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O Decreto 4.887/2003 e a identificação das

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CAPÍTULO I: QUILOMBOLAS: DA ESCRAVIDÃO AO ESTADO

1.6 O Decreto 4887/2003

1.6.2 O Decreto 4.887/2003 e a identificação das

O Decreto 4.887/2003 estabeleceu critério da autodefinição como meio principal de reconhecimento das comunidades remanescentes de quilombos como se extrai de seu artigo 2º:

Consideram-se remanescentes das comunidades de quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.

§ 1º - Para os fins deste Decreto, a caracterização dos remanescentes das comunidades de quilombo será atestada mediante auto-definição da própria comunidade.

§ 2o São terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos as utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural.

§ 3o Para a medição e demarcação das terras, serão levados em consideração critérios de territorialidade indicados pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, sendo facultado à comunidade interessada apresentar as peças técnicas para a instrução procedimental.

O critério se utiliza de dados antropológicos para reconhecimento

da comunidade tradicional. Esta base do regulamento foi construída por meio da Convenção nº 69 da Organização Internacional do Trabalho.

A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, em vigor no ordenamento jurídico brasileiro trata dos povos indígenas; mas sua

norma também é aplicada a outros povos: “cujas condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outros setores da coletividade nacional, e que estejam regidos, total ou parcialmente, por seus próprios costumes ou tradições ou por legislação especial”.

Por meio da análise do texto da Convenção 169 fica claro que a norma inclui tratamento legislativo também às comunidades remanescentes de quilombos, pois esta é diferenciada da massa comum da população, ou seja, se distingue da coletividade nacional.

Vale destacar para nosso trabalho que a Convenção 169 prevê direito de propriedade a estes povos das terras que tradicionalmente ocupam. É o que se extrai de seu artigo 14, item:

1. Dever-se-á reconhecer aos povos interessados os direitos de propriedade e de posse sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Além disso, nos casos apropriados, deverão ser adotadas medidas para salvaguardar o direito dos povos interessados de utilizar terras que não estejam exclusivamente ocupadas por eles, mas às quais, tradicionalmente, tenham tido acesso para suas atividades tradicionais e de subsistência. Nesse particular, deverá ser dada especial atenção à situação dos povos nômades e dos agricultores itinerantes.

E para complementar neste mesmo artigo prevê que a responsabilidade de manter as posses e conferir-lhes os respectivos títulos de propriedade é do Estado conforme se observa em seu item 3: “Deverão ser instituídos procedimentos adequados no âmbito do sistema jurídico nacional para solucionar as reivindicações de terras formuladas pelos povos interessados.”

A Convenção 169 da OIT trata sobre direitos humanos, e ocupa nível hierárquico supralegal no ordenamento jurídico brasileiro, por isso foi esta uma das principais normas usadas como suporte legal para edição do Decreto 4.887/2003.74 Convenção que após ser celebrada pelo Presidente da República conforme disposição do artigo 84, inciso IV da Constituição Federal de 1988, foi submetida ao Congresso Nacional, que a aprovou

através do Decreto Legislativo 143/2002, ao cumprir, assim, o caminho legal destinado a atos internacionais.

Mesmo com a estipulação do critério de auto-reconhecimento, a expressão: “remanescentes de quilombos” merece criteriosa interpretação. Nesse sentido a antropóloga Eliane Catarina O`Dweyer explica como grande estudiosa do assunto que:

...a idéia de quilombo como escravo fugido, que aparece na história dos princípios, é um ‘signo de referência’ e, por sua natureza, é um objeto histórico, ele não apenas reflete o mundo existente ou pré-existente, revelado pelos documentos, como muito menos segue os usos prescritos pela conceituação.

Ao contrário, a categoria quilombo, como objeto simbólico representa um interesse diferencial para os diversos sujeitos históricos, ‘de acordo com sua posição em seus esquemas de vidas’. Por isso, o uso da categoria quilombo, no contexto da afirmação dos direitos constitucionais de segmentos importantes e expressivos da sociedade brasileira, através do cumprimento do art. 68 do ADCT, da Constituição Federal de 1988, tem sido objeto de “mal-entendidos’, devido à perspectiva do observador, ainda que, social e culturalmente, esse uso possa ser considerado ‘criativo’.75

Frederico Barth é um dos principais responsáveis por usar de forma inovadora o critério de auto-identificação para reconhecimento de grupos sociais diferenciados. Este busca métodos inovadores que fogem dos fundamentos biológicos, lingüísticos e raciais.76

A visão tradicional já ultrapassada conhecida como explicativa, cai em desuso, pois esta tenta classificar a comunidade através de um observador externo. Nesta classificação se pretende conferir certa identidade a esta comunidade, determinando o lugar dos indivíduos e seus grupos no universo social.

Ao realizar este tipo de classificação são atribuídos elementos desconhecidos pelo próprio seguimento social em estudo. Tal fato instiga

75 Cf. O`DWYER, Eliane Catarino. Os quilombos do trombetas e do erepecuru-cuminá. In:

Quilombos Identidade étnica e territorialidade. Org. Eliane Catarino O`Dwyer. 2002, p.267. 76 Cf. BARTH, Frederik. Ethnic Groups and Boundaries. 1969, apud PIOVESAN, Flávia e SOUZA Douglas Martins. Op. cit. 2006, p.10.

com que o método de classificação explicativo seja insuficiente e impreciso, não alcançando o que se pretende.

O critério da auto-identificação é determinante para o reconhecimento das comunidades remanescentes de quilombos, pois identifica um grupo social diferenciado. O fator principal é que a identificação não parte de um observador externo, mas sim das diferenças que os próprios sujeitos envolvidos consideram significativas e que aí, são reveladas pelo próprio grupo.77

Por isso é de grande importância ter sido incorporado ao texto do regulamento o critério do auto-reconhecimento. Este fator de identificação é totalmente diferenciado do que era estabelecido pelo Decreto 3.912/2001 que ao regulamentar o artigo 68 do ADCT, estabelecia o critério temporal para o reconhecimento dos direitos das comunidades remanescentes.

Com a modalidade de identificação das comunidades remanescentes de quilombos devidamente conceituados, passamos à regulamentação de suas terras, as quais envolvem várias situações particularizadas, pois existem ocupações quilombolas sobre terras devolutas, terras indígenas, terrenos de marinha, áreas de preservação permanente e terras particulares.

Cada ocupação desta merece um tipo de tratamento legal, porém a ultima destas, ou seja, quando as ocupações quilombolas incidirem sobre terras particulares, é o objeto principal de nossa pesquisa, pois esta legitimação em particular vem sendo objeto de muita discussão e gerando bastante desconforto a este povo.

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