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3. DOCÊNCIA EM PESQUISA

3.2. O debate educacional marxista

É bastante restrita a quantidade de pesquisa sobre o trabalho docente que se filia (ou que se pretenda filiada) a uma tradição de teoria marxista; por conta disso, a publicação de um debate baseado na teoria de Marx, na revista Cadernos de Pesquisa, teve considerável importância para a área educacional, constituindo-se como referência teórica fundamental para os esforços de pesquisa. Este texto pretende apenas realizar a exposição dos termos em que se trava este debate na revista Cadernos de Pesquisa; a análise crítica da forma como os conceitos são utilizados aqui serão apresentadas posteriormente.

O texto que inaugura o debate é de Nicanor Palhares de Sá, intitulado, “Aprofundamentos das relações capitalistas no interior da escola”, da revista 57, de 1986. O autor apresenta a “mudança das relações de produção no interior da escola no Brasil, evidenciada pelas modificações ocorridas no processo de trabalho escolar” (SÁ, 1986, p. 21), que ocorreram no bojo da transformação da escola tradicional na escola atual, em que docentes passaram de “artesãos” a “trabalhadores parcelares da educação”. As idéias são articuladas em torno de críticas a Dermeval Saviani, que são tidas como “visões distorcidas” sobre o processo de transformação da escola e do trabalho docente, bem como do tecnicismo26 como ideologia que

domina a lógica de funcionamento das escolas.

Nessa perspectiva, a natureza do trabalho pedagógico, ou a “característica específica inerente ao ato pedagógico defendida por Saviani inexiste nas relações de produção na escola burguesa atual” (SÁ, 1986, p. 25), pois, se havia impedimentos para a adequação da escola tradicional ao capitalismo, as relações de trabalho se alteraram profundamente na escola contemporânea. Em oposição a Saviani, Palhares de Sá defende que a organização do trabalho na escola se altera em função “do desenvolvimento do capital em esferas de atividades até então não incorporadas ao seu movimento” (SÁ, 1986, p. 22).

naquele momento.

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Sobre isso, o autor diz: “Saviani acredita que a ação pedagógica é dotada de uma tal natureza e especificidade que a ela não se aplicam relações especificamente capitalistas. Ora, se sobre as relações de produção do sistema escolar não se aplicam relações de produção capitalistas, então a imposição ideológica da concepção tecnicista não tem uma base material de sustentação, serve apenas para aumentar o caos e o fracasso escolar” (SÁ, 1986, p.21).

O autor aponta como a principal mudança na organização do trabalho na escola o parcelamento do saber escolar entre os diferentes docentes, que seriam destes retirados e concentrados em instrumentos “tecnológicos” como os “pacotes didáticos”. Num momento anterior, na escola tradicional se efetivaria apenas a subsunção formal do trabalho docente ao capital, dado que naquele momento, “a principal condição de trabalho é o domínio enciclopédico ou erudito do saber e o professor artesão (tradicional) o possui e controla praticamente como sua propriedade privada” (SÁ, 1986, p. 23). Além disso, o trabalho se configura como um trabalho artesanal intelectual, porque mesmo numa escola privada, é um trabalho individualizado e não cooperativo (pressuposto para o desenvolvimento das relações capitalistas):

O aspecto importante aqui é que o capital comercial não controla o sistema de produção de saber, mas apenas explora a força de trabalho docente. Nessa situação, uma escola de capital comercial, pode ter vários professores trabalhando sob sua exploração, mas não haverá entre eles cooperação no processo de trabalho. Serão todos trabalhos independentes e individualizados, cada qual percorrerá solitariamente todos os momentos do processo de trabalho (SÁ, 1986, p. 23).

A partir dessas considerações, Sá conclui que, na relação pedagógica tradicional, não há divisão do trabalho e o processo de trabalho não separa o momento da produção e do consumo da aula, que “não pode ser alienada, como as demais mercadorias, sem a presença do trabalho (professor)” (SÁ, 1986, p. 23-4). Conclui também que as condições de trabalho não poderiam ser capitalistas enquanto o magistério tinha total controle sobre os saberes.

A transformação da escola tradicional na escola atual mudou substancialmente a relação de docentes com os saberes e com a implantação de tecnologias educacionais27, o que Palhares de Sá chamou de “revolução no processo de trabalho escolar no Brasil” (SÁ, 1986, p.24). Essa mudança no processo de trabalho teve como resultado “a separação entre o produto e o processo de produção. A aula torna-se independente do professor podendo ser alienada como qualquer outra mercadoria no mercado: o ‘pacote’ didático é um dos exemplos” (SÁ, 1986, p. 24).

A introdução de novos mecanismos de reprodução significa que o saber deixa de se concentrar no professor, enquanto artesão e passa a concentrar-se no capital. A ampliação da divisão de trabalho no aparelho escolar e a introdução de novas tecnologias, como meio de produção, criam as condições para a universalização de relações especificamente capitalistas nas atividades educacionais. Não é por acaso que o mito da atividade docente como sacerdócio está definitivamente esgotado, pois, agora, o trabalho docente é simplesmente

27 Segundo o autor “A tecnologia deve ser entendida tanto do ponto de vista da introdução de equipamentos como na forma de

trabalho, como qualquer outro trabalho, a única distinção possível é o seu valor de reprodução (SÁ, 1986, p. 27).

