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Como os moradores fazem para resistir a opressão paternalista? Sem dispor de sindicatos e isolados nas propriedades rurais, a forma de resistência que surge do universo da dominação tradicional e que se destaca em sua vida diária é a solidariedade parental. Ela pode servir de antídoto à opressão paternalista e à exploração capitalista. Além de inerente à constituição das famílias, ela faz parte das relações tradicionais da sociedade rural, em virtude “da restrição do círculo de vicinagem sob a ação dos grandes domínios”.

Embora não deixe de incluir os agregados no conjunto da solidariedade parental, Oliveira Vianna (1952, p.96) restringe tal solidariedade à liderança da família senhorial, percebendo-a de forma reduzida, estática e sem contradições:

Essa poderosa solidariedade parental provém, em parte, de que pelo receio de conspurcar com sangue bastardo o sangue pura da familia, os casamentos se fazem, na nobreza local, entre os próprios parentes, de preferência. Há a contar também o fato da restrição do círculo da vicinagem sob a ação dos grandes domínios. E também que as novas famílias, emergentes da família- tronco, costumam localizar-se em domínios circundantes ao domínio ancestral. O que tudo concorre para que os entrelaçamentos entre parentes sejam inevitáveis. Daí a amplitude e a poderosa estrutura da “gens” rural no período vicentista.

Dentro do solar fazendeiro, o núcleo familiar deve ser grande, maior do que o do IV século. O tipo conventual das antigas fazendas coloniais, com a sua série interminável de janelas e as suas inúmeras alcovas e os seus pomposos sobrados, denunciam o tamanho da família senhorial dêsses tempos. Os parentes, em número já considerável, são acrescidos ainda de alguns agregados de melhor extração, que se incorporam à família senhorial como amigos, comensais ou favoritos do senhor.

O jurista, no entanto, percebe tal solidariedade como forma de resistência, ao dizer que ela vem do “receio de conspurcar com sangue bastardo o sangue puro da família”. Seria, pois, um instrumento usado pela camada senhorial para se organizar e manter seu patrimônio e distinção. Em sua visão, os agregados, ou melhor, “agregados de melhor extração”, fariam parte de tal solidariedade apenas

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como figurantes, porque ela pertencia à família senhorial. Neste sentido, as famílias dos moradores não teriam direito de se solidarizarem – de resistirem ao arbítrio dos fazendeiros, por meio desse tipo de solidariedade.

Contudo, a solidariedade parental se configura como um tipo de solidariedade existente entre as famílias e os parentes no interior do estabelecimento rural e também nas cidades. Ela não é propriedade de um estamento ou classe social. Tampouco se trata de “solidariedade mecânica” e de “solidariedade orgânica” no sentido dado por Durkheim (1999). Ela é orgânica porque congrega organicamente as famílias, antecedendo assim a “solidariedade mecânica”: “A solidariedade orgânica, na comunidade, precede, na história, a ‘solidariedade mecânica’” (LEFEBVRE, 1970 apud MARTINS, 1986, p. 152). É também local, porque ocorre nos limites de um determinado território e, muitas vezes, em defesa dele. Portanto, é através da solidariedade parental que os moradores defendem sua morada, os parentes e sua cultura agrícola. Em outras palavras: ela faz com que os moradores se protejam materialmente, resistam ao gerente e aos desmandos dos fazendeiros e busquem diminuir a opressão e dependência características da dominação tradicional.

Mas é preciso distinguir tal solidariedade da economia moral de Thompson (1998). Apesar de ambas terem como fonte de legitimação o modelo paternalista, elas devem ser consideradas de maneira distinta. Enquanto a economia moral rompe com a tradição paternalista por meio da ação direta coletiva, tal solidariedade está presa ao paternalismo e aos valores de ordem que o sustentam. Pode-se dizer então que a economia moral se efetiva quando a solidariedade parental se torna insuficiente como estratégia familiar de sobrevivência. Assim, a ação solidária é localizada – está presa ao domínio ancestral. Quando se livra deste domínio, ela se apresenta em radical transformação, que pode se traduzir em economia moral.

Além da solidariedade parental, Brasil (1926, p. 288) registra outra forma de resistência camponesa: “a união política em torno de pessoas influentes”. Ao afirmar que o espírito do sertanejo não estava preparado “para permittir a constituição de associações privadas destinadas á defesa dos interesses collectivos”, principalmente em razão da ausência do Estado e da falta de propaganda adequada do governo federal para animar a criação dessas associações, Brasil (1926, p. 289) diz que o sertanejo pobre só pode contar com dois escudos de proteção:

114 No interior, além da solidariedade parental, só percebemos essa geral tendencia de união política em torno de chefes, de proprietarios afortunados, de pessôas influentes ou amigas do governo. E’ que o sertanejo pobre precisa de um encosto, na sua expressiva linguagem, isto é, de uma pessoa poderosa ou influente que o proteja contra as falhas da justiça publica e da policia sertaneja. E’ velha essa tendencia, de modo que hoje, embora o amparo mais effectivo das instituições publicas, ainda subsiste com força instinctiva. Ella é mais acentuada nos sertões longinquos. (Grifo do autor) Assim, a união política em torno de pessoas influentes e a solidariedade parental são seus escudos de proteção contra esse contexto de opressão no qual os régulos, a justiça pública e a polícia sertaneja perseguem-no. Por meio deles, foram formando sua “consciência de classe”, influenciando deste modo a cultura operária das cidades. Sob tais escudos, eles não se revoltam – não buscam promover mudanças profundas em sua situação social. Ao contrário disso, existe, por parte dos sertanejos, forte empenho em conservar o sistema de moradores no sentido de manter sua cultura agrícola (de poder fazer seu roçado, criar seus animais, caçar, pescar etc). Em geral, eles desejam se manter como homem do campo e não se tornar um simples proletário.

Apesar desses autores verem a solidariedade parental como forma de organização, eles não a projetam como instrumento de luta dos moradores com os fazendeiros, pois negam a possibilidade de luta entre eles, ressaltando somente a harmonia entre ambas as partes. Compreendo, todavia, essa comunhão de forma ampla, isto é, não como atributo apenas da camada senhorial; de forma contraditória, reunindo em seu bojo interesses conflitantes; e, ainda, como um dos escudos principais de proteção da população do campo, ou seja, como estratégia para a defesa dos interesses coletivos e familiares.

Em suma, a Coroa portuguesa e o Estado brasileiro são responsáveis pelo infortúnio desses sertanejos, pois eles deixaram os senhores rurais em total liberdade, arbitrando sobre as questões da morada como eles bem entendiam. Esta separação entre Estado e senhores rurais é, porém, meramente analítica, porquanto os senhores rurais instrumentalizaram o Estado brasileiro, fazendo com que não houvesse qualquer tipo de fiscalização sobre as relações entre patrões e moradores. A organização do trabalho então poderia ser modificada a qualquer momento, bastava que o fazendeiro desejasse tal mudança e, deste modo, a exploração e opressão dos moradores poderiam correr sem peias. Assim, sob essa estrutura patrimonialista, os

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moradores poderiam reclamar a quais instituições? À época, os sertões do Norte estavam completamente “fechados”: neles não havia estradas, telégrafo, automóvel, rádio, sindicatos etc., deixando-os completamente presos à tirania dos proprietários de terra. Com a abertura dos sertões e o surgimento dos sindicatos, essa situação de abandono é, como se verá, levemente modificada.

116 7 SECAS E INTERVENÇÃO DO ESTADO NO SEMIÁRIDO