo que os procedimentos legais estejam sendo respeitados, não foi procurada outra forma de assistência, sem ser o espaço hospitalar.

Meu menino mais velho foi quem foi [...]ele assinou o termo para ele entrar e ele só sair se meu filho assinar o termo para ele sair, a Dra. ontem falou S. teu pai só sai daqui se tu vier assinar. Enquanto tu não assinar para ele sair nós não podemos deixar ele sair daqui, porque você tem que assinar o termo da saída dele. Ai tá nesta situação [...] ele só sai se o meu menino for assinar para ele sair (Hera).

O cuidado que os familiares têm dado ao sujeito mental apresenta algumas questões: a primeira é a desconfiança na assistência disponibilizada pelos serviços extra- hospitalares, geralmente consequência de desconhecimento dos serviços disponibilizados nestas unidades ou devido a tentativas frustradas por atendimento em situações de crise. A segunda é o fato de a família considerar o hospital como um espaço que lhe proporcionará sossego daquela situação vivenciada que, em um primeiro momento, parece uma coisa horripilante e segregadora. No entanto, este sentimento surge, não como uma forma de se livrar do familiar em situação de crise, não porque a família o considere um peso no contexto de vida, não porque não ame, mas, simplesmente, por encontrar-se exaurida no ato de cuidar. Cavalheri (2010) afirma que mesmo as famílias preferindo manter seus familiares em casa a vê-los internados, expressam cansaço, exaustão e necessidade de ter um tempo para si, um tempo livre.

É importante ressaltar que o sujeito mental está sendo entregue à família sem o devido conhecimento das reais necessidades e condições da família, especialmente das cuidadoras em termos materiais, psicossociais, de saúde e qualidade de vida, aspectos estes profundamente interligados. Esta simples transferência de responsabilidade, tirando-o de dentro dos muros hospitalares e o confinado a vida familiar, tende a ocasionar prejuízo ao sujeito e a seus familiares (GONÇALVES; SENA, 2001).

Quando o sujeito apresenta pequena melhora é devolvido aos familiares sem que tenha alcançado recuperação adequada. Este fato pode ser observado de duas maneiras, na

primeira, a devolução pode ocorrer de forma precipitada devido à rede hospitalar, que se encontra encharcada, produzindo o efeito conhecido como porta giratória, cujo hospital regulará a entrada e a saída dos sujeitos e assim disponibilizar mais leitos para internação e, consequentemente, mais recursos financeiros. O segundo olhar centra no desejo da família de manter seu familiar assistido em um hospital, possibilitando, assim, um convívio familiar salutar.

...muito importante que eu acho os hospitais... [mas] quando a sujeito melhora um pouco...eles joga pra casa...às vezes, a pessoa continua... fizeram isso com ela...melhorou um pouquinho, botaram...para casa. Passou foi tempo para ela ficar boa...isso...eu acho um ponto muito negativo...porque, às vezes, a pessoa não está completamente boa. Ontem mesmo eu vi uma menina lá que estava de alta, a menina toda impregnada, de olho duro... eu pensei que ela tivesse se internado, ela tinha saído do internamento... (Iris).

A família do sujeito em sofrimento psíquico vivencia o conflito entre internar ou não seu parente, por um lado precisa internar, pois não encontra na rede substitutiva de Fortaleza aparato capaz de prestar assistência eficiente a este sujeito e, por outro lado, sofre com a internação por conhecer as formas de (des) cuidado disponibilizado no interior dos hospitais psiquiátricos.

A família conhece os procedimentos disponibilizados na rede hospitalar e que prorroga ao máximo a internação de seu parente, somente recorrendo a este suporte quando se esgotam os recursos disponíveis ou o sujeito encontra-se em risco de morte.

[...] eu sei o sofrimento, eu sei como é. Só levo quando ela fica sem comer e sem tomar o remédio. Como ela estava... aguentando...mas, mesmo assim não consegui. Por fim ela já não estava mais comendo, dizia que eu colocava comida pra ela em um prato de defunto... (Iris).

