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Experiências em situação de crise de sujeitos em sofrimento psíquico : análise de narrativas

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Academic year: 2018

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ DOUTORADO EM SAÚDE COLETIVA

EM ASSOCIAÇÃO AMPLA DE IES (UFC/UECE/UNIFOR)

ADRIANO RODRIGUES DE SOUZA

EXPERIÊNCIAS EM SITUAÇÃO DE CRISE DE SUJEITOS EM SOFRIMENTO

PSÍQUICO: ANÁLISE DE NARRATIVAS

FORTALEZA

2013

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ADRIANO RODRIGUES DE SOUZA

EXPERIÊNCIAS EM SITUAÇÃO DE CRISE DE SUJEITOS EM SOFRIMENTO PSÍQUICO: ANÁLISE DE NARRATIVAS

Tese submetida à Coordenação do Curso de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, da

Universidade Federal do Ceará (UFC) e das Universidades Estadual do Ceará (UECE) e Fortaleza (UNIFOR) com Associação de IES – Ampla, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Saúde Coletiva.

Área de concentração: Políticas, Gestão e Avaliação em saúde.

Orientador: Prof. Dr. Ricardo José Soares Pontes

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Universidade Federal do Ceará

Biblioteca de Ciências da Saúde S713e Souza, Adriano Rodrigues de.

Experiências em situação de crise de sujeitos em sofrimento psíquico: análise de narrativas / Adriano Rodrigues de Souza. – 2013.

149f. : il. color., enc. ; 30 cm.

Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Ceará, Doutorado em Associação Ampla de IES (UECE/UFC/UNIFOR), Fortaleza, 2013.

Área de concentração: Avaliação de programas de vigilância e controle, serviços e modelos assistenciais; avaliação de modelos de formação e integração ensino-serviço.

Orientação: Prof. Dr. Ricardo José Soares Pontes.

1. Saúde Mental. 2. Intervenção na Crise. 3. Narração. 4. História. I. Título.

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A minha querida e amada mãe (in memória), Fransquinha, que me ensinou que sem estudo a pessoa não cresce. Ela sempre dizia: estude ou vai dá murro em ponta de faca... Te amo! Mãe, onde esteja. A minha companheira, amiga e incentivadora, Aline, com quem compartilho um amor imenso e intenso. Agradeço pela amizade e paciência no decorrer deste trabalho.

As minhas filhas Alice e Cecília, que compreenderam em sua sabedoria infinita o tempo ausente de seu pai nas brincadeiras e nos feriados.

A minha irmã, Adriana, pelos incentivos.

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AGRADECIMENTOS

A Deus, meu rochedo e o meu lugar forte.

À minha segunda família, meu sogro, João, e a minha sogra, Socorro, que foram apoiadores desta luta. As minhas queridas e lindas cunhadas, Evelyne, Caroline e Sabrine, pelo incentivo e a esta última, agradeço pelos trabalhos realizados que contribuíram para confecção deste estudo.

Aos alunos do grupo de pesquisa em saúde coletiva da UNIFOR que contribuíram para transcrição das narrativas, mesmo correndo o risco de falhas e esquecimentos, cito: Renata Silveira, Joyce Carla, Aldeniza Gadelha, Cristianne Barros. A todas que contribuíram de uma forma ou de outra para o engrandecimento desta tese.

Ao meu orientador, Professor Dr. Ricardo Pontes, pelas inúmeras vezes que me ausentei por compromissos profissionais... Orientador paciente e um exemplo de mestre que devemos nos espelhar.

À minha amiga que fiz no doutorado, se assim posso considerar, que passei a respeitar e admirar, professora Dra. Maria Salete Bessa Jorge.

Aos colegas da Coordenação do Colegiado de Saúde Mental, especialmente Rane que soube compreender minhas ausências profissionais. Muito obrigado!

À Coordenação do Curso de Enfermagem da Universidade de Fortaleza, pelo incentivo ao meu crescimento profissional. Obrigado por integrar esta grande família.

Às amigas da disciplina Enfermagem em Saúde Pública I da UNIFOR, pela disposição em me ajudar nas horas de sufoco.

À banca examinadora pela disponibilidade em contribuir neste trabalho.

Aos meus amigos verdadeiros, cujos nomes não cito com receio de esquecer alguém, obrigado por compartilhar esta nova conquista de vida.

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[...] Não era a primeira vez que ela vinha ali. Mais de uma dezena já subira aquela larga escada de pedra, com grupos de mármores de Lisboa de um lado e do outro, a Caridade e Nossa Senhora da Piedade; penetrara por aquele pórtico de colunas dóricas, atravessara o átrio ladrilhado, deixando à esquerda e à direita, Pinel e Esquirol, meditando sobre o angustioso mistério da loucura; [...].

Só o nome da casa metia medo. O hospício! É assim como uma sepultura em vida, um semi-enterramento, enterramento do espírito, da razão condutora, de cuja ausência os corpos raramente se ressentem. A saúde não depende dela e há muitos que parecem até adquirir mais força de vida, prolongar a existência, quando ela se evola não se sabe por que orifício do corpo e para onde.

Com que terror, uma espécie de pavor de cousa sobrenatural, espanto de inimigo invisível e onipresente, não ouvia a gente pobre referir-se ao estabelecimento da praia das Saudades! Antes uma boa morte, diziam. No primeiro aspecto, não se compreendia bem esse pasmo, esse espanto, esse terror do povo por aquela casa imensa, severa e grave, meio hospital, meio prisão, com seu alto gradil, suas janelas gradeadas, a se estender por uns centos de metros, em face do mar imenso e verde, lá na entrada da baía, na Praia das Saudades. Entrava-se, viam-se uns homens calmos, pensativos, meditabundos, como monges em recolhimento e prece.

De resto, com aquela entrada silenciosa, clara e respeitável, perdia-se logo a ideia popular da loucura; o escarcéu, os trejeitos, as fúrias, o entrechoque de tolices ditas aqui e ali. Não havia nada disso; era uma calma, um silêncio, uma ordem perfeitamente naturais. No fim, porém, quando se examinavam bem, na sala de visitas, aquelas faces transtornadas, aqueles ares aparvalhados, alguns idiotas e sem expressão, outros como alheados e mergulhados em um sonho íntimo sem fim, e via-se também a excitação de uns, mais viva em face à atonia de outros, é que se sentia bem o horror da loucura, o angustioso mistério que ela encerra, feito não sei de que inexplicável fuga do espírito daquilo que supõe o real, para se apossar e viver das aparências das cousas ou de outras aparências das mesmas.

Quem uma vez esteve diante deste enigma indecifrável da nossa própria natureza fica amedrontado, sentindo que o germe daquilo está depositado em nós e que por qualquer cousa ele nos invade, nos toma, nos esmaga e nos sepulta numa desesperadora compreensão inversa e absurda de nós mesmos, dos outros e do mundo. Cada louco traz em si o seu mundo e para ele não há mais semelhantes: o que foi antes da loucura é outro muito outro do que ele vem a ser após. E essa mudança não começa, não se sente quando começa e quase nunca acaba.

