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3.2 Fazendeiros: diletantes e oligarcas

3.2.1 O diletantismo

Em sua leitura racista da história, Oliveira Vianna (1956, p. 55-57) afirma que é no campo que se forma a nossa raça e que desde “os primeiros dias da nossa história temos sido um povo de agricultores e pastôres”. No entanto, neste ponto ele acentua a diferença entre o “natural da terra” – “essencialmente rural” ou de “temperamento fundamental de homem do campo” – e o “ádvena” – “de espírito comercial”. Para ele, então, os colonos peninsulares chegaram ao Brasil dominados por preocupações comerciais. Mas, ao contrário da Índia, encontraram uma terra de aborígenes e sem nenhuma tradição comercial. Destarte, a “ausência de riqueza organizada, essa falta de base para uma organização puramente comercial, é que leva os peninsulares para aqui transplantados a se dedicarem a exploração agrícola”. Foi, portanto, a necessidade da conquista da terra que levou os portugueses a buscarem a fundar a atividade agrícola.

Sérgio Buarque (1995, p. 73) diz assim que os portugueses não fundaram uma civilização agrícola no Brasil, mas sim uma civilização de raízes rurais. Para entender esta diferença, é preciso acompanhar o autor de Raízes do Brasil em sua discussão sobre o “tipo aventureiro” que o português encarnou no Novo Mundo. Para

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ele, isso aconteceu porque primeiro o “gênio aventureiro” não conduzia a uma civilização tipicamente agrícola. Depois, a população escassa do reino não permitiu uma emigração em larga escala de trabalhadores rurais. E, por fim, “pela circunstância de a atividade agrícola não ocupar [...], em Portugal, posição de primeira grandeza”.

Gilberto Freyre (1987, p. 67-69), apesar de concordar com Oliveira Vianna, relativiza o desapego dos portugueses às lavouras. Por isto, ele é criticado por Sérgio Buarque que não admite tratar de modo diferente essa questão de nossa formação social. Além de reafirmar que realmente os portugueses – “antigo povo de reis lavradores” – tinham se transformado no mais comercializado e menos rural da Europa, em razão do mercantilismo burguês e semita e da escravidão moura e negra, Freyre lembra (p. 69) que não se pode perder de vista que os portugueses “fundaram no Brasil, sobre base principalmente agrária, a maior civilização moderna nos trópicos [...]”. E esta “organização agrária considerável” só foi possível porque ele contou com dois importantes auxiliares: o negro e a mulher índia. Foram eles fundamentais para que os portugueses pudessem “deslocar a base da colonização tropical da pura extração de riqueza mineral, vegetal ou animal [...] para a criação local de riqueza”. Freyre, assim, não deixa de destacar o esforço quase hercúleo dos portugueses na América tropical, quando eles foram confrontados com as condições naturais de uma terra de clima quente, onde pululam as formas perniciosas de vida vegetal e animal que são inimigas de toda cultura agrícola organizada.

Portanto, o diletantismo dos fazendeiros, que é comum na vida social das fazendas, pode ser visto como manifestação da “escassa disposição dos imigrantes ibéricos para as lides agrícolas”. Era o espírito comercial que os guiava. A agricultura, incerta em solo tropical, foi organizada somente por intermédio do trabalho do negro e do índio. Isto se confirma no tempo presente, quando se vê, tirante a influência decisiva dos descendentes de alemães, italianos e japoneses no setor rural, um desprezo dos nossos empreendedores pela atividade agrícola. Eles só investem nesta atividade, quando governo cria condições extremamente favoráveis para seu desenvolvimento, quando são atraídos pelo estilo de vida dos fazendeiros e dos antigos coronéis e quando praticam o branqueamento de capitais (em outras palavras a tão praticada lavagem de dinheiro). Assim, em virtude de suas condições naturais e história, o semiárido brasileiro se tornou um lugar ideal para esses empreendedores aventureiros.

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Além disso, o absenteísmo dos proprietários de terra também deu impulso a essa prática diletante. Em sua obra Caminhos antigos e povoamento do Brasil, Capistrano de Abreu (2004, p. 168) assinala duas fases no regime pastoril, cujo elemento que as distingue é a presença dos fazendeiros. Em sua primeira fase, o absenteísmo: “homens ricos”, “moradores de outras capitanias”, “em geral baianos”, “requerem e obtêm sesmarias para onde mandaram vaqueiros com algumas sementes de gado”. Eles, segundo o historiador (2004, p. 168), não visitam suas propriedades porque estariam contentes com os lucros das boiadas. Na segunda fase, os fazendeiros já vão morar em suas propriedades, “ou porque o avultado dos interesses exiga sua presença, ou por incitá-los ao espírito de liberdade”, que motivou o povoamento do sertão do Norte, conforme Martius, citado por Capistrano de Abreu. Desde o final do século XIX, ou da incidência das grandes secas, há o retorno da primeira fase, ou seja, do absentismo. Esta prática leva o proprietário ao diletantismo, pois o separa da produção agrícola, do contato com o trabalho e os trabalhadores rurais, deixando suas terras nas mãos de um preposto (gerente ou capataz) que, ao contrário dele, deve entender do funcionamento da indústria agrícola.

