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Segundo Collins (cit. por Bradley, Willing, Rosengarten & Collins, 1997) os desenhos de Paula são a essência da sua arte. Criativos e determinam a sua identidade e poder. Revelam uma fértil imagética mental. Uns são cópias de objetos da vida da artista, outros, vai buscar a outras fontes, como livros. Paula criou o seu mundo desde a infância, um mundo interno repleto de baús onde tudo se descobre e desenha. Os seus desenhos afogam-se em vigor, força e vitalidade, na ligação espelhada entre o ato de desenhar e a animalidade. Quando realiza um desenho imaginado; ainda desenha de cócoras tal como na infância. Entre o final dos anos 50 e inícios de 60 a artista mergulhou num período intenso de desenho da imaginação.

Os animais são criaturas nobres. Se as mulheres alcançarem o estatuto de animais têm sorte. Ser um animal é uma asserção de animalidade, de vigor e vitalidade. (…) Do sentimento para a mão (…) o desenho é fluente e fácil, não há pausas entre a mente, a mão e o papel. Desenhar é como respirar. (…) Todo o meu trabalho tem a ver com a metamorfose. Surge de facto na feitura física do quadro, na experimentação, e no erro (…), os meus quadros estão sempre a mudar. Os acidentes acontecem. Pode ser que desenhe um braço demasiadamente grande e isso dá-me uma pista para uma história completamente diferente. Vou com o que acontece, é uma coisa completamente física.64

O desenho desde a Antiguidade Clássica até ao Renascimento e até meados do séc. XX fez-se sentir segundo formas, funções e significados específicos; era um método de trabalho oficinal, determinado, entre outros, por Giorgio Vassari. O desenho cumpria uma função estandardizada, determinada como um método. Com o mundo contemporâneo, o desenho abre- se, liberta-se da tradição, dos costumes e da função, assumindo-se como obra de arte autónoma. Com Pablo Picasso descobre-se uma nova técnica de colagem no início do século XX (Capucho, 2001). Segundo a autora, os trabalhos em pastel de Paula Rego são desenhos que se confundem com pinturas, pela sua escala, riqueza e modelação cromática.

Também com Paula Rego se encontra a evocação do Renascimento, no seu período de maturidade, tanto pela sua força, movimento, expressão e corpo como pelos cenários, como se de um teatro se tratasse.

Do ponto de vista da análise do desenho, a autora enuncia que a artista usa o desenho como um método de trabalho. Constitui um processo oficinal que liberta a intencionalidade da pintora, tornando-se um fator de mudança nas formalizações plásticas. Para Paula Rego o desenho é o ponto de partida; o desenho estrutura a narrativa pictórica. Nos anos sessenta e setenta Paula utiliza o desenho sob diferentes perspetivas. Nasce um desenho de carácter surrealista, mas que é sobretudo libertador, veja-se O Quarto dos Castigos (1969), e O Sonho

de Vic (1969). Os temas e a interação das personagens em cena constituem a caracterização

surreal pela estranheza, como se Paula representasse as angústias e os fantasmas. Viva o Ding

Dong (1960) e O Senhor Vicente e a sua Esposa (1961), que são expressão da sua inspiração

64Paula Rego citada por Fiona Bradley, 1997, p. 125, na obra Paula Rego, de Bradley,Willing, Rosengarten &

em Dubuffet. A sua ironia e sarcasmo surgem com os nomes que dá às obras, abandona os valores clássicos da representação e abre-se na composição de colagem, mancha de cor e experimentação (idem).

Agustina Bessa-Luís (2008) compara o desenho à pronúncia da fala. Às origens, ao meio onde se cresceu, às vozes que fizeram parte da infância, aos sons enunciados, tudo aparece na fala e no desenho da escrita, de onde emerge a expressão do ser. Para a autora tanto o desenho como a fala traduzem a expressão da primeira infância.

Em Paula Rego o desenho é determinante; tem qualquer coisa de voluptuoso, que Agustina Bessa-Luís encontra no Sonho de José (1990), bem como de autoritário atingindo o seu auge, com a beleza ilimitada, pura e monstruosa nas Avestruzes Dançarinas (1995).