[...] Todos os Santos (Rio de Janeiro), janeiro - março de 1911

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RESUMO

Este estudo buscou resgatar a vivencia dos familiares e sujeitos em sofrimento psíquico durante situações de crise. Historicizando esses fatos foi possível retratar um contexto de vida que se ramifica de diversas formas para alcançar um atendimento digno e resolutivo. Trata-se de estudo qualitativo que utilizou a História Oral Temática como método de apreensão das narrativas. As narrativas estão apresentadas na íntegra, com textualização do autor, cujo objetivo foi manter a singularidade e especificidade contidas no discurso. Como narradores, tivemos setes sujeitos, seis mulheres e um homem, estes foram identificados de diversas formas, tendo como ponto zero o Sistema de Atendimento Médico de Urgência (SAMU). Para desvelar as ideias contidas nas narrativas, utilizei o referencial metodológico de Paul Ricoeur que considera a compreensão como ordenação do enunciado narrativo e quando esta estrutura organizacional não se estabelece, não é possível compreender a narrativa, requer uma explicação. Objetivando alcançar esta explicação, optamos por utilizar aspectos codificados, explicação causal do sofrimento mental a partir da visão dos sujeitos do estudo do reconhecimento da crise a busca por apoio terapêutico e seus descaminhos, a rede de atenção em saúde mental como recurso de apoio buscado pelos sujeitos, o cuidado e suas dimensões: perspectiva da família e da rede, o porvir na visão do familiar e do sujeito em crise. As narrativas revelaram sofrimento psíquico marcado por multicausalidades, potencializado pelo meio ao qual o sujeito encontra-se inserido. A ausência de rede de assistência emergencial às situações de crise foi registrada em todas narrativas coletadas, tendo como foco principal a carência de estruturas de retaguarda aos serviços substitutivos, o que gera sofrimento psíquico em familiares, sujeito e vizinhos. Marcaram, também, os relatos excessivos de violência praticados pelo sujeito em situações de crise. A terapêutica com ervas ganhou notória importância nos relatos dos familiares, seguido pelos atos espirituais, medidas buscadas para suprir a ausência da assistência adequada. A partir deste contexto, o cuidado ganha relevante importância no compreender as situações de crise instaladas, uma vez que é possível encontrar diversas formas de tratamentos, inclusive métodos arcaicos à segregação prisional. Por fim, encontrei nas narrativas a esperança de cura ou tratamento que permita aos familiares e sujeitos retornarem a uma vida saudável e normal. Evidenciei no estudo relatos peculiares da realidade vivenciada no contexto das situações de crises psíquicas, como a não formação da tríade de cuidado sujeito, família e rede de atenção, que a despeito de a família perceber que o hospital psiquiátrico não é a estrutura assistencial desejada, lança mão deste por ser o único recurso existente e que é preciso rever o suporte de retaguarda dos novos serviços instalados pela Reforma Psiquiátrica.

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ABSTRACT

This study ought to redeem experiences of families and individuals in psychological distress during crisis situations. Historicizing these facts, it was possible to portray a life context that branches in various ways to achieve a dignified and decisive care. It is a qualitative study that used thematic oral history as a method of seizure of narratives. The narratives are presented in full, with textualization of the author, whose objective was to maintain the uniqueness and specificity contained in the speech. As storytellers, we had seven subjects, six women and one man, these were identified in several ways, with the Zero point the System of Emergency Medical Service (SAMU). To disclose the ideas contained in the narratives, I used Paul

Ricoeur’s methodological referential, that consider understanding as a ordination of the

narrative enunciation and when this organizational structure is not established , it is not possible to understand the narrative, requires an explanation. In order to achieve this explanation, I chose to use aspects encoded as therapeutic measures and their diversity; care and its dimensions in the family perspective in relation to the health care network, the future vision of the family and the individual in crisis. The narratives revealed psychological distress marked by multi-causalities, enhanced through which the subject is inserted. The absence of network emergency assistance to crisis situations was recorded in all narratives collected, focusing mainly on the lack of structures to rear services, which generates psychological distress in relatives, individuals and neighbors. Marked also the reports of excessive violence by the subject in crisis situations. Therapy with herbs gained remarkable importance in the accounts of family members, followed by spiritual acts, measures sought to address the lack of adequate assistance. From this context, care gain relevant importance in understanding the crisis installed, since it is possible to find different forms of treatments, including archaic methods to segregational prison. Finally, I found in the narratives hope of cure or treatment that enables individuals and families return to a healthy and normal life. Found in the study reports the peculiar reality experienced in the context of psychic crisis situations, such as non-formation of the triad of subject care, and family care network, which in spite of the family realize that the psychiatric hospital care structure is not desired, makes use of this because it is the only resource available and it is necessary to review the support behind the new services installed by the Psychiatric Reform.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES, QUADRO E TABELA

FIGURA 1 Distribuição das Internações Psiquiátricas de Fortaleza de 2005 a 2011... 37

FIGURA 2 Redes Assistenciais da atenção integral à saúde do Sistema Municipal de Saúde de Fortaleza... 40 FIGURA 3 Protocolo de urgências psiquiátricas de Fortaleza... 44

FIGURA 4 Distribuição geográfica do município de Fortaleza por SER... 50 FIGURA 5 Esquema de captação dos entrevistados... 53

FIGURA 6 Fluxograma seguindo pelos familiares na busca por

assistência no momento da crise... 104

FIGURA 7 Fluxograma demonstrativo de um projeto

terapêutico... 112 QUADRO 1 Critérios de inclusão e exclusão... 53 TABELA 1 Tipos de Estabelecimentos de Saúde do município de

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LISTA DEABREVIATURAS E SIGLAS

ABP Associação Brasileira de Psiquiatria ABRASME Associação Brasileira de Saúde Mental CAPS Centro de Atenção Psicossocial

CCSM Colegiado de Saúde Mental de Fortaleza CEVEPI Célula de Vigilância Epidemiológica

CFP Conselho Federal de Psicologia

CT Comunidades Terapêuticas

DINSAM Divisão Nacional de Saúde Mental

ESF Estratégia Saúde da Família

ESP Escola de Saúde Publica

EUA Estados Unidos da América

HSMM Hospital de Saúde Mental de Messejana INPS Instituto Nacional de Previdência Social

MOP Movimento Popular em Saúde

MTSM Trabalhadores em Saúde Mental

PACS Programa de Agentes Comunitário de Saúde

PSF Programa Saúde da Família

RASM Rede de Atenção em Saúde Mental

RT Residência Terapêutica

SAMU Serviço de Atenção Médica de Urgência

SER Secretaria Executiva Regional

SILOS Sistemas Locais de Saúde

SUS Sistema Único de saúde

UECE Universidade Estadual do Ceará

UFC Universidade Federal do Ceará

UNIFOR Universidade de Fortaleza IPC Instituto de Psiquiatria do Ceará

CMSF Conselho Municipal de Saúde de Fortaleza

PT Partido dos Trabalhadores

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DPU Defensoria Pública da União

SMSE Sistema Municipal de Saúde Escola

CAB Célula de Atenção Básica

MS Ministério da Saúde

HG Hospitais Gerais

IJF Instituto Dr. José Frota

ABRAV Associação Brasileira de Agentes de Viagem GPSMS Gestão Plena do Sistema Municipal de Saúde CNES Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde

HOV História Oral de Vida

TCLE Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

APH Atendimento pré-hospitalar

CEDECA Centro de Defesas da Criança e Adolescente. SMS Secretaria Municipal de Saúde de Fortaleza

TCE Traumatismo Crânio Encefálico

EEG Eletroencefalograma

IML Instituto Médico Legal

AVC Acidente Vascular Cerebral

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ... 13

1.1 Trajetória profissional e implicação do investigador ... 13

1.2 Delimitação do objeto de estudo ... 16

2 OBJETIVOS ... 18

2.1 Geral ... 18

2.2 Específicos ... 18

3 REVISÃO DE LITERATURA ... 20

3.1 O manicômio: lugar de “saber-poder” do sofrimento psíquico ... 20

3.2 Os novos espaços de cuidado em saúde mental ... 25

3.3 O contexto da Reforma Psiquiátrica brasileira: uma revisita... 30

3.4 O sujeito de sofrimento psíquico em situação de crise: definições conceituais ... 33

3.5 O sujeito em sofrimento psíquico em situação de crise na rede de atenção de saúde mental de Fortaleza ... 36

4 PERCUSSO METODOLÓGICO ... 48

4.1 Marco conceitual da hermenêutica de Paul Ricoeur ... 48

4.2 Trajetória da pesquisa e procedimentos ... 49

4.2.1Cenário da pesquisa ... 49

4.2.2Amostra intencional e sujeitos investigados ... 52

4.2.3Técnicas e questões norteadoras para busca das narrativas ... 53

4.2.4Análise e interpretação das experiências... 56

4.2.5 Textualização e transcriação das entrevistas ... 57

4.2.5.1 A história de Geia ... 58

4.2.5.1.1 Contexto e caracterização ... 58

4.2.5.1.2 A narrativa ... 59

4.5.2.2 A história de Iris ... 69

4.5.2.2.1 Contexto e caracterização ... 69

4.5.2.2.2 A Narrativa ... 70

4.5.2.3 A história de Orfeu ... 75

4.5.2.3.1 Contexto e caracterização ... 75

4.5.2.3.2 A narrativa ... 76

4.5.2.4 A história de Hestia ... 79

4.5.2.4.1 Contexto e caracterização ... 79

4.5.2.4.2 A narrativa ... 79

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4.5.2.5.1 Contexto e caracterização ... 81