O hospital é percebido como local ideal para um processo de contenção emergencial. A busca de cuidado para o ente é um momento de sofrimento para a família que tem como causa a ausência de serviços que proporcione assistência adequada a estes sujeitos em situação de crise. Esse fato é ponto de tensão emocional na família.

[...] eu vinha dominando ele 24h porque eu não queria que ninguém o maltratasse, ele não queria ir para o hospital... “não me leve a força” (filho). Não, eu não vou levar a força, o que der para fazer por você eu faço... o que puder fazer por você eu faço, tudo que dizia... e pedia que eu fizesse por ele eu fazia (Hera).

O ambiente hospitalar reflete na família e no sujeito percepção de vigilância, de punição, estigmatização, administração sistemática do vexame, a disciplinarização, as

relações verticais e assimétricas, a proibição da palavra, a “privatização” do sofrimento psíquico, a medicalização, são alguns analisadores eloquentes (KAZI, 1999).

[...] o sujeito que não tem um acompanhante, ele está meio que jogado a própria sorte. Claro tem a alimentação garantida e tal, o banho e tudo mais, mas assim, a gente não ver um trabalho [de] terapia ocupacional regular... É a sexta vez que eu estou no hospital. Eu sei como é que é. A gente não vê um empenho de uma psicóloga querendo saber a história deles para vê se dá um jeito de melhorar[...]o que a gente vê é que aqueles sujeitos que têm família próximo tem mais um cuidado mas, aqueles que não tem família[silêncio]são abandonados[...] (Geia).

A forma de assistir dos hospitais psiquiátricos encontra-se em decadência, requerendo transformação emergencial e que já tarda a necessidade de implantar uma rede que seja resolutiva à problemática da situação de crise psíquica no município de Fortaleza. O que se tem é a existência de uma assistência à situação de crise centrada no atendimento emergencial, fato que centra a atenção no serviço do SAMU e tem como porta de entrada os hospitais psiquiátricos.

A deficiência encontrada nos serviços extra-hospitalares do município de Fortaleza incha os hospitais psiquiátricos que, assim, permanecem obrigados a receber os usuários em situações de crises psíquicas porque esses sujeitos não tem outro espaço para buscar assistência. A ausência de um serviço de qualidade que oferte ao sujeito suporte assistencial efetivo no momento ou na fase pré-crise, garantindo o acesso à assistência de qualidade e na rede de serviço extras hospitalares.

[...] a última consulta dela foi marcada com oito meses(CAPS)vai ser em dezembro...mas na hora que a gente quiser o remédio a gente vai falar com o outro médico, mas... o outro médico não pode fazer nada...Para... falar com o médico da pessoa...[precisa] marcar uma consulta extra...Eu acho as consultas de lá, os retornos de lá, muito prolongado...Se o sujeito estiver em crise, amanhã vamos para o médico? Eu não posso fazer isso, entendeu? ...a última consulta... foi...a oito meses! Tem condição? ... e não era desse jeito. O máximo que passava era três meses...passou para quatro, passou para cinco e...tá agora [assim] (Iris).

Transcorridos mais dez anos da implantação do primeiro CAPS no município de Fortaleza, ainda, é possível visualizar problemas de ordem administrativa, como ausência de estruturas físicas, de profissionais e, principalmente, de protocolo de atendimento que permita identificar e recepcionar os sujeitos que estejam apresentando sintomas pródromos de crise psíquica.

O intervalo entre as consultas é outro problema que pode ser considerado fator potencializador das crises psíquicas, pois se torna inadmissível um intervalo de oito meses

entre uma consulta e outra de um sujeito que esteja em situação de crise. É imprescindível realizar acompanhamento adequado da evolução deste sujeito, acompanhar as possíveis reações medicamentosas e programar conduta terapêutica capaz de inibir a manifestação da crise.