Assim sendo, as transformações nas relações de trabalho dentro da escola de acordo com o desenvolvimento capitalista provocaram dois impactos. Um deles é a mudança na formação dos alunos enquanto futuros trabalhadores, uma vez que a hierarquização dos trabalhos dentro da escola produz maior competitividade entre os alunos, a “hierarquização da atividade pedagógica resulta na hierarquização dos educandos enquanto produtos dessa ação pedagógica, como força de trabalho, destinados ao mercado como as demais mercadorias” (SÁ, 1986, p. 26). Outra decorrência daquelas transformações diz respeito a uma reconfiguração das escolas, num processo de igualação entre as públicas e as privadas, a partir do modelo das grandes empresas, que passam a ser compostas por “uma massa de profissionais assalariados, hierarquizados e especializados (parcelarizados), envolvidos na produção e transmissão do saber sistemático” (SÁ, 1986, p. 25).

E não importa que a empresa seja estatal ou privada, o importante é que as condições gerais da produção estejam dadas e o capital possa livremente implantar-se em qualquer esfera da atividade educativa (...) Nas empresas públicas existem somente as condições gerais para a implantação do capital. Apesar de a empresa governamental não visar diretamente a exploração da força de trabalho, com vista à reprodução do capital, ela submete o trabalho pedagógico às mesmas condições e, freqüentemente, sob uma exploração mais violenta, impondo condições de reprodução a níveis inferiores às demais categorias profissionais” (SÁ, 1986, p.25).

Tais argumentos, querem comprovar que docentes passam a dominar somente “uma mínima parcela do ato pedagógico” (SÁ, 1986, p. 26), e por isso, tornam-se profissionais desqualificado. Esse processo, não identificado temporalmente, é também identificado por Sá como o momento em que a subsunção formal passa a ser também subsunção real do trabalho docente ao capital, pois “essas transformações permitiram o completo domínio do capital sobre os meios de produção educacionais” (SÁ, 1986, p.28), o que seria um processo de proletarização docente:

O que distinguia os trabalhadores da educação dos demais proletários era o fato de concentrar em suas mãos uma condição essencial do processo do trabalho educativo – o saber escolar. Com a divisão do trabalho escolar, esse saber foi reduzido a uma parcela insignificante. Cada categoria profissional da esfera do trabalho educativo detém apenas uma parcela. A totalidade do saber escolar encontra-se distribuído pela totalidade dos trabalhadores da educação (SÁ, 1986, p. 27).

Alguns meses depois, ainda no ano de 1986, na revista de número 59, Vitor Paro publica artigo com o objetivo subsidiar a discussões a respeito de uma administração escolar voltada para a transformação social, a partir de um estudo sobre a natureza do processo de produção

pedagógico “contrastando-o com o processo de produção material e investigando até onde o modo de produzir tipicamente capitalista pode generalizar-se na escola, a ponto de dar-se aí a completa subordinação real do trabalho ao capital” (PARO, 1986, p. 27).

Para o autor, a análise das condições concretas da escola revela que há uma “grande irracionalidade na busca de seus fins especificamente educacionais”, porque a escola não consegue desempenhar seu principal papel que é “proporcionar às amplas camadas da população a apropriação do saber historicamente acumulado e o desenvolvimento da consciência crítica da realidade” (PARO, 1986, p. 28). A busca por uma maior racionalidade deve se dar mediante uma prática de administração escolar crítica que encontre na própria natureza do trabalho educativo os “objetivos, métodos e técnicas adequados ao incremento de sua racionalidade”, assim como as empresas capitalistas fazem em relação aos seus objetivos.

Se atentarmos para o desenvolvimento histórico da atividade administrativa no interior das empresas, perceberemos que o crescimento de sua racionalidade se deu através do desenvolvimento de técnicas e métodos adequados a sua especificidade e ao alcance de seus objetivos. Se existe algo, neste processo, de que a administração escolar pode tirar proveito, não é certamente a absorção acrítica dos procedimentos aí desenvolvidos, mas precisamente a constatação de que a atividade administrativa, enquanto processo que se renova permanentemente e enquanto instrumento na busca da racionalidade, não pode deixar de ter o desenvolvimento de seus princípios, métodos e técnicas intimamente relacionado com a natureza e os propósitos da coisa administrada (PARO, 1986, p. 28).

Ele considera a diferença entre o trabalho docente realizado na escola privada (que gera mais-valia para o empresário e é portanto, trabalho produtivo) e o trabalho docente na escola pública, onde “essa subordinação formal não se dá, já que não há aí a apropriação de um valor excedente produzido a partir da compra e venda da força de trabalho” (PARO, 1986, p. 28). Considera que um processo de subsunção real do trabalho docente ao capital se efetivaria se ocorresse uma generalização de modelos de gerenciamento capitalista no interior das escolas. Mas, essa possibilidade é descartada, pois, isso negaria o potencial transformador da escola, que ao invés disso, deve ter uma “administração crítica”.