4.5.2.5.2 A narrativa ... 82

4.5.2.6 A história de Hera ... 84

4.5.2.6.1 Contexto e caracterização ... 84

4.5.2.6.2 A narrativa ... 85

4.5.2.7 A história de Atena ... 90

4.5.2.7.1 Contexto e caracterização ... 90

4.5.2.7.2 A narrativa ... 90

4.2.6 Questões éticas ... 94

5 RESULTADOS: CATEGORIAS ANALÍTICAS ... 95

5.1 Explicação causal do sofrimento mental a partir da visão dos sujeitos do estudo ... 95

5.2 Do reconhecimento da crise a busca por apoio terapêutico e seus descaminhos ... 100

5.3 A rede de atenção em saúde mental como recurso de apoio buscado pelos sujeitos ... 106

5.3.1 SAMU ... 106

5.3.2 Polícia e bombeiros ... 109

5.3.3 Hospital Mental de Messejana ... 109

5.3.4 Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) ... 110

5.4 O Cuidado e suas dimensões: perspectiva da família e da rede ... 111

5.5 O porvir na visão do familiar e do sujeito em crise ... 118

6 REFLETINDO SOBRE A COMPREENSÃO DAS HISTÓRIAS DOS SUJEITOS DO ESTADO ... 122

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 132

REFERÊNCIAS ... 135

APÊNDICES ... 143

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1 INTRODUÇÃO

“O valor das coisas não está no tempo em que elas duram, mas na intensidade com que acontecem...” (Fernando Pessoa).

1.1 Trajetória profissional e implicação do investigador

Foi na intensidade com que as coisas aconteceram na minha vida que inicio o relato acerca do interesse pelo campo da saúde mental. Desde 1994, quando ingressei na Universidade Vale do Acaraú para cursar Enfermagem, direcionei a conhecer e vivenciar a saúde mental. Foi a primeira experiência, não apenas na disciplina Psiquiatria, mas no campo de estágio da disciplina Médico Cirúrgico, em que me deparei na sala de recuperação da Santa Casa de Misericórdia de Sobral, Ceará, com o meu primeiro sujeito em situação de crise.

Não recordo o nome da paciente, assim, será, aqui, tratada de Maria. Maria, sujeito em sofrimento psíquico, encontrava-se na sala sentada no chão e rodeada de profissionais de saúde que objetivavam aplica-lhe um anestésico, pois precisava submeter-se à cirurgia. Ao perceber aquela agitação e observando como Maria estava assustada, solicitei à professora que me permitisse intervir e fui prontamente proibido; não desistindo, sai às escondidas e quando percebi estava sentado no chão junto à Maria. Conversei e expliquei a Maria sobre o que sucedia e esta aceitou que realizasse a punção venosa, solicitada a uma profissional mais hábil.

Ainda na Faculdade, vivenciaria outro fato que marcaria minha trajetória no campo da saúde mental. Durante estágio na Casa de Repouso Guararapes1, observei um sujeito em crise epilética; ao cair no chão, um dos auxiliares do setor se aproximou do sujeito e desferiu-lhe alguns pontapés e, em seguida, atirou-lhe terra. Aquilo me revoltou, motivo de protesto verbal, logo contido pelo professor. Conheci ali a cruel realidade da Instituição Psiquiátrica, do isolamento aos maus-tratos.

Antes mesmo de terminar a Faculdade, mantive os primeiros contatos com o secretário municipal de saúde de Crateús, minha terra natal, na tentativa de garantir meu primeiro emprego. Solicitaram-me a comparecer no início do ano para ser direcionado ao trabalho: com tamanho entusiasmo, compareci no feriado do dia primeiro de janeiro de 1998,

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uma quarta feira, à Secretaria de Saúde de Crateús, em busca da função. No dia seguinte, retornei e, em conversa com o Secretário, fui encaminhado ao Programa de Agente Comunitário de Saúde (PACS) e designado a estruturar o setor de vigilância epidemiológica. Colaborei com a implantação do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) daquela cidade, em 1999. Neste período, convivi com alguns militantes da Reforma Psiquiátrica cearense.

Eram tempos de transformação no campo da saúde, consolidava-se a municipalização da saúde, descentralizavam-se os processos gerenciais e expandia-se o Programa Saúde da Família (PSF), atual Estratégia Saúde da Família (ESF). Aconteciam transformações de ordem organizacional e sanitária. O Sistema Único de Saúde (SUS) se consolidava como política, assim, tornava-se primordial implantarem-se os Sistemas Locais de Saúde (SILOS). Impulsionado pelo gestor local da saúde, em 2001, inicie o Curso de Especialização em Vigilância Epidemiológica, da Escola de Saúde Publica do Ceará (ESP), concluindo com a monografia intitulada: Conhecendo o fazer informação: o Sistema de Informação em Saúde de Crateús.

Em 2002, fui aprovado em seleção pública para a 5ª microrregional de saúde de Canindé2, em que permaneci por nove meses. Em 2003, fui convocado pelo município de Fortaleza para assumir concurso público. No momento da lotação, optei por integrar a equipe multiprofissional do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), da Secretaria Executiva Regional (SER) IV3. Nesta atividade, tive a oportunidade de conhecer e acompanhar diversos sujeitos psiquiátricos e conviver com o sofrimento psíquico destes. Por dois anos, acompanhei as dificuldades e os desafios deste espaço de tratamento.

Foram momentos de sofrimento pessoal por deparar-me com situações sem perspectiva de solução. Aquilo me angustiava, atormentava, a ponto de refletir em patologias físicas. Contudo, foram dias que me excitaram a transformar o espaço em que estava inserido. Voltei neste espaço a vivenciar situações de emergência com sujeitos em situação de crise psíquica. Ao chegar um dia para o expediente de trabalho, deparei-me com uma paciente em crise no leito do consultório de enfermagem. Não dispunha de medicação injetável que controlasse seu estado. As colegas que a acompanhavam tinham acionado o Sistema de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), sem êxito. Por várias vezes, o enfermeiro e o

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A regionalização é a diretriz do Sistema Único de Saúde (SUS) que orienta o processo de descentralização das ações e serviços de saúde e os processos de negociação e pactuação entre os gestores (Pacto pela Saúde 2006, Portaria/GM n.º 399, de 22 de fevereiro de 2006) (CEARÁ, 2012).

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médico do plantão da tarde também tentaram essa solução, em vão. Foi necessário, ao final, transportar a referida paciente para o hospital psiquiátrico em transporte particular.

Essa situação proporcionou várias reflexões que me instigaram a novos desafios e questionamentos. Foram cogitações de diversas ordens, dentre estas, emergiu a necessidade de conhecer os usuários que frequentavam os CAPS de Fortaleza e o perfil social a que pertenciam. Era uma questão interessante a ser investigada, realizada após ingresso no Mestrado de Enfermagem, da Universidade Federal do Ceará (UFC), em 2005, como dissertação.

No mesmo ano, busquei um novo desafio, o de integrar a equipe da Célula de Vigilância Epidemiológica (CEVEPI), de Fortaleza. O primeiro contato com o coordenador aconteceu e fui integrado à equipe com a condição de monitorar os dados da saúde mental do município, atividade desafiadora pela completa ausência de informações neste campo. Mesmo com os empecilhos encontrados, consegui estruturar uma avaliação mensal das internações psiquiátricas, o que contribuiu para uma avaliação mais abrangente da rede de saúde mental do município.

Em 2006, ainda no decorrer do Mestrado, submeti-me a um novo desafio profissional: a docência acadêmica, assumindo a disciplina Saúde Mental, na Faculdade de Enfermagem, da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Este fato oportunizou articular experiências profissionais com o saber acadêmico. Iniciei, então, uma nova trajetória profissional, que permitiria direcionar aos futuros profissionais de enfermagem os conhecimentos epistêmicos do campo da saúde mental. Concluí, no ano seguinte, o Mestrado em Enfermagem, com a defesa da dissertação: Centro de Atenção Psicossocial: perfil epidemiológico.