Assim, Sobrinho (1917, p. 205) relata que, nos primeiros decênios do século XX, as principais fazendas de criar no Ceará já não eram habitadas pelos proprietários. Sobre os proprietários do Vale do São Francisco, diz Pierson (1972, p. 356): “numerosos fazendeiros residem em pequenas cidades e vilarejos pelos menos durante parte do ano, entregando suas propriedades aos cuidados de administradores, capatazes e vaqueiros”. Duas, pois, eram as causas que faziam os proprietários de terras não habitarem sua herdade: a primeira, o crescimento das vilas e cidades que possibilitava boas oportunidades de colocação para a família fazendeira e oferecia serviços que dificilmente se encontravam no campo, tais como: escola e ambulatório. A segunda, o fato de os proprietários não serem propriamente criadores, mas sim profissionais de outras áreas, que, por algum motivo, tornaram-se proprietários de terra. É neste sentido que Sobrinho (1917, p. 205) descreve o perfil dos fazendeiros do sertão:

Estes são pessoas de certa posição social que vivem nas cidades mais importantes do interior ou mesmo na capital. Visitam o seu estabelecimento rural uma ou duas vezes por anno e recebem a visita do administrador (vaqueiro) várias vezes. Desta forma e ainda com o auxilio da correspondência postal estão a par dos factos mais importantes da fazenda. Quase todos não são profissionais propriamente da criação, tem outro meio

57 de vida. A maior parte entregam-se a especulações commerciaes. Ultimamente, há na capital um certo gosto pelas industrias pecuárias; muitas pessoas dahi têm adquirido terras no interior e situado fazendas. Esses, também, não são profissionaes, mas ordinariamente médicos, engenheiros, bachareis, padres, funcionários públicos, negociante, e capitalistas. Criam por passa tempo, por dilletantismo. (Grifo do autor)

“O certo gosto pelas indústrias pecuárias” levava os profissionais liberais, os padres e os capitalistas a se aventurarem no mundo rural. Ter então um casa de campo para o descanso e passeio da família era extremamente valorizado pela sociedade23. Ao se mostrarem como proprietários de terras, eles ganhavam mais um

status e autoridade. Em consequência, a atividade agrícola perdia em qualidade, visto que era tratada como passatempo. O capital investido era das sobras do ordenado que recebiam, o que não condizia com o que era necessário para alavancar essa atividade. Assim, eles não a modernizavam, conservando-a em estado rudimentar.

Essa atividade, todavia, não está apenas na mão de amadores: de acordo com Domingues (1941, p. 55-57), existem três “grupos” de fazendeiros no Ceará. O primeiro grupo é do proprietário de fazenda, que, absenteísta, exerce sua verdadeira profissão na capital, deixando suas propriedades nas mãos de um vaqueiro ou gerente, não podendo, por isto, ser chamado de “criador”. Este é o tipo descrito por Sobrinho (1917). O segundo grupo é mais atuante, pois habita no estabelecimento rural, mas, “pôr força das circunstâncias, não difere, ou difere muito pouco da mentalidade sertaneja, em matéria de criação”: na concepção de Domingues (1941, p. 42), isto quer dizer que esse grupo se apresenta “atrasado”, “sem instrução” e “rotineiro”. Está, pois, no terceiro grupo, “a salvação da lavoura”:

Há um terceiro grupo de fazendeiros, que podemos dizer adiantados, que se interessam pelos problemas da pecuária, lêm autores e uma ou outra revista técnica, e que constituem uma vanguarda, é certo, mas caminhando muito devagar, embora na frente às apalpadelas. Estes, ou não dispõem de capital suficiente para melhoramentos, ou lhes falta o fator “braço” habilitado, para a execução de seus anseios de progresso. A eles pertence a glória de terem feito, durante tantos anos, experiências introduzindo raças de gado e plantas forrageiras, e cujos resultados estão, hoje, servindo de algum modo, pelo menos para que as novas gerações de criadores não errem, nas tentativas

23 Tal costume não se restringia apenas ao Norte, mas era comum em todo o território brasileiro. Possuir

terras dava, pois, autoridade social: “[...] a posse de um latifúndio fazendeiro se torna uma aspiração comum a todos os espíritos amantes da tranquilidade e da paz. Os elementos da escol social, os políticos em evidência, os estadistas, como todos os que querem possuir um pouco de autoridade social, procuram o ponto de apoio de um domínio rural [...]” (VIANNA, 1956, p. 104-105).

58 do mesmo gênero, furtando-as a dissabores e prejuízos. (DOMINGUES, 1941, p. 56)

Pode-se dizer que, no semiárido, esse grupo de fazendeiros faz parte de uma pequena minoria que está longe de distorcer a imagem de diletante do fazendeiro da região. Quando esse grupo começa a tirar da terra grandes lucros, ele logo os direciona para outros setores da economia, temendo os dissabores que podem advir de uma atividade econômica realizada no Polígono das Secas.

Além desses grupos, há ainda os fazendeiros que usam a terra especialmente como curral eleitoral. Os fazendeiros deste tipo são numerosos no semiárido. Eles não se preocupam com a produção agrícola, mas sim com a renda e, principalmente, com os votos dos seus moradores para elegerem os candidatos da sua predileção. Não chegam ao parlamento pela conduta ilibada, riqueza e prestígio originados advindos da terra, mas por meio dos votos dos seus currais.

Essa prática condenável não lhes tira a qualidade de diletante: pelo contrário, reforça tal qualidade. Desta forma, o amadorismo no setor agrícola não se deve somente às condições ambientais do semiárido (secas constantes, solos rasos, topografia acidentada etc.) que são pouco remuneradoras aos investimentos realizados. Por trás dos estabelecimentos rurais, existem, pois, diversas interesses que se encontram muitas vezes distantes da produção agropecuária. Na economia agrícola do semiárido, essa prática amadora tem favorecido a permanência de sistemas de trabalho arcaico, como o sistema de moradores, porque é conservadora – nela não há espaço para inovação. O pouco investimento e conhecimento quase nulo dos senhores rurais pela atividade agropecuária, portanto, ajuda a manter práticas tradicionais que, de certo modo, moldaram-se ao meio geográfico.