Paro entende que Dermeval Saviani desloca a questão para o sentido correto porque descarta a “polarização entre trabalho produtivo e trabalho improdutivo como critério adequado para a compreensão do sentido do trabalho em educação” e se “propõe a tratar do problema à luz da contraposição entre trabalho material e trabalho não-material” (PARO, 1986, p. 29).

O trabalho docente deve ser tido enquanto trabalho imaterial não porque não se separa do ato de produção, mas sim porque há a presença do consumidor (no caso, o aluno) no ato de

produção (a aula). Isso quer dizer que a atividade educativa não pode se realizar sem a participação do educando. “Essa participação se dá na medida em que o aluno entra no processo ao mesmo tempo como objeto e como sujeito da educação” (PARO, 1986, p. 29).

A separação deve ser entendida no sentido de que o consumo da aula “não se dá apenas imediatamente, mas se prolonga para além do ato de produção, por toda a vida do indivíduo” (PARO, 1986, p. 30, grifo do autor). Além disso, ele diz que é evidente que “o conceito de trabalho não deve ser entendido do ponto de vista da produção capitalista, como ‘trabalho produtivo’, mas como trabalho humano em geral, como ‘atividade orientada a um fim’ (Marx, 1983, p. 150, v.1, t.1)” (PARO, 1986, p. 30), o qual pode se separar entre a concepção e execução. Ocorre que sendo o saber a matéria prima e o objeto de trabalho, tal separação não pode ocorrer e, com isso, o “saber não pode ser expropriado do trabalhador, sob pena de descaracterizar-se o próprio processo pedagógico” (PARO, 1986, p. 31):

Mas esta limitação do capitalismo na escola não se dá puramente por tratar-se de um tipo de trabalho não-material cujo produto não é separável do ato de produção: um exame rigoroso demonstra que ele é sim separável. A restrição da aplicabilidade do modo de produção capitalista na escola se dá, fundamentalmente, porque, no processo de produção pedagógico, está envolvido também, e principalmente, um tipo de saber cuja natureza de matéria- prima, não pode alienar-se do processo de produção (PARO, 1986, p. 31). Embora não tenha ocorrido um processo de subsunção real do trabalho docente ao capital e essa seja uma possibilidade remota pela natureza da atividade pedagógica, o autor considera que

...convém alertar para o fato de que essa tomada de consciência da peculiaridade do processo de produção pedagógico não pode ter o sentido espontaneísta de se cruzarem os braços diante da certeza de não possibilidade de subordinação real do trabalho ao capital, no interior da escola. Pelo contrário, é preciso ter consciência de que, mais do que essa subordinação real do trabalho ao capital, a atual tendência de radicalização do modo de produzir capitalista na escola pode levar à completa descaracterização deste enquanto instância privilegiada de apropriação do saber e de desenvolvimento da consciência crítica da realidade” (PARO, 1986, p. 31).

Finalizando o rápido debate travado numa perspectiva marxista, No mesmo número da revista em que é publicado o artigo de Vitor Paro, aparece também um texto de Celestino Alves Silva Junior, intitulado “Administração do trabalho na escola: a prática existente e a teoria necessária”. O autor parte das constatações teóricas de Vitor Paro para tratar do conceito de administração e considera que:

Neste sentido, o conceito de “administração em geral” que Paro propõe, aproxima-se do conceito de ‘trabalho em geral’ com o qual Marx fundamenta

sua análise da degradação do trabalho sob o modo capitalista de produção (SILVA JÚNIOR, 1986, p. 74).

Silva Júnior (1986), a lógica da administração da sociedade capitalista é organizada em torno de dois conceitos, a eficiência e a produtividade. Enquanto isso, o objetivo da escola deve ser o de “transmissão/assimilação crítica do saber historicamente acumulado ao conjunto majoritário da população trabalhadora” (SILVA JÚNIOR, 1986, p. 74), o que o leva à conclusão de que “Se a educação é, em seu significado mais profundo, incompatível com os valores da sociedade capitalista, ela também o é com as formas de administração que essa sociedade gerou” (SILVA JÚNIOR, 1986, p. 76). Tendo essa incompatibilidade em vista, ressalta a necessidade de uma administração crítica da escola:

Nem a gerência, nem a racionalidade são elementos antagônicos à realização do ato educativo. Ao contrário, ao buscarem a articulação de pessoas e de procedimentos, gerência e racionalização se apresentam como aquelas condições que ajudam a definir o próprio sentido educativo da ação: afinal, o que se pretende com a educação é que as pessoas se organizem para a construção da “humanidade” de todos e de cada um (SILVA JÚNIOR, 1986, p. 76).

Vê-se que o debate consiste fundamentalmente numa discussão entre três autores acerca do entendimento de conceitos marxistas, das diferentes implicações práticas que decorrem das distintas compreensões e, ainda, das recomendações de como deve ser a escola para que ela e as suas finalidades se transformem no interior do capitalismo.