O crescimento profissional e intelectual conquistado neste campo de atuação e na academia motivou-me a integrar a coordenação do Colegiado de Saúde Mental de Fortaleza (CCSM), ocorrido, simultaneamente, com meu ingresso no Doutorado em Saúde Coletiva, da Universidade Federal do Ceará (UFC), em associação com a Universidade Estadual do Ceará (UECE) e a Universidade de Fortaleza (UNIFOR).

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individual, elementos essenciais para compreender o caminho escolhido para trilhar no doutorado o campo temático da saúde mental.

1.2 Delimitação do objeto de estudo

Como visto, minha trajetória profissional tem me proporcionado a lida com o sofrimento psíquico de indivíduos, principalmente quando estão em situação de crise.

Uma das situações-limite recentes vivenciadas por mim neste contexto aconteceu quando, como membro da equipe central de saúde mental do município de Fortaleza, presenciei a conversa de uma colega ao telefone com uma coordenadora de CAPS. No diálogo, a coordenadora relatava uma situação problema corriqueira na rede de serviços, em que um de seus usuários encontrava-se em situação de crise e não apresentava melhoras do quadro. Neste relato, a profissional expunha que o expediente de trabalho estava chegando ao fim e com ele o dilema de qual destino seria dado a este paciente, pois, neste período, o município não dispunha de uma emergência psiquiátrica ou mesmo de leitos de observação. Passada a situação, procurei saber que encaminhamento havia sido dado ao referido caso. Fui informado que naquele dia o paciente retornou a casa; e que, no dia seguinte, em seu bairro, agrediu uma pessoa com uma arma branca (faca), encontrando-se preso.

Essa situação-limite fez emergir o problema central de meu estudo durante o doutorado e algumas perguntas condutoras: como o sujeito em sofrimento psíquico vivencia as situações de crise no cotidiano dos espaços assistenciais da rede de saúde mental? Como ocorre o cuidado diante da situação de crise psíquica? Qual o fluxo de atendimento dos sujeitos em situação de crise psíquica na rede de atenção em saúde mental de Fortaleza? Quais as facilidades/dificuldades encontradas pelos sujeitos e familiares diante das situações de crise psíquicas?

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2 OBJETIVOS

2.1 Geral

Compreender as experiências vivenciadas por sujeitos em sofrimento mental e seus familiares na busca por assistência na rede de atenção em saúde mental de Fortaleza quando em situações de crise.

2.2 Específicos

 Identificar o itinerário de sujeito e familiar durante a atenção às situações de crise psíquica;

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“CASA DE ORATES”

As crônicas da vila de Itaguaí dizem que em tempos remotos vivera ali um certo médico, o Dr. Simão Bacamarte [...] o nosso médico mergulhou inteiramente no estudo e na prática da medicina. Foi então que um dos recantos desta lhe chamou especialmente a atenção,—o recanto psíquico, o exame de patologia cerebral. Não havia na colônia, e ainda no reino, uma só autoridade em semelhante matéria, mal explorada, ou quase inexplorada. [...] A vereança de Itaguaí, entre outros pecados de que é argüida pelos cronistas, tinha o de não fazer caso dos dementes. Assim é que cada louco furioso era trancado em uma alcova, na própria casa, e, não curado, mas descurado, até que a morte o vinha defraudar do benefício da vida; os mansos andavam à solta pela rua. Simão Bacamarte entendeu desde logo reformar tão ruim costume; pediu licença à Câmara para agasalhar e tratar no edifício que ia construir todos os loucos de Itaguaí, e das demais vilas e cidades[...]. A proposta excitou a curiosidade de toda a vila, e encontrou grande resistência, tão certo é que dificilmente se desarraigam hábitos absurdos, ou ainda maus. A idéia de meter os loucos na mesma casa, vivendo em comum, pareceu em si mesma sintoma de demência. [...] A Casa Verde foi o nome dado ao asilo, por alusão à cor das janelas, que pela primeira vez apareciam verdes em Itaguaí [...]; Itaguaí tinha finalmente uma casa de orates[...].O principal nesta minha obra da Casa Verde é estudar profundamente a loucura, os seus diversos graus, classificar-lhe os casos, descobrir enfim a causa do fenômeno e o remédio universal [...] — Sem este asilo, continuou o alienista, pouco poderia fazer; ele dá-me, porém, muito maior campo aos meus estudos. [...] E tinha razão. De todas as vilas e arraiais vizinhos afluíam loucos à Casa Verde. Eram furiosos, eram mansos, eram monomaníacos, era toda a família dos deserdados do espírito. Ao cabo de quatro meses, a Casa Verde era uma povoação. Não bastaram os primeiros cubículos; mandou-se anexar uma galeria de mais trinta e sete. [...] o alienista procedeu a uma vasta classificação dos seus enfermos. Dividiu-os primeiramente em duas classes principais: os furiosos e os mansos; daí passou às subclasses, monomanias, delírios, alucinações diversas. [...]Isto feito, começou um estudo acurado e contínuo; analisava os hábitos de cada louco, as horas de acesso, as aversões, as simpatias, as palavras, os gestos, as tendências; inquiria da vida dos enfermos, profissão, costumes, circunstâncias da revelação mórbida, acidentes da infância e da mocidade, doenças de outra espécie, antecedentes na família, uma devassa, enfim, como a não faria o mais atilado corregedor. E cada dia notava uma observação nova, uma descoberta interessante, um fenômeno extraordinário. Ao mesmo tempo estudava o melhor regímen, as substâncias medicamentosas, os meios curativos e os meios paliativos, não só os que vinham nos seus amados árabes, como os que ele mesmo descobria, à força de sagacidade e paciência [...] A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente. [...] No conceito dele a insânia abrangia uma vasta superfície de cérebros; e desenvolveu isto com grande cópia de raciocínios, de textos, de exemplos. [...] Assim, apontou com especialidade alguns personagens célebres, Sócrates, que tinha um demônio familiar, Pascal, que via um abismo à esquerda, Maomé, Caracala, Domiciano, Calígula, etc., uma enfiada de casos e pessoas, em que de mistura vinham entidades odiosas, e entidades ridículas. [...] Suponho o espírito humano uma vasta concha, o meu fim, [...] é ver se posso extrair a pérola, que é a razão; por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da razão e da loucura. A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia e só insânia.

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3 REVISÃO DE LITERATURA: ESTADO DA ARTE

3.1 O manicômio: lugar de “saber-poder” do sofrimento psíquico

A concepção de sofrimento psíquico vem sendo encarada de diversas formas ao longo da história, sempre acompanhada por padrões culturais, sociais e político de cada época. Historicamente, a doença mental tem se apresentado como um fenômeno social que teve como modelo de atenção “na idade clássica” o internamento, cujas estruturas hospitalares foram reformadas, adaptadas e construídas com objetivo de recolher, alojar, alimentar os que para lá eram enviados (FOUCAULT, 2009).

Estes locais estabelecem-se como um poder semijurídico, estabelecido pelo rei entre a polícia e a justiça, permitindo decidir, julgar e executar punições, tratamento e internamentos contra qualquer indivíduo considerado sem-razão. Por séculos, a estrutura para o tratamento da loucura centrava-se em instituições hospitalares conhecidas como manicômios (FOUCAULT, 2009).

Etimologicamente, manicômio é um lugar de “cuidar de loucos” ou “casa de

loucos” (BARRIENTOS, 1999). O manicômio era entendido como um espaço de observação sistemática que permitia descrever e classificar as alterações apresentadas pelo louco. O primeiro exemplo de adequação manicomial foi visto em 1656, no Hospital Geral de Paris, que passou por reformas e reorganização administrativa para receber os loucos (FOUCAULT, 2009). Enquanto isso, a Alemanha criou e expandiu por seu território as casas de correção (FOUCAULT, 2009).