De acordo com Capucho (2001), nos anos setenta, e com o desenvolvimento da técnica de colagem, o desenho dá lugar ao material para colagem em grandes obras, ao invés de obra autónoma. Paula desenha sobre papel, recicla, corta e cola, estabelece uma articulação com outras intervenções, como as manchas de cor densas, grafismos executados a tinta e pincel, pedaços de escrita, contribuindo para um carácter mais estrutural das montagens. As cores fortes e contrastantes dão lugar ao carácter vibrante e dinâmico das obras. Nos anos oitenta separa-se da colagem e desenvolve uma nova técnica de desenho a pincel diretamente sob a superfície do papel, veja-se a propósito Red Monkey, na qual utiliza formas de antropomorfismo metafórico. A cor cobre toda a superfície e as figuras são desenhadas sobre os fundos e preenchidas a manchas moduladas que dão espessura às personagens figuradas.

Os anos oitenta foram o período do início da sua maturidade. Reiniciou adaptando o que na escola aprendera, a fazer desenhos preparatórios para as grandes composições figurativas.

Na série Óperas, que surgiu a seguir, Paula regressa ao suporte de papel com pincel e tinta. Aqui, as figuras antropomórficas são colocadas segundo uma ordenação da esquerda para a direita e de cima para baixo, contribuindo para reforçar um sentido de escrita. Com a série A

Menina e o Cão, em meados dos anos oitenta, veja-se de novo uma viragem na sua obra,

marcando o início do desenho como método de trabalho. A pintura e o desenho separam-se. O desenho transforma-se num trabalho preparatório para a pintura, servindo funções clássicas de projeto e de preparação, método que se torna necessário à medida que a narrativa pictórica adquire um carácter mais claro e verdadeiro, enquanto Paula opta por uma mimesis cada vez maior face ao real. Veja-se na sua obra gráfica um processo recriador de memórias ou de

intenções que constituem desenhos rápidos sintéticos e que se observam nos estudos para a série

A Menina e o Cão. Aqui, Rego reduz o número de personagens em cena, chegando a ficar só

uma. Estas novas intenções reclamam a definição do plano horizontal do chão a partir do jogo de luzes e de sombras projetadas das figuras.

Nos anos noventa, Paula Rego procura a fisionomia, a atitude e a emoção, transformando cada desenho numa narrativa intrincada que se faz acompanhar pela representação de pormenores, quer da figura, quer dos cenários e dos adereços. O que sobressai é a força da emoção e a estranheza das emoções, uma espécie de barroquismo formal. Descobre o médio pastel, que lhe permite desenhar e colorir em simultâneo. Mantem a modernidade, mesmo usando a metodologia clássica de desenho. Os temas clássicos casam-se com a contemporaneidade, pela liberdade que se observa na sua obra através da liberdade de expressão, da estranheza das atitudes que escolhe para os modelos, das vestes, dos lugares e dos adereços. Abandona os cânones de beleza clássica. A definição da realidade a partir de planos estruturantes, transformando a perspetiva numa ótica cinematográfica, a utilização da luz artificial que torna o contraste entre as zonas iluminadas e a zona de sombra mais forte, constituem também a característica das filmagens em estúdio no cinema e, claro, do teatro. O jogo livre entre as escalas das figuras e o uso de uma técnica de desenho afirmativa estão na base de características formais do desenho da pintora. Os seus trabalhos a pastel são desenhos que, pela escala, riqueza e modelação cromática, se podem confundir no resultado final com pintura. O caminho percorrido desde o minimalismo dos desenhos até ao barroquismo dos trabalhos de pastel, caminhando por diferentes fases, revela que, sendo Paula uma pintora, é no desenho e através do desenho que se afirma e se reconhece a sua identidade (Capucho, 2001).

Rego usa cada vez mais o desenho como método de trabalho, tendo como fim a descrição de todas as figuras, cenários e pormenores, de forma a criar um teatro e um jogo onde tudo se passa em cena. Este método foi aprofundado pela autora até se tonar semelhante ao método clássico, como se observa nos estudos para o Jardim de Crivelli (1990-91), permitindo revelar a nosso ver o seu extraordinário e sublime talento descritivo, numa das suas obras- primas.