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O diálogo Bakhtin-Vygotsky: por uma perspectiva

As teorias de Vygotsky e Bakhtin, conforme aponta Freitas (1997), embora desenvolvidas com objetivos diferentes12, dialogam em diversos aspectos. Ambas as teorias construíram suas concepções a partir de uma visão totalizante da realidade, compreendendo o homem como um conjunto de relações sociais. “Contrárias às dicotomias presentes nas concepções de linguagem e de psicologia de seu tempo por oscilarem entre os pólos subjetivo e objetivo, arquitetaram suas teorias em um entrelaçamento entre sujeito e objeto, propondo uma síntese dialética imersa na cultura e na história” (Freitas, 1997: 316).

12 Enquanto a preocupação de Vygotsky está em desenvolver uma psicologia historicamente fundamentada, Bakhtin preocupa-se

Tanto para Vygotsky quanto para Bakhtin, a consciência é engendrada pelas relações que os homens estabelecem entre si no meio social através da mediação da linguagem. Nas duas teorias, portanto, a interação com o outro no meio social tem um papel fundamental, pois “sem ele (o outro) o homem não mergulha no mundo sígnico, não penetra na corrente da linguagem, não se desenvolve, não realiza aprendizagens, não ascende às funções psíquicas superiores, não forma a sua consciência, enfim, não se constitui como sujeito” (Freitas, 1997: 320).

Assim como Freitas (1997), Rojo (2000a) propõe que a teoria da enunciação bakhtiniana constitui-se em “uma boa elaboração para as questões da linguagem e do discurso, crucialmente envolvidas na aprendizagem” (Rojo, 2000a: 2), na medida em que compartilha a visão vygotskiana de que aquilo que é “propriamente humano” é constituído pela criança por meio das relações interpessoais, isto é, através da sua inserção em instituições sociais, tais como família, escola, igreja, etc. Nessas relações interpessoais, os discursos alheios são internalizados e tornados próprios.

É justamente nas relações interpessoais, através da internalização dos discursos alheios, que a língua materna, como aponta Bakhtin (1953), é constituída: “a língua materna – a constituição do seu léxico e sua estrutura gramatical –, não a aprendemos nos dicionários e nas gramáticas, nós a adquirimos mediante enunciados concretos que ouvimos e reproduzimos durante a comunicação verbal viva que se efetua com indivíduos que nos rodeiam” (Bakhtin, 1953: 301, 302).

Por estarmos constantemente internalizando e revozeando os enunciados dos outros, a linguagem apresenta, segundo Bakhtin (1953), um caráter heteroglóssico e dialógico. Nesse sentido, todo enunciado pressupõe uma atitude responsiva do(s) outro(s) a quem ele se dirige. O outro, para Bakhtin, não é um destinatário pacífico, cuja única função se resume em compreender o locutor; sua atitude em relação à fala do locutor é sempre responsiva ativa e materializa-se na sua resposta (externa ou interna). É exatamente uma resposta e não uma compreensão passiva que o locutor espera do(s) outro(s) a quem o seu discurso se dirige, resposta que pode se materializar sob a forma de uma concordância, adesão, objeção, execução, etc.

Em face da atitude responsiva ativa do outro perante o enunciador, o enunciado pressupõe sempre, conforme Volochinov/Bakhtin (1926), uma apreciação valorativa. Tal apreciação baseia-se em avaliações que fazemos na vida, com base em critérios éticos, cognitivos, políticos, religiosos ou outros, de enunciados concretos, e envolvem elementos extraverbais, sem cujo conhecimento se torna impossível compreender o discurso.

É a alternância dos sujeitos falantes que traça a fronteira entre os enunciados nas diversas esferas da atividade e existência humana, adotando características e formas diversas, dependentes das atribuições lingüísticas e das condições e situações variadas de comunicação. Embora essa alternância seja observada de forma mais evidente no diálogo, todo enunciado pressupõe um caráter responsivo, ou seja, um enunciador. Nossos enunciados estão repletos da fala dos outros, isto é, de outros enunciados que são assimilados ou empregados de forma consciente ou não-consciente. Por estarmos inseridos no meio social e participarmos das mais diversas atividades nesse meio, nossos enunciados não são propriamente nossos, visto que “o objeto de discurso do locutor, seja ele qual for, não é objeto do discurso pela primeira vez neste enunciado, e este locutor não é o primeiro a falar dele. O objeto, por assim dizer, já foi falado, controvertido, esclarecido e julgado de diversas maneiras, é o lugar onde se cruzam, se encontram e se separam diferentes pontos de vistas, visões de mundo, tendências” (Bakhtin, 1953: 319).