O constituir desses espaços instituiu a Grande Internação, em que se encarceram indivíduos marginalizados, pervertidos, miseráveis, delinquentes e, entre estes, os loucos em crise (FOUCAULT, 2009; AMARANTE, 2010). Vários espaços de cuidado se organizam nesse período, recebendo diversos termos como: madhouse, ou casa de loucos e asylum, encontrados em texto em inglês; em obras italianas, os termos utilizados são asilo e hospício. O manicômio seria a instituição que se caracterizaria por acolher os doentes mentais e dar

-lhe o tratamento sistemático esperado (PESSOTI, 1996, p.152).

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falta de iniciativa, interesse ou energia (CARVALHO; COSTA 2008). A permanente necessidade de conter e imobilizar a doença mental estabelece o manicômio como estrutura de força, espécie de entidade administrativa que, ao lado dos poderes constituídos, decide, julga e executa a contenção e o isolamento do sujeito em furor (FOUCAULT, 2009).

Pessotti (1996), em sua análise sobre a loucura e as formas de concebê-la ou tratá-la em diferentes épocas, considera que o século XIX merece o título de “século dos

manicômios”,pois:

Em nenhum outro século o número de hospitais destinados a alienados foi tão grande; em nenhum outro a terapêutica da loucura foi tão vinculada à internação; em nenhum outro século o número de internações atingiu proporções tão grandes das populações. Mais ainda, em nenhum outro século a variedade de diagnósticos de loucura, para justificar a internação, foi tão ampla. Como decorrência, a atenção dada à loucura e ao manicômio, nos ambientes culturais e médicos, jamais foi tão grande e tão difusa. E a medicina da loucura, em conseqüência, nunca floresceu tanto antes do século passado...[sec. XIX]...seja como etiologia, seja como semiologia ou terapêutica. O manicômio foi o núcleo gerador da psiquiatria como especialidade médica (PESSOTI, 1996, p. 9).

É nesse espaço segregador que, durante o século XIX, Pinel encontrara os loucos e lá os deixara, mas, sem antes, se vangloriar por “libertá-los” (FOUCAULT, 2009). A libertação acontece com a retirada das correntes dos alienados de Paris, fato que se constituiu em um grande progresso no tratamento do louco. Pois, a mera liberdade de movimentar-se e de locomover-se os restituía à condição humana (PESSOTI, 1996).

Ao analisar a obra de Pinel em seu Tratado, datado de 1809, considerado fundador da psiquiatria médica moderna, Pessotti (1996, p. 69) destaca que o papel fundamental do manicômio é...

Sustentar a origem passional ou moral da alienação e propor que a essência dela e o desarranjo de funções mentais destoavam gritantemente da atitude vigente até o final do século XVIII. [...] Com Pinel, o manicômio se torna parte essencial do tratamento, não será mais apenas o asilo onde se enclausura ou se abriga o louco, será um “instrumento de cura”, conforme o definiu Esquirol.

Assim, estabelece-se a função curiosa do manicômio do século XVIII: lugar de diagnóstico e classificação, retângulo botânico, cujas espécies de doenças são divididas em compartimentos cuja disposição lembra uma vasta horta. Mas, também, espaço fechado para um confronto, lugar de uma disputa, campo institucional onde se trata de vitória e de submissão.

Foucault (2009), na Microfísica do Poder, em estudo clássico sobre o tema, afirma que a internação é uma criação institucional própria do século XVIII.

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essencialmente considerada como uma forma de erro ou de ilusão. Ainda no começo da idade clássica, a loucura era vista como pertencendo às quimeras do mundo; podia viver no meio delas e só seria separada no caso de tomar formas extremas ou perigosas. Nestas condições compreende-se a impossibilidade do espaço artificial do hospital em ser um lugar privilegiado, onde a loucura podia e devia explodir na sua verdade. Os lugares reconhecidos como terapêuticos eram primeiramente a natureza, pois que era a forma visível da verdade; tinha nela mesma o poder de dissipar o erro, de fazer sumir as quimeras. As prescrições dadas pelos médicos eram de preferência a viagem, o repouso, o passeio, o retiro, o corte com o mundo vão e artificial da cidade. Esquirol ainda considerou isto quando ao fazer os planos de um hospital psiquiátrico. Recomendava que cada cela fosse aberta para a vista de um jardim. Outro lugar terapêutico usual era o teatro. Natureza invertida. Apresentava-se ao doente a comédia de sua própria loucura colocando-a em cena. Emprestando-lhe um instante de realidade fictícia. Fazendo de conta que era verdadeira por meio de cenários e fantasias, mas de forma que, caindo nesta cilada, o engano acabasse por estourar diante dos próprios olhos daquele que era sua vítima. Esta técnica por sua vez também não tinha desaparecido completamente no século XIX. Esquirol, por exemplo, recomendava que se inventassem processos aos melancólicos, para que sua energia e seu gosto pelo combate fossem estimulados (FOUCAULT, 2009, p. 120-121).

A prática do internamento no começo do século XIX coincidiu com o momento em que a loucura era percebida menos com relação ao erro do que com relação à conduta regular e normal. Momento em que aparece não mais como julgamento perturbado, mas como desordem na maneira de agir, de querer, de sentir paixões, de tomar decisões e de ser livre. Enfim, em vez de se inscrever no eixo verdade-erro-consciência, se inscreve no eixo paixão-vontade-liberdade.

Qual poderia ser então o papel do asilo nesse movimento de volta às condutas regulares? Certamente, ele teria de início a função que se confiava aos hospitais no fim do século XVIII. Permitir a descoberta da verdade da doença mental, afastar tudo aquilo que, no meio do doente, possa mascará-la, confundi-la, dar-lhe formas aberrantes, alimentá-la e também estimulá-la. Mais que um lugar de desvelamento, o hospital, cujo modelo foi dado por Esquirol, é um lugar de confronto. A loucura, vontade perturbada, paixão pervertida, deveria encontrar uma vontade reta e paixões ortodoxas. Este afrontamento, este choque inevitável e a bem dizer desejável, produzirão dois efeitos: a vontade doente que podia muito bem permanecer inatingível, pois não é expressa em nenhum delírio, revelará abertamente seu mal pela resistência que opõe a vontade reta do médico; e, por outro lado, a luta que a partir daí se instala, se for bem levada, deverá conduzir a vontade reta à vitória, e a vontade perturbada à submissão e à renúncia.

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posse, de domesticidade e às vezes de servidão entre doente e médico - tudo tinha por função fazer do personagem do médico o "mestre da loucura", aquele que a faz se manifestar em sua verdade quando ela se esconde, quando permanece soterrada e silenciosa, e aquele que a domina, acalma e a absorve depois de tê-la sabiamente desencadeado.

Soma-se a isso o pensamento de periculosidade do louco que estabelece a necessidade de isolamento (internamento), tornando-se fundamental a criação e manutenção de manicômios, em que se utiliza o poder absoluto para fechar nestas casas habitantes sãos, como fez Simão Bacamarte, no alienista, qualquer sinal de desrazão, violência, furor ou insanidade mental fazia-se necessário o cerceamento (FOUCAULT, 2009; ASSIS, 2007).

Pinel vai estabelecer ações que modificam a forma de tratamento disponibilizado aos loucos, de regra, este tratamento ficava a cargo de pessoas sem formação médica e religiosa. Tratamentos alheios ao saber médico e que se agravam quando se tratava de sujeitos perigosos (PESSOTI, 1996). Isso antecipou e expandiu a necessidade de reformar a instituição manicomial e instituir atividades que exercesse funções básicas de observação sistemática do comportamento de sujeitos e de assegurar experiências reais que corrigissem pedagogicamente os vícios de razão desviada (PESSOTI, 1996).

Para essas funções se instituírem, Esquirol, o primeiro e mais destacado discípulo de Pinel, constituiu um novo processo de trabalho em manicômios, organizando estatisticamente as enfermidades mentais da época. Lentamente, esta organização gerou as primeiras formas de tratamentos terapêuticos (PESSOTI, 1996; BASTOS, 2009).

