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O debate teórico e o balanço da hegemonia estadunidense

4.2 A política externa de George W Bush e o governo Obama

5- O debate teórico e o balanço da hegemonia estadunidense

Mencionamos que o debate em torno da hegemonia estadunidense se divide em duas grandes visões: os que afirmam a crise da hegemonia estadunidense e os que apontam que essa hegemonia se reforça e/ou se transforma num império. Incluímo-nos no grupo que postula a existência da crise de hegemonia. Esse, como o segundo, é um grupo diversificado e teoricamente heterogêneo. Inscrevemo- -nos nas visões que partem das análises do ciclo sistêmico organizadas, desde o

161 Entre 1980 e 2010 a relação divida pública federal/PIB estadunidense cresceu em cerca de 3,5% ao

ano. Mantida essa proporção, nos próximos dez anos, a divida poderá ultrapassar 120% do PIB.

162 O Economic Report of The President 2010 estimava para 2011 uma elevação do gasto com juros do

orçamento Federal de US$ 180 bilhões para US$ 250 bilhões, enquanto apontava uma redução dos gastos previdenciários de US$ 685 bilhões para US$ 595 bilhões.

Fernand Braudel Center, pelas teorias do sistema mundial. Buscamos articulá-las com o enfoque marxista desenvolvido nas obras de Marx, nas teorias da revolução científico-técnica e da dependência. A teoria da dependência postula a existência de uma situação de compromisso como eixo da criação da divisão internacional do trabalho e situa a hegemonia como um conceito-chave de sua visão da eco- nomia-mundo capitalista. Isso permitiu que entre os pioneiros da teorização da crise de hegemonia estadunidense estivessem autores como Theotonio dos San- tos. Mas faltou integrar de maneira mais profunda o ciclo sistêmico às análises da dependência, pois estas não tomaram a economia-mundo como objeto central e, como tal, os seus ciclos político-institucionais. Essa insuficiente integração pode sobrestimar a atuação dos ciclos de Kondratiev e as possibilidades de crescimento da economia mundial em fases onde o movimento ascencional do Kondratiev se encontra com movimentos cíclicos descendentes mais amplos.

Outros enfoques também afirmam a crise de hegemonia. Defendem uma suave transição para um mundo de hegemonia compartilhada através do recurso ao multilateralismo e ao soft power163 (Nye, 2002) ou a lenta transição para um

mundo multicivilizacional de hegemonias regionais (Huntington, 1997). Já os criticamos anteriormente.

Destacaremos aqui as teses que defendem o fortalecimento da hegemonia dos Estados Unidos: o enfoque liderado por Ana Esther Ceceña, no Instituto de In- vestigaciones Económicas, no México; e o desenvolvido por François Chesnais e seus discípulos na França, por Susan Strange nos Estados Unidos ou pelo grupo articulado por Maria da Conceição Tavares e José Luís Fiori no Brasil, em torno dos Institutos de Economia da UFRJ e da Unicamp.

Ana Esther Ceceña produz e organiza um amplo conjunto de ricos trabalhos em que participam autores como Raúl Ornelas e Andrés Barreda Marin e cuja melhor expressão é o livro Producción estratégica y hegemonia mundial (1995). Partindo da conceituação de Gramsci sobre hegemonia, a autora a define como a combinação de coerção e consentimento que permite a um sujeito coletivo reali- zar a articulação dos vários níveis de gestão social, convertendo os seus interesses e propostas em universais (Ceceña, 2001). No plano internacional, a hegemonia seria organizada pelo Estado-nação sobre a base da liderança econômica que exer- cem seus capitais. Ana Esther distingue quatro dimensões da hegemonia: militar,

163 Para Joseph Nye em The Paradox of American Power: Why the World´s Only Superpower Can´t Go It Alone (Nova York, Oxford University Press, 2002), p. 8-12, o soft power representa o conjunto

de valores que permite a um país ser admirado pelos demais e estabelecer a agenda política que o favoreça. Segundo o autor, o soft power dos Estados Unidos está embasado nos valores da democra- cia, da liberdade pessoal, da mobilidade social, da abertura, na força da cultura de massas e dos aparatos de comunicação.

econômica, política e cultural. Ela se dedica sobretudo à dimensão econômica, articulando-a com a militar. Para a autora, a globalização do sistema mundial capi- talista converteu a hegemonia numa atividade altamente complexa, pois ampliou os seus horizontes e tornou difuso seu controle. Seu exercício passou a depender do domínio estratégico do processo de reprodução da existência social. Este signi- fica o controle das tecnologias de ponta, dos recursos físicos essenciais e da força de trabalho e permite a reprodução ampliada dos superlucros. A partir desse es- quema conceitual a autora vai mostrar as vantagens dos Estados Unidos diante de seus competidores no controle do estratégico: liderança nas tecnologias de ponta (informática, software, telecomunicações, P&D), exploração de matérias-primas essenciais (petróleo, carvão, minerais metálicos) e controle de uma força de tra- balho etnicamente diversificada, impulsionada por migrações, que lhes permite impor condições de negociação favoráveis à flexibilização dos direitos trabalhistas e à acumulação de capital (Ceceña e Marín, 1995; Ceceña, 1995; Ceceña, 1998; e Ceceña e Sader, 2002).

Os trabalhos de Ana Esther apontam para outra importante dimensão da hege- monia dos Estados Unidos: a tendência ao territorialismo, em razão da necessidade de processar recursos nas escalas requeridas pela expansão da economia mundial (petróleo e outros minerais estratégicos) e de controlar os recursos estratégicos de novas fontes de desenvolvimento – biodiversidade – que permitam associar a microeletrônica à biotecnologia (Ceceña e Sader, 2002). Esses recursos estão pro- fundamente articulados à territorialidade. As regiões mais ricas em biodiversidade no mundo são as zonas tropicais que reúnem a franja central das Américas, que abarca desde o Pantanal e a Amazônia até as montanhas e zonas frias de Puebla; o sudeste asiático, em particular a Indonésia e suas ilhas; e a costa ocidental da África, que abarca Nigéria e Congo. O controle desses territórios, suas popula- ções e culturas indígenas são importante vantagem competitiva para impulsionar a liderança econômica. A franja central da América é também rica em reservas petrolíferas. A produção conjunta de petróleo e gás natural de México, Venezuela, Colômbia e Brasil, em 1999, ultrapassava a da Arábia Saudita (Maddison, 2001, p. 150)164. A autora indica as atuais pretensões territorialistas dos Estados Unidos

na região, esboçada inicialmente através dos planos Colômbia e Puebla-Panamá165

e dos estudos sobre biodiversidade realizados por instituições vinculadas ao Estado

164 Maddison indica o papel crescente da América Latina na produção de petróleo e gás natural. Isso

se deve à descoberta de grandes jazidas em zonas de alta profundidade e ao desenvolvimento de tec- nologias para explorá-las. Em 1973, a América Latina possuía 9,5% da produção mundial e, em 1999, essa parcela havia aumentado para 14,7%. Ver Angus Maddison, The World Economy, cit.

165 O plano Puebla-Panamá refere-se à construção de Istmo em Tehuantepec, que criaria um corre-

norte-americano como o International Cooperative Biodiversity Group. Isso daria partida à ocupação militar, empresarial e científica da região por distintas razões: combate ao narcotráfico, estabelecimento e controle do Istmo de Tehuantepec, conservação e estudo da biodiversidade.

Os trabalhos desse grupo fornecem abundante investigação empírica sobre tecnologias, recursos estratégicos e geopolítica. Entretanto, algumas precisões me- todológicas devem sobre a relação entre essas dimensões e a hegemonia:

a) A demonstração da liderança estadunidense em ramos da alta tecnologia e matérias-primas estratégicas é insuficiente para concluir pela solidez da hegemo- nia. A hegemonia não está ligada à liderança sobre o estratégico, mas ao controle de uma soma de poder tão desigual em relação aos competidores que permite ao país articular e subordinar os demais interesses ao seu, convertendo-o em univer- sal. Do ponto de vista militar, por exemplo, a liderança tecnológica dos Estados Unidos não elimina sua vulnerabilidade, que ficou evidente em episódios como a Guerra do Vietnã e o atentado às torres gêmeas e ao Pentágono. O Vietnã demons- trou que a sociedade estadunidense não aceita os altos custos do imperialismo, e o atentado, que a liderança dos Estados Unidos no setor militar não preserva a sua população de episódios de destruição em massa. Como afirma Nye (2002), entra- mos numa era em que o soft power é mais decisivo que o hard power para garantir a estabilidade institucional.

b) Para a hegemonia, tão importante quanto os diferenciais de poder estratégico são suas tendências de distribuição no tempo. A crise hegemônica se estabelece quando, apesar de significativos diferenciais de poder para o hegemón, lhe é cada vez mais difícil conservar esses diferenciais. A redução desses diferenciais se desen- volve durante um longo tempo e direciona a crise para o colapso hegemônico.

c) A reflexão sobre os montantes de diferenciais que sustentam a hegemonia não deve estar vinculada prioritariamente aos valores de uso. Mas deve relacio- nar as dimensões ligadas às tecnologias e ao processo de trabalho à capacidade do hegemón sustentar a arquitetura institucional que organizou para a econo- mia mundial. No plano econômico da hegemonia, situado por Ana Esther, os indicadores mais adequados para a medição do estágio de evolução de uma hegemonia não são de per si os tecnológicos, mas os macroeconômicos, que os incluem em outra dimensão. Indicadores como balança comercial, balança de pagamentos e taxa de lucro permitem visualizar a capacidade do país hege- mônico de impulsionar e sustentar seu próprio desenvolvimento e o da econo- mia mundial. Eles não dispensam a análise dos processos tecnológicos, mas se situam num plano de abrangência mais amplo, pois são capazes de medir os efeitos econômicos desses processos.