Como coloca Brait (1997), o dialogismo na teoria bakhtiniana pode ser interpretado como o elemento que instaura a natureza interdiscursiva da linguagem na medida em que diz respeito “ao permanente diálogo, nem sempre simétrico e harmonioso, existente entre os diferentes discursos que configuram uma comunidade, uma cultura, uma sociedade” (Brait, 1997: 98), assim como elemento representativo das relações discursivas que se estabelecem entre o eu e o outro nos processos discursivos instaurados historicamente pelos sujeitos, processos discursivos pelos quais os sujeitos também são instaurados.

Dada a estreita relação de dependência entre a enunciação e a situação social extraverbal em que os enunciados são produzidos, cada esfera social elabora suas formas relativamente estáveis e historicamente cristalizadas de enunciados: os gêneros do discurso (Bakhtin, 1953). Por ser muito variada a atividade humana, é imensa a heterogeneidade dos gêneros do discurso, que se originam, evoluem e se transformam conforme a evolução e transformação da atividade na esfera social em que estão inseridos. Devido a essa diversidade dos gêneros, que comportam desde a réplica cotidiana até o romance, pode parecer impossível, como indica Bakhtin, encontrar um terreno comum para o seu estudo. Em vez de lançar mão de uma classificação exaustiva dos gêneros do discurso, Bakhtin preocupa-se em diferenciar “gêneros primários” e “gêneros secundários”.

Os gêneros primários estão geralmente enraizados na vida cotidiana, resultam de interações verbais espontâneas e mantêm, como sublinha Schneuwly (1988), uma relação implicada com o contexto material de produção. Os gêneros secundários, por sua vez, aparecem em situações de

comunicação cultural mais complexas e relativamente mais evoluídas, principalmente, mas não necessariamente, na modalidade escrita da linguagem, estabelecendo uma relação mais autônoma com a situação material de produção. Ao se tornarem componentes dos gêneros secundários, os gêneros primários perdem a relação implicada com o contexto material de produção. Uma conversa cotidiana, conforme exemplifica Bakhtin (1953), transcrita em um romance, constitui um gênero secundário, pois só podemos atribuir-lhe sentido no contexto específico daquela obra.

Schneuwly (1988) associa a relação de implicação ou autonomia que o gênero estabelece com o contexto material de produção à concepção de ancoragem enunciativa. O autor define ancoragem enunciativa como a relação instaurada pelo enunciador com a situação material de produção do seu texto ou discurso, tendo em mente a sua relação com o(s) destinatário(s) a quem o seu discurso se dirige, o lugar social dos enunciadores e a finalidade da atividade de linguagem em questão.

Segundo Schneuwly (1988), no eixo da situação, a ancoragem pode ser implicada ou autônoma, e, no eixo da referencialidade, pode ser conjunta ou disjunta. Como acontece com os gêneros primários, na relação de implicatura, o discurso mantém uma relação constante e explícita com a situação material de produção. Já na relação de autonomia, à semelhança do que ocorre nos gêneros secundários, o discurso perde a relação implicada com a situação material de produção, que deixa de ser referenciada de maneira imediata e explícita no discurso. No que diz respeito à referencialidade, a relação de conjunção constitui-se aquela em que não há ruptura entre o mundo dito e o mundo da situação, ou seja, utiliza-se o discurso para falar do mundo em que se age. Na relação de disjunção, por sua vez, os temas são apresentados como pertencentes a um outro mundo, discursa-se sobre um outro mundo que não o atual.

Por estarem estreitamente vinculados à esfera social de produção, os gêneros possuem características estáveis que possibilitam a sua transformação em instrumentos de ensino- aprendizagem. É nessa perspectiva que Dolz e Schneuwly (1996) propõem a idéia de gênero como megainstrumento para agir em situações de linguagem. No trabalho escolar, portanto, o domínio dos gêneros desencadeia a maestria das diversas situações de comunicação presentes no mundo social.

Situados em uma perspectiva bakhtiniana, Dolz e Schneuwly (1996) definem três dimensões essenciais do gênero que devem orientar o processo de ensino-aprendizagem de LM a partir de gêneros do discurso:

2. A estrutura (comunicativa) particular dos textos pertencentes ao gênero;

3. As configurações específicas das unidades de linguagem, que são sobretudo traços da posição enunciativa do enunciador, e os conjuntos particulares de seqüências textuais e de tipos discursivos que formam sua estrutura” (Dolz e Schneuwly, 1996: 7).