Nesse período, Emil Kraepelin, ainda, era estudante e nem imaginava que teria seu nome ligado ao movimento da psiquiatria. Kraepelin classificou e documentou os primeiros diagnósticos da loucura para o século XX. Finalizou sua obra com a criação de uma sistemática nosológica e distinguiram as alienações endógeneas das exógeneas, o que permitiria considerá-lo o ‘pai da psiquiatria moderna’ (AMARANTE, 1996). Como professor, sua primeira lição era que “todo alienado constituísse de algum modo um perigo para seus próximos, porém em especial para si mesmo” (OLIVEIRA, 2009, p. 31).

A contemporaneidade da psiquiatria foi marcada pelo destaque de diversos autores organicistas, que ampliaram os conhecimentos das doenças mentais em uma perspectiva psicológica, destacam-se: Freud (1856-1939), Pavlov (1849-1936), Kurt Lewin (1890-1947) (PESSOTI, 1996). Destes, Freud tornou genial, criando a psicanálise.

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movido por forçasque desconhecia o verdadeiro sentido de experiências que estavam em um lugar cuja consciência não poderia chegar (BEZERRA, 1989).

A destituição do sujeito de sua razão, realizada por Freud, permite-o a torna-se parte de seu processo terapêutico. Freud inclui o sujeito no processo de descoberta de seus desejos, a partir da cadeia discursiva seria possível promover o deciframento do saber inconsciente (RIBEIRO, 2006). Ao livrar-se das amarras do consciente, fez com que o sujeito produzisse articulação discursiva que o levaria a distintas cenas do seu inconsciente. Freud, ainda, contribuiu para o diagnóstico dos alienados quando afirmou que o homem aliena-se de si ao retirar o sentido de seus desejos. Repressão, recusa e rejeição são os mecanismos utilizados para este fim, engendrando as doenças mentais (TENENBAUM, 2010).

Com os novos conceitos idealizados por Freud, a alienação mental passou a ter estrutura caracterizada por uma perda do relacionamento com o mundo, com o eu e a instituição, trazendo com isso mudança, convocando os prestadores de assistência em saúde mental a uma atualização conceitual e ética, com a finalidade de modificar os modos assistenciais, buscando por desenvolver uma intervenção à doença baseado em projeto terapêutico que incluíam as percepções dos sujeitos em sofrimento mental (AMARANTE, 1994; SILVIA; FONSECA, 2005).

Todavia, não foram os conceitos freudianos que se estabeleceram durante o século XX, mas a nosologia de Kraepelin que inseriu o conceito de personalidade psicopática, implantando a noção de anormalidade (AMARANTE, 1996). Neste sentido, ocorreu mudança na concepção do saber médico, marcada pela substituição da doença mental - século XIX - para a concepção de anormalidade do século XX.

A perturbação desse equilíbrio, dessa harmonia, é a doença, a anormalidade. A Medicina ganha, ao longo do contexto histórico, o direito de restabelecer a harmonia, o equilíbrio, expulsando a doença e restaurando a saúde. Em vez de se estabelecer como terapêutica e resolutiva, opta por discutir e gerar diversos sistemas classificatórios de enfermidades, principalmente da doença mental.

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ausência de dignidade humana! Nascendo, assim, “as primeiras experiências de Reformas Psiquiátricas” (AMARANTE, 2007, p. 40).

A concentração em uma única forma terapêutica provocou a superpopulação nos manicômios. Com isso, os custos de manutenção destes espaços tornaram-se inviáveis e em vez de lugares de reeducação das ideias e dos hábitos, passaram a se distanciar da proposta idealizada (PESSOTI, 1996). Deste modo, passaram a explicitar o preconceito, o abandono e as más condições de tratamento e cuidado às pessoas internadas.

Isso caracterizou o movimento de Reforma Psiquiátrica instalado pelo mundo, pois se tornou primordial enfrentar ao mesmo tempo as faces do problema, estabelecendo cuidado cidadão ao sujeito em sofrimento psíquico.

3.2 Os novos espaços de cuidado em saúde mental

Desde a criação do isolamento como forma de tratamento, ainda, hoje, em vigor em instituições, a psiquiatria tem tentado instituir as mais variadas formas de cuidar de doentes, focando em um processo de desconstrução do modelo manicomial instituído.

A desconstituição do manicômio como único modelo de cuidado do sujeito em sofrimento psíquico obriga a instituir serviços com características de acolhimento, cuidado e trocas sociais. Serviços que aprazam relação integral entre profissionais, instituição e usuário, através do estabelecimento de princípios libertários, humanitários e sociáveis que resultem em reintegração deste sujeito. A reinserção exige substituição das práticas psiquiátricas para práticas de cuidado por ações de cuidado que respeitem a dignidade e a necessidade do sujeito em sofrimento psíquico (OLIVEIRA, 2009; GONÇALVES; SENA, 2001).

Pode se compreender o cuidado como a essência humana estabelecida através de um processo de comunicação. Boff (2008) afirma que o cuidado entra na natureza e na constituição do ser humano e torna-se uma das coisas fundamentais da vida. O cuidado vai além de um ato, de uma atitude, abrange um momento de atenção, de zelo, de responsabilização com o outro. Este processo de responsabilização nos novos aparatos de atenção em saúde mental procura compartilhar com familiares e comunidade as obrigações de criação de um estatuto de cidadania e autonomia dos sujeitos (SILVA, 2007).

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de ordem conceitual quanto prática, que passaram a contestar a eficiência do manicômio no tratamento do sujeito mental. Esta conjuntura transformadora idealizaria as novas formas de assistência e uma destas seria a ideia de que o contato com a vida normal traria boa recuperação aos doentes, contudo se buscava reduzir os crescentes números de internados e, automaticamente, abater-se-iam os gastos públicos com este tipo de tratamento (PESSOTI, 1996).

O rompimento epistêmico do manicômio se estabeleceu de acordo com os diferentes contextos históricos em que foram criados. O termo manicômio foi substituído gradativamente pela especificação de hospital psiquiátrico, este, por sua vez, oficializou-se como casa de correção, “não sendo necessário obter a permissão oficial para abrir um hospital ou casa de correção: todos podem fazê-lo à vontade” (FOUCAULT, 2009, p. 54).

No entanto, este rompimento não aconteceu com essa facilidade, ao contrário, a desconstrução do modelo percorreu décadas para sofrer modificação significativa. Toda modificação, mesmo as mais simples, acarreta consequência significativa, por isso a liberação dos doentes mentais de espaço secular precisou ser realizada com o cuidado e a garantia de que este rompimento não causaria danos a eles.

O rompimento teve como objetivo a aproximação do doente, da doença e das práticas terapêuticas, visando resgate desse sujeito e o rompimento da relação “objetal profissional x sujeito para construção de um novo olhar, recorte teórico, relações interpessoais e estratégias de abordagem terapêutica que resgate a condição de sujeito do doente mental” (OLIVEIRA, 2005, p. 42).

Sobre essa óptica, movimentos de abordagem terapêuticos se estruturam no cenário mundial, dos quais se destacaram: a Psiquiatria de Setor, na França; as Comunidades Terapêuticas, na Inglaterra; a Psiquiatria Preventiva, nos Estados Unidos (EUA); e a Desinstitucionalização italiana.

As Comunidades Terapêuticas (CT), no Reino Unido, constituíram-se as primeiras experiências neste campo, tendo como objetivo recepcionar e atender aos soldados que retornavam da guerra e precisavam de cuidados psíquicos, pois a rede hospitalar era isoladora e segregante.

A expressão “comunidades terapêuticas” foi cunhada por Tom F. Main, em 1946,

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terapêuticos para além da relação médico/sujeito, envolvendo os auxiliares médicos e próprios doentes no trabalho de cura e reabilitação (BARROS, 1994). Estas comunidades se estabeleceram por permitir uma “democratrização das opiniões, tolerância, comunhão de internações e objetivos e confronto com a realidade” (DESVIAT, 1999, p. 35).

Vanguardista desse período, a França instituiu a Psiquiatria de Setor e a Psicoterapia Institucional. A Psiquiatria de Setor acreditava que as experiências do modelo hospitalar estavam esgotadas, e que o mesmo deveria ser desmontado, isto é, deveria ser tornado obsoleto a partir da construção de serviços assistenciais que iriam qualificando o cuidado terapêutico. Com isso, o modelo liberal viu-se ameaçado por um serviço de psiquiatria que planejava, assumia compromissos e proporcionava novas formas de assistência (AMARANTE, 2007; DESVIAT, 1999).

A Psicoterapia Institucional foi cunhada por Georges Daumézon e Koechlin, em 1952, em referência a experiências alternativas francesas que exploravam terapeuticamente as atividades laborativas, como terapia ocupacional. Os primeiros trabalhos de referência foram desenvolvidos em Saint – Alban (1941) e na clínica privada de La Borde (1953) e tiveram como referência a Psicanálise e a Sociologia. Buscava-se por promover intervenções junto ao doente e espaço institucional (BARROS, 1994).

Nos EUA, desenvolveu-se a Psiquiatria Preventiva que também ficou conhecida como Saúde Mental Comunitária e apresentava como entendimento que todas as doenças mentais poderiam ser prevenidas, desde que detectadas precocemente. Como bases teóricas,

seu idealizador Gerald Caplan escreveu a obra “Princípios de Psiquiatria Preventiva” que tinha como modelo inspirador a “História Natural da Enfermidade”, de Leavell e Clark,

porque a doença mental também apresentava uma História Natural e detectada precocemente, poderia ser prevenida. Assim, foram estabelecidos três níveis de prevenção, de acordo com o momento evolutivo da doença mental:

... Prevenção Primária [como]: intervenção nas condições possíveis de formação da doença mental, condições etiológicas, que podem ser de origem individual e (ou) do meio; prevenção secundária [entendida como] intervenção que busca a realização de diagnóstico e tratamento precoces da doença mental e prevenção terciária: que se define pela busca da readaptação do sujeito à vida social, após a sua melhora (BIRMAN; COSTA, 1994, p. 54).

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psiquiatria. O segundo deslocamento provocou a saída do hospício para a comunidade (AMARANTE, 2007).

Completando o quadro das novas alternativas de atenção à doença mental, têm-se também a Antipsiquiatria, termo cunhado nos anos de 1960 e que ficou identificado a uma atitude de mera contestação e rebeldia (GOULART, 2007; AMARANTE, 2007). O movimento congregou críticas à psiquiatria e às instituições psiquiátricas, por entender que a loucura e a doença mental eram construções sociais e viam a instituição psiquiátrica como agência de controle social (GOULART, 2007).

Porém, o movimento de maior impacto acontecido no contexto da Reforma Psiquiátrica mundial foi o processo de desinstitucionalização italiana que representou rompimento com o hospital psiquiátrico, com o modelo comunitário terapêutico inglês e com a política de setor francesa, conservando destes movimentos apenas a democratização das relações e a ideia de territorialidade (BARROS, 1994).

O movimento italiano tornou-se referência histórica importante nos movimentos de Reforma Psiquiátrica que emergiram no mundo (GOULART, 2007). Pois, estabeleceu-se por recomendar um tratamento alternativo ao modelo tradicional. Seu idealizador, Franco Basaglia, psiquiatra, professor universitário, foi pressionado a gerenciar o manicômio da província de Gorizia, no extremo norte da Itália, localidade sem o menor destaque do ponto de vista político e acadêmico (AMARANTE, 1996).

Inicialmente, reconheceu o convite como um sepultamento de sua vida acadêmica, no entanto, seguindo orientação do Prof. Belloni, assumiu e tornou-se o nome mais importante de todo o conjunto de atores sociais e políticos que participaram do movimento de reforma italiana. Foi, nas inquietações, reflexões e ações desse psiquiatra que se revelou paradigmaticamente a construção de um sentido alternativo às normas e à cultura vigente da época em relação ao sujeito em sofrimento psíquico (GOULART, 2007).

A transformação paradigmática não foi fácil, a chegada ao manicômio de Gorizia foi tão intensa que fez Basaglia recordar do período que passou preso, pois encontrou os internos fechados à chave (AMARANTE, 1996). Após um período de reflexão, assumiu o desafio, pois vislumbrou uma experiência inovadora, sintonizada com a psiquiatria social europeia do pós-guerra.

Basaglia encontrou em Gorizia uma arquitetura que contava com oito setores fechados, quatro femininos e quatro masculinos, totalizando 629 internos, classificados como

“agitados”, “crônicos” e “tranquilos”, segundo os cânones da psiquiatria clássica

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princípio de “negação do mandato institucional” (BASAGLIA, 1985). Para isso, proibiu a

contenção dos sujeitos nos leitos e estabeleceu, paulatinamente, novas regras de organização e comunicação. Este seria, na opinião de Antônio Slavich, o momento fundante de todo o movimento que se desenvolveria posteriormente (GOULART, 2007).

O momento veio atrelado à implantação de novos conceitos, como o de desinstitucionalização. Abordada no movimento sobre a tríade da construção de uma nova política de saúde mental, com centralização no trabalho terapêutico, objetivando enriquecer a existência global e a construção de estruturas externas substitutivas, a internação manicomial

(ROTELLI; LEONARDIS; MAURI, 2001). Como consolidação do processo

desinstitucionalizador, teve-se o movimento que denunciou os maus-tratos, as formas prisionais e ineficazes dos manicômios, resultando na desconstrução destes serviços assistenciais e na consolidação do movimento antimanicomial.

A despeito da evolução ocorrida em Gorizia, a experiência de Basaglia não pode ser utilizada como bem-sucedida, pois não se concretizou a sonhada desinstitucionalização ou fechamento do manicômio (GOULART, 2007; BARROS, 1994). No entanto, foi na cidade de Trieste que a experiência mais bem-sucedida e conhecida da Reforma Psiquiátrica italiana ocorreria (GOULART, 2007). Nesta região, constituiu-se uma estratégia de transformação que privilegiou o momento externo sem preocupar-se com o desmontar do manicômio, esperando que enfraquecesse por si, após o advento dos serviços territoriais (BARROS, 1994).

Dessa experiência, eclodiu a Lei 180 (Lei Franco Basaglia), que proibiu a construção de novos manicômios, impedindo novas admissões, regulamentando as internações compulsórias e garantindo os direitos de autodefesa e autotutela (GOULART, 2007). Ademais, ressalta-se que a Psiquiatria Democrática, com matriz teórica no marxismo, intentava revolucionar concepções e terapêuticas médicas vigentes mediante análise crítica da cultura manicomial e do saber psiquiátrico (RANDEMARK; JORGE; QUEIROZ, 2004).

A Psiquiatria Democrática passou a contestar a posição da doença mental, já que, historicamente, havia sido reduzida a loucura na conceituação da Medicina da época e o sujeito aprisionado em seu mundo, juntamente com sua patologia. A Psiquiatria Democrática não negou a existência da doença mental, a proposta de Basaglia foi colocar entre parênteses a doença e, assim, destituir o indivíduo daquilo que poderia ser rótulo para defini-lo (GOULART, 2007; BASAGLIA, 1985).

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princípio norteador as necessidades reais dos sujeitos, colocando-o como foco central da atenção e não mais a doença, que na visão basagliana ficaria aprisionada. Destituíam-se as ideias de que o doente mental era um indivíduo incompreensível e, como tal, perigoso e imprevisível, impondo-lhe, como única alternativa, a morte social (BASAGLIA, 1985).

A luta teve por objetivo a mudança cultura, profissional e social, visando maior tolerância e menor autoritarismo diante do sujeito mental (GOULART, 2007). Por esse motivo, a Reforma Psiquiátrica italiana foi respaldada e recomendada pela Organização Mundial de Saúde a converter-se em parâmetro para a reorientação das políticas de saúde mental em todo o mundo, inclusive no Brasil (BARROS, 1994).

3.3 O contexto da Reforma Psiquiátrica brasileira: uma revisita

Foram os êxitos apresentados pelo movimento reformista italiano, liderado por Franco Basaglia, que fizeram com que o psiquiatra e seus colaboradores viessem ao Brasil em duas situações históricas. A primeira, em 1978, para o I Congresso Brasileiro de Psicanálise, Grupos e Instituições, no Rio de Janeiro, e a segunda, em 1979, para o III Congresso Mineiro de Psiquiatria, em Belo Horizonte. As referidas vindas contribuíram decisivamente para constituição do movimento reformista brasileiro (AMARANTE, 2007).