Dolz e Schneuwly (1996) sublinham a importância da concepção de capacidades de linguagem na elaboração de uma proposta de ensino voltada para a construção de gêneros do discurso diversos na LM. Por capacidades de linguagem, os autores entendem as aptidões requeridas do aprendiz para produzir um gênero do discurso em uma determinada situação de interação, inserida, por sua vez, em um dado domínio social da comunicação13. Tais aptidões envolvem as capacidades de “adaptar- se às características do contexto e do referente (capacidade de ação), mobilizar modelos discursivos (capacidades discursivas), e dominar as operações psicolingüísticas e as unidades lingüísticas (capacidades lingüístico-discursivas)” (Dolz e Schneuwly, 1996: 7 e 8).

Como os modelos de prática de linguagem transpostos para a sala de aula estão disponíveis no meio social, o desenvolvimento de capacidades de linguagem representa, parcialmente, um mecanismo de reprodução em que os aprendizes podem ser levados a desenvolver estratégias que permitam a apropriação das capacidades (de ação, discursivas e lingüístico-discursivas) necessárias à produção de determinado gênero do discurso. Nesse sentido, Dolz e Schneuwly (1996) sugerem que a análise das capacidades de linguagem dos aprendizes antes e durante a elaboração de uma seqüência didática para o ensino de um gênero específico contribui para a compreensão das transformações que ocorrem ao longo da aprendizagem, podendo, portanto, ajudar na delimitação de intervenções didáticas.

Levando-se em conta o fato de que o desenvolvimento da habilidade oral em cursos de idiomas pretende, em geral, preparar o aluno para utilizar a LE nas variadas situações com que ele pode se deparar no meio social, as atividades transpostas para a sala de aula deveriam constituir-se em mecanismos de reprodução das diversas práticas de linguagem com que nos deparamos no mundo social. Logo, parece-nos fundamental que o jogo, quando transposto para a sala de aula com o propósito de promover a construção da habilidade oral, seja elaborado de forma a desenvolver as

13 Dolz e Schneuwly (1996) entendem domínios sociais da comunicação como os domínios da comunicação presentes em nossa

sociedade. Cultura literária ficcional, documentação e memorização das ações humanas, discussão de problemas sociais

controversos constituem, portanto, exemplos de domínios sociais da comunicação. Em cada um desses domínios podem circular

gêneros orais e escritos variados caracterizados por um aspecto tipológico dominante (gêneros da ordem do narrar, relatar, argumentar, etc). Cada um desses gêneros requer a mobilização de aptidões específicas (capacidades de linguagem) para a sua produção.

capacidades de linguagem necessárias para promover o engajamento discursivo do aprendiz nas práticas de uso da linguagem que se pretende reproduzir.

A noção de capacidades de linguagem constitui-se, portanto, em um pressuposto central para compreendermos as capacidades de ação, discursivas e lingüístico-discursivas em constituição nos jogos de linguagem que integram o nosso corpus, permitindo que as práticas de linguagem observadas nas interações sejam comparadas àquelas possivelmente encontradas no meio social.

Embora as atividades analisadas não tenham sido organizadas de forma a promover a apropriação de gêneros do discurso específicos, acreditamos que as situações pensadas para contextualizar as práticas de linguagem decorrentes dos jogos requereram dos aprendizes a mobilização de determinadas capacidades de linguagem na interação, fazendo dos jogos instrumentos de constituição da LE nos quais gêneros do discurso variados podem circular.

A estrutura mais marcante dos jogos de linguagem assemelha-se àquela do diálogo cotidiano decorrente das interações com a família, na escola, no trabalho, no clube, em restaurantes, na praia, etc., ficando, em geral, no domínio dos gêneros primários e mantendo uma relação implicada com a situação material de produção. Acreditamos que, conforme o domínio lingüístico do aluno na LE aumenta, o jogo de linguagem pode ser proposto de forma a trabalhar capacidades de linguagem mais complexas, como descrever e expor situações e problemas diversos, elaborar narrativas mais detalhadas, emitir opiniões, construir e sustentar argumentos sobre assuntos diversos, contribuindo, desta forma, para que a LE seja utilizada para interagir em situações que mantêm uma relação autônoma com a situação material de produção, mais próxima, portanto, dos gêneros secundários.

Não se constitui foco dessa pesquisa delimitar os gêneros do discurso que circulam nas atividades selecionadas para análise, nem classificá-los como primários ou secundários. Acreditamos que a concepção bakhtiniana de gêneros discursivos pode ser relacionada em diversos aspectos, principalmente no que diz respeito às capacidades de linguagem em constituição, com a concepção de jogos de linguagem postulada por Wittgenstein, representando um importante referencial teórico para compreendermos a forma como os jogos de linguagem decorrentes dos jogos tornam-se mais elaborados, promovendo a negociação de significados na LE em situações de comunicação mais complexas.

A concepção wittgensteiniana de jogos de linguagem enquanto atividade mútua entre adulto e criança responsável pela constituição da linguagem e, portanto, essencial para o desenvolvimento,

apresenta pontos convergentes tanto com as concepções vygotskianas quanto bakhtinianas na medida em que também sublinha a importância do outro no processo de constituição da linguagem.

Na presente pesquisa, o conceito de jogos de linguagem representa uma categoria intermediária de análise que aponta para os aspectos tipológicos dominantes na interação (nomear, relatar, expor, argumentar, etc.), permitindo-nos observar a forma como as capacidades de linguagem enfocadas nos jogos evoluem conforme o domínio do objeto lingüístico em constituição, a LE, também evolui. Além disso, o olhar para o desenvolvimento dos jogos de linguagem nos três estágios (Básico 1, Básico 3 e Intermediário 4) em que os jogos foram coletados indica como a colaboração entre pares no jogo contribui para que capacidades de linguagem mais complexas, características dos gêneros secundários, sejam socioconstruídas e internalizadas na LE.

Discutidos os pressupostos que fundamentam a concepção sócio-histórica do processo de construção de conhecimento decorrente tanto dos jogos quanto do diálogo entre professores e pesquisadora nas sessões reflexivas, passamos, no capítulo seguinte, à discussão dos postulados que orientam a nossa visão sobre o jogo.

CAPÍTULO II

O JOGO NUMA PERSPECTIVA SÓCIO-HISTÓRICA

São inúmeros os estudos, em especial no campo da psicologia, sobre a importância da atividade do jogo no desenvolvimento da criança e sobre o papel exercido pelos jogos de linguagem entre adulto e criança no processo de constituição da LM.

No que diz respeito ao papel do jogo no desenvolvimento, vale destacar as pesquisas desenvolvidas por Vygotsky (1930) e por dois outros pesquisadores a ele relacionados: Leontiev (1934) e Elkonin (1978). Em seus estudos, esses três pesquisadores chamam a atenção para a relação da atividade do jogo com o mundo social onde a criança está inserida. Partindo de uma concepção sócio-histórica dessa atividade, propõem que os inúmeros jogos que caracterizam a infância refletem, inicialmente de maneira mais generalizada e com maior riqueza de detalhes à medida que a própria percepção da criança evolui, as complexas e imbricadas relações sociais das quais a criança participa. O fato de o jogo traduzir a percepção da criança acerca do mundo social que a cerca e das complexas relações nele envolvidas faz com que essa atividade desempenhe um papel fundamental no desenvolvimento e na aprendizagem da criança e, conseqüentemente, na preparação para a vida adulta.

Além de constituir uma atividade fundamental no processo de desenvolvimento e aprendizagem da criança em idade pré-escolar e no decorrer da idade escolar, o jogo também exerce um papel fundamental no processo de constituição da LM. Nesse sentido, Bruner (1975) destacou o papel desempenhado pelos jogos de linguagem que caracterizam a interação da díade adulto-criança no processo de constituição da linguagem. Segundo o autor, o caráter inicialmente formatado desses jogos possibilita a participação efetiva da criança na interação, fazendo com que a LM seja constituída em um constante processo de imitação e revozeamento.

Somando-se ao papel desempenhado pelo jogo no decorrer do desenvolvimento-aprendizagem da criança e no processo de constituição da linguagem, consideramos fundamental, dada a perspectiva sócio-histórica da aprendizagem e da linguagem privilegiada no nosso trabalho, situar o papel e a influência exercida pelo jogo em um contexto social, histórico e cultural mais amplo.

Por entendermos que as práticas pedagógicas vivenciadas na sala de aula no que diz respeito ao uso de jogos como instrumentos didáticos estão vinculadas e em diálogo constante com a experiência vivida no cotidiano em relação a essa atividade, acreditamos que uma visão macro do

jogo é essencial não apenas para compreender as especificidades adquiridas por essa atividade quando transposta para a sala de aula, no nosso caso, sala de aula de LE, mas, principalmente, para buscar e propor transformações para práticas pedagógicas correntes envolvendo a utilização de jogos como ferramentas didáticas no processo de ensino-aprendizagem de LE.

Dessa forma, com base nos estudos de Huizinga (1944), Caillois (1958) e Cook (2000), discutimos a seguir algumas especificidades do jogo como elemento fundamental da cultura humana para, a partir dessa conceitualização mais ampla, estabelecer relações com o processo de desenvolvimento-aprendizagem da criança, de constituição de LM e de ensino-aprendizagem de LE, processos, a nosso ver, interdependentes e, portanto, fundamentais para uma compreensão mais detalhada do nosso objeto de estudo.