Os encontros foram o culminar de um movimento reformista idealizado por trabalhadores da Divisão Nacional de Saúde Mental (DINSAM), em 1978, que denunciaram as más condições assistenciais dos hospitais psiquiátricos brasileiros, colocando em xeque a política psiquiátrica brasileira (AMADOR, 2010). A visão de descaso na assistência ao sujeito psiquiátrico, denunciada pela DINSAM, foi constatada e mostrada por Franco Basaglia, quando em uma destas estadas no Brasil, visitou o Hospital Psiquiátrico de Barbacena, expondo para sociedade brasileira a crueldade e violência da assistência psiquiátrica que era prestada aos sujeitos mentais (AMARANTE, 2007).

O destratar do sujeito mental e a expansão da rede psiquiátrica particular capitanearam significativos movimentos contrários à forma de assistência psiquiátrica que se instituía no país, massificando-se, assim, as denúncias de maus-tratos e desassistência aos sujeitos mentais, fazendo com que os manicômios fossem afrontados, questionados e que novas formas interpretativas da loucura fossem elaboradas.

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(MTSM)4, como movimento social que empunhou o lema: “Por uma Sociedade sem Manicômios” (NICK; OLIVEIRA, 1998). O referido lema consolidou a influência da

“tradição basagliana”, no movimento de reforma brasileira, que passou a centrar sua luta contra o hospitalocentrismo, instituindo-se o movimento de desinstitucionalização (OLIVEIRA, 2005).

Para Rotelli, Leonardis e Mauri (2001), a palavra desinstitucionalização pode assumir diferentes conceitos e objetivos, a depender do contexto cultural e político nos quais está inserida. No Brasil, é fácil identificar linhas distintas na aplicação do processo de desinstitucionalização, tendo reformistas que aplicam a conotação de desospitalização, com política de altas hospitalares, de redução de leitos e fechamento dos hospitais psiquiátricos, enquanto, outra linha institui a desinstitucionalização como processo social, complexo, que transforma não apenas o modelo assistencial, mas o lugar social da loucura, da diferença e divergência (AMARANTE, 2009).

Independente da forma de utilização do processo de desinstitucionalização, este se tornou um marco epistêmico do movimento da Reforma Psiquiátrica. As visões instituídas pelo processo da desinstitucionalização motivaram a reorientação do modelo de atenção à saúde mental brasileira, em que se tentavam modificar o modelo centrado na doença mental, executado no interior dos manicômios, para inclusão de um modelo centrado nos cuidados à saúde mental, sem estigma e discriminação (BRASIL, 2004).

A reorientação proposta para o modelo de atenção ao sujeito em sofrimento mental e o processo de desospitalização criaram a perspectiva de modificação das estruturas assistenciais de atenção a este sujeito, instituindo, assim, as estruturas extra-hospitalares, que deveriam assistir os sujeitos egressos de hospitais psiquiátricos e constituir um filtro contra hospitalizações ulteriores (ROTELLI; LEONARDIS; MAURI, 2001).

O MTSM observou que para empreender o processo de reforma e instituir os aparatos extra-hospitalares, requeria-se a mobilização de diversos seguimentos sociais, em que se integraram o Movimento Popular em Saúde (MOP), os militantes do Partido Comunista Brasileiro e do Partido dos Trabalhadores (em estruturação na época), lideranças religiosas, movimentos estudantil e, principalmente, familiares e usuários dos serviços mentais que passaram a aderir ao movimento, desempenhando papel relevante na implantação

4

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de serviços alternativos ao manicômio (GOULART, 2007; BRASIL, 2005; NICK; OLIVEIRA, 1998).

Essa mobilização civil incentivou a sociedade brasileira a incorporar-se na discussão da loucura e assistência prestada em instituições, instigando congressista, como Paulo Delgado (1989), a apresentar projetos de lei que propusessem a substituição da rede de assistência hospitalar por um sistema de serviços substitutivos de atenção ao sujeito mental (SOUZA, 2007; OLIVEIRA, 2005).

Delineou-se, então, a construção de uma política de saúde mental inovadora, que diversificava em distintas estratégias a forma de atenção ao sujeito mental, que nesta nova atenção, tornava-se “usuário” (OLIVEIRA, 2005). Este cuidado tem se dado através de vários dispositivos, os quais se destacam os núcleos e Centros de Atenção Psicossociais: unidades locais/regionais que se constituem em porta de entrada da rede de serviços para as ações relativas à saúde mental, contando com população adscrita definida pelo nível local e oferecem atendimento de cuidados intermediários entre o regime ambulatorial e a internação hospitalar (BRASIL, 2010a); as Residências Terapêuticas (RT) para egressos de hospitais psiquiátricos com registro de longas internações, que não possuem mais suportes sociais e nem laços familiares (BRASIL, 2000) e o Programa Federal “De volta para casa”, programa de reintegração social de pessoas acometidas de transtornos mentais, egressas de longas internações psiquiátricas e proporciona o pagamento de um auxílio-reabilitação psicossocial (BRASIL, 2010).

Porém, essa diversidade estrutural de serviços não foi suficiente para criar uma rede de dispositivos articulados e muito menos para estabelecer a Reforma Psiquiátrica na agenda estatal, justamente pela falta de linhas de financiamento específicas para a área (GODOY, 2009). Por esse motivo, o processo de reforma apresentou implantações distintas entre as regiões do país, sendo que a heterogeneidade apresentada não prejudicou a instituição deste novo modelo de atenção ao usuário de saúde mental, uma vez que não houve precedente de implantação de uma reforma deste tipo em um país com as características (geográficas, políticas, sociais) do Brasil (BEZERRA JÚNIOR, 2007).

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Para os gestores nacionais da Política de Saúde Mental brasileira, as alterações ocorridas em três componentes comprovam a modificação do modelo de atenção à saúde mental. Trata-se da expansão da rede comunitária, da redução de leitos com reconfiguração do porte dos hospitais e da inversão do financiamento (DELGADO, 2007).

Afirmações desse tipo tendem a considerar a macro política, desconsiderando o contexto político-administrativo de municípios que apresentam em suas realidades uma transição deficitária, já que não oferecem uma rede extra-hospitalar sustentável que disponha de estrutura mínima, como: CAPS, emergência psiquiátrica, leitos psiquiátricos em hospitais gerais, em quantidades suficientes e em funcionamento. A ausência desta estrutura é, facilmente, percebida em diversos municípios brasileiros, proporcionando, com isso, desassistência aos sujeitos em sofrimento psíquico em situação de crise.

Os novos serviços psiquiátricos estruturados pela Reforma não atende...

à nova cronicidade que ultrapassa as consultas ambulatoriais. São novos padrões de cronicidade de grande ubiquidade, onipresente em todas as reformas, independentemente dos sistemas sanitários e de cobertura social que as sustentam, em especial o grupo dos “jovens adultos crônicos”, de comportamentos psicopáticos, que com seus atos interpelam tanto o sistema de saúde quanto os serviços sociais e o aparato judicial (DESVIAT, 1999, p. 77).

Assim, tendem a apresentar priorização de demanda a partir da oferta, proporcionando consultas rápidas e com intervalos de tempo demorados entre si, realidade vivenciada nos CAPS de Fortaleza, cujo intervalo médio é de 45 a 60 dias entre as consultas, incentivando, assim, a utilização da terapêutica farmacológica que transforma o usuário em consumidor de medicamentos psicotrópicos, visando, essencialmente, contenção de sofrimento abordado, exclusivamente, como sintoma de uma doença, sendo que a ausência desta medicação motiva o sujeito à crise (GODOY, 2009; SOUZA, 2007; OLIVEIRA, 2005).

3.4 O sujeito em sofrimento psíquico em situação de crise: definições conceituais

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Figura 1  –  Redes Assistenciais da Atenção Integral à Saúde do Sistema Municipal de Saúde  de Fortaleza-CE
Figura 2 - Distribuição das internações psiquiátricas por ano. Fortaleza, CE, Brasil, 2005 a  2012
Figura 3  – Protocolo de urgências psiquiátricas de Fortaleza.
Figura 4 - Distribuição geográfica do município de Fortaleza-CE por SER.
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